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Merleau-Ponty: diálogo com os modernos e inserção no debate contemporâneo

CAPÍTULO I – CORPO E DISCIPLINA EM CONCEPÇÕES EDUCATIVAS DA

1.7. Merleau-Ponty: diálogo com os modernos e inserção no debate contemporâneo

sustentada pelo Iluminismo, estando notadamente vinculada ao processo material e de produção cultural na sociedade burguesa emergente. O termo revelou um caráter contraditório, uma vez que a estética foi pensada tanto como um protótipo secreto da subjetividade na sociedade capitalista incipiente e, ao mesmo tempo, enquanto uma visão radical das potências humanas como fins em si mesmas, ou seja, como uma rival frontal de todo o pensamento dominador e instrumental (EAGLETON, 1993). Segundo Eagleton (1993, p. 13), a estética:

Aponta, ao mesmo tempo, para uma virada criativa em direção ao corpo sensual, e a inscrição deste corpo numa lei sutilmente opressiva; ela representa, de um lado, uma preocupação libertadora com o particular concreto e de outro, uma astuciosa forma de universalismo. Destarte, a partir desse legado, as análises desta seção foram desenvolvidas com o intuito de compreender a inserção desses pressupostos no pensamento e nas experiências subsequentes. Deteve-se especialmente nas ramificações que encontram no corpo uma visão integralizadora, capaz de indicar, a partir desse corpo, uma epistemologia possível. É importante reiterar que essas reflexões buscaram restabelecer a conexão entre o corpo e uma proposta de formação integral que, na ótica adotada por esta pesquisa, pode ser encontrada na arte enquanto expressão que compreende o homem em sua totalidade (corpo e pensamento, sentidos e razão).

Nota-se que a procura pela conciliação dos antagonismos e do aspecto fragmentário do homem, como tema central no discurso em torno do conhecimento, tal como foi perseguida por Schiller (no veio aberto anteriormente por Rousseau), foi ampliada por diversos pensadores contemporâneos comprometidos em estabelecer os limites impingidos pela herança moderna34 e/ou defender uma zona híbrida em que seja possível, a partir dessas bases, avançar e criar transgressões para uma nova compreensão do corpo. A consolidação do capitalismo moderno, o triunfo da indústria, a concentração dos meios de produção por uma burguesia repressora e a consequente divisão de classes levaram as proposições idealistas a cederem lugar ao mundo material e à atuação concreta do homem na vida social. Nesse contexto, três frentes críticas se abrem, a saber: Marx e suas teses sobre o trabalho (a luta de classes); Nietzsche e a crítica do poder (o problema da moralidade e dos valores); e Freud com os postulados

34 As ressonâncias dessas diretrizes conceituais nas produções da arte contemporânea foram abordadas no

sobre a psique (o inconsciente). Essas três reflexões, embora rivalizem em vários aspectos, estabelecem seu ponto de contato numa concepção do homem situado no horizonte de outro tipo de racionalidade. Os postulados dos chamados “críticos” da modernidade ressoaram em todos os campos do conhecimento, provocando uma mudança radical nos modos de compreender o corpo e a dimensão sensível, já que, “depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a ideia de uma razão, livre de condicionamentos materiais e psíquicos” (ROUANET, 2004, p.2).

Herbert Marcuse, em Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud (1969), realizou uma análise arguta sobre a fragmentação humana na sociedade industrial contemporânea, em que o monopólio científico das necessidades instintivas se tornava indispensável para a reprodução do sistema de dominação. Assim, “a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é distorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente” (MARCUSE, 1969, p. 13-14). A felicidade, então, deveria estar subordinada à disciplina do trabalho, como ocupação integral, e à disciplina da reprodução do sistema estabelecido de lei e ordem. Dessa forma, o sacrifício metódico da libido e a sua sujeição, rigidamente imposta às atividades de expressões socialmente úteis, seriam cultura (Ibid.).

A partir dos postulados de Freud, o frankfurtiano35 atestou que a dimensão

onírica da fantasia (imaginação) faz parte da totalidade que conduz o homem ao conhecimento. Nesse contexto, a imaginação é concebida enquanto processo mental independente e, ao mesmo tempo, fundamental na superação da realidade humana antagônica. Segundo Marcuse (1969, 132-133):

O reconhecimento da fantasia (imaginação) desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas ideias da memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade. [...] a contribuição original de Freud reside na tentativa de demonstrar a gênese desse modo de pensamento e sua conexão essencial com o princípio de prazer. O estabelecimento

35 Trata-se de um termo utilizado para designar os integrantes da Escola de Frankfurt, composta por um

grupo de pensadores que defendiam a Teoria Crítica contra a intitulada Teoria Tradicional. A Teoria Crítica estabelece a razão como um elemento de conformidade, disso decorrem a crítica à fragmentação da ciência e a análise da sociedade a partir de critérios funcionais e sua compreensão como sistemas e subsistemas. Segundo os frankfurtianos, as disciplinas setoriais desvirtuam a compreensão da sociedade enquanto totalidade, ficando todos submissos à razão instrumental e ao pensamento predominante. Dentre os principais pensadores estão: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamim (MORA, 2005, p.1147).

do princípio de prazer causa uma divisão e mutilação na mente, determinando fatalmente todo o seu desenvolvimento. O processo mental, anteriormente unificado no ego do prazer, está agora cindido; sua principal corrente é canalizada para o domínio do princípio de realidade e colocada em linha com os requisitos do mesmo. Assim condicionada, essa parte da mente obtém o monopólio da interpretação, alteração e manipulação da realidade, do controle da recordação e do esquecimento, até a definição do que é realidade e como deve ser usada e alterada. A outra parte do aparelho mental continua livre do controle do princípio de realidade – pelo preço de tornar-se impotente, inconsequente e irrealista.

Desse modo, a estrutura mental anteriormente não fragmentada passa a ser orientada exclusivamente por uma parte cuja função é conformá-la ao critério de realidade que fixa os objetivos, as normas de conduta e os julgamentos de valor. Por conseguinte, “a razão prevalece; torna-se desagradável, mas útil e correta; a fantasia permanece agradável, mas torna-se inútil, inverídica – um mero jogo, divagação.” (Ibid. p, 133). Na perspectiva psicanalítica social adotada por Marcuse, a imaginação é a unidade imediata entre o universal e o particular, sob o domínio do princípio do prazer. Por outro lado, toda a história subsequente do homem foi caracterizada pela destruição dessa unidade original, oprincipium individuationis, que separa a vida do indivíduo da vida do gênero. Nas palavras de Marcuse:

O principium individuationis, tal como implementado pelo princípio de realidade, dá origem à utilização repressiva dos instintos primários. A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio de realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão. As verdades da imaginação são vislumbradas, pela primeira vez, quando a própria fantasia ganha forma, quando cria um universo de percepção e compreensão – um universo subjetivo e, ao mesmo tempo, objetivo. Isso ocorre na arte. A análise da função cognitiva da fantasia conduz- nos assim à estética como “ciência da beleza”: subentendida na forma estética situa-se a harmonia reprimida do sensualismo e da razão – o eterno protesto contra a organização da vida pela lógica da dominação, a crítica do princípio de desempenho. A arte é talvez, o mais visível “retorno do reprimido”, não só no indivíduo, mas também no nível histórico-genérico. A imaginação artística modela a “memória inconsciente” da liberdade que fracassou, da promessa que foi traída. Sob o domínio do princípio de desempenho, a arte se opõe à repressão institucionalizada (MARCUSE, 1969, p. 134-135).

Todavia, Marcuse advertia para o fato de que a dimensão estética, assim como a imaginação, que é a sua faculdade mental constitutiva, não validam um princípio de realidade, em virtude de a dimensão estética possuir um caráter essencialmente “irrealista”. Nesse contexto, a estética conserva a sua liberdade justamente por não ter

eficiência e desempenho face à realidade. “Os valores estéticos podem funcionar na vida como adorno e elevação cultural ou passatempo particular, mas viver com esses valores é o privilégio dos gênios ou a marca distintiva dos boêmios decadentes.” (MARCUSE, 1969, p. 156).

O filósofo alemão retomou as teses kantianas enfatizando que, embora a função da estética – tal qual como está desenvolvida na Crítica do juízo – ainda forneça o melhor guia para se entender o âmbito da dimensão estética, seu empenho para reaver o conteúdo não repressivo se esvanece dentro dos rígidos limites impostos pelo método transcendental. Para Marcuse, foi a partir dos esforços de Schiller, enquanto derivação da concepção estética de Kant, que surgiu a noção de um novo modo de civilização além das fronteiras estabelecidas pela análise transcendental. Como foi a própria civilização que ‘aplicou ao homem moderno essa ferida’, só um novo modo de civilização poderá curá-la. A ferida é causada pela relação antagônica entre as duas dimensões polares da existência humana (MARCUSE, 1969).

[Schiller] diagnosticara a doença da civilização como um conflito entre os dois impulsos básicos do homem (os impulsos sensuais e formais) ou, melhor ainda, como solução violenta desse conflito: o estabelecimento da tirania repressiva da razão sobre a sensualidade. Por consequência, a reconciliação dos impulsos conflitantes envolveria a remoção dessa tirania – isto é, a restauração do direito de sensualidade. A liberdade teria de ser procurada na libertação da sensualidade, em lugar da razão, e na limitação das faculdades “superiores”, em favor das “inferiores”. Por outras palavras, a salvação da cultura envolveria a abolição dos controles repressivos que a civilização impôs à sensualidade. E é essa, com efeito, a ideia na Educação Estética schilleriana. Visa à fundamentação da moralidade em terrenos sensuais; as leis da razão devem reconciliar-se com os interesses dos sentidos (MARCUSE, 1969, p. 169).

Esse novo modo de civilização deveria ter por princípio orientador a liberdade, o que exige uma transformação restritiva tanto da razão quanto do impulso sensual36 e, por essa via, “a descarga adicional de energia sensual deverá conformar-se a uma ordem universal de liberdade” (Ibid.). O impulso lúdico seria o catalizador da libertação e, com a função de abolir o tempo no tempo, ele seria capaz de “reconciliar o ser e o devir, a mudança e a identidade. Nessa tarefa culmina o progresso da humanidade, rumo a uma forma superior de cultura.” (MARCUSE, 1969, p. 170).

36 Na obra Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud (1969), Marcuse faz

a opção pelo termo “sensualidade” em lugar da noção de “sensibilidade”, com o propósito de pôr em relevo que os sentidos não têm apenas a função cognitiva, mas também a função sensual, por se associarem ao princípio de prazer (CAMPOS, 2010).

Marcuse admitiu que o caráter idealista predominante na obra de Schiller não invalida a dimensão radical da sua proposta, no tocante à exposição dos elementos repressivos contidos na cultura vigente, considerando que a motivação dos seus postulados era de conduzir a civilização a uma cultura superior.

Essa incursão permitiu ao filósofo frankfurtiano aproximar as suas análises de caráter psicanalítico social da estética idealista, uma vez que os elementos contidos nas reflexões de Schiller, em torno da harmonia entre o impulso formal e o impulso sensível, são muito semelhantes aos de uma reconciliação entre o princípio de prazer e o princípio de realidade. Nas palavras de Marcuse (1969, p. 171-172):

Recordaremos o papel constitutivo que se atribui à imaginação (fantasia) no jogo e na exibição; a imaginação preserva os objetos daqueles processos mentais que se conservam livres do princípio de realidade repressivo; em sua função estética, eles podem ser incorporados na racionalidade consciente da civilização madura. O impulso lúdico representa o denominador comum entre os dois processos e princípios mentais.

O ponto de interseção entre as críticas idealista e materialista da cultura está no fato de que, para elas, a instituição de uma ordem não repressiva só se efetivaria quando a civilização atingisse um elevado nível de maturidade, aliando a satisfação das necessidades básicas a um gasto mínimo de tempo e de energia (física e mental). Além disso, uma e outra recusam a liberdade submetida ao domínio do princípio de desempenho. De modo diverso, para ambas, a noção de liberdade só teria sua realização plena por meio de um novo modo de existência que se manifestaria na base de necessidades existenciais universalmente gratificadas. “O reino da liberdade é visionado para além do domínio da necessidade: a liberdade não está dentro, mas fora da ‘luta pela existência.’” (MARCUSE, 1969, p. 172).

A luta contra o predomínio do racionalismo e a busca pela função cognitiva da sensualidade, dos aspectos sensíveis e corpóreos do homem marcou profundamente o pensamento contemporâneo. Por esse caminho podemos nos dirigir a Edmund Husserl, que, em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, de 1936, “pretendeu resgatar o mundo-da-vida de sua perturbadora opacidade à razão, permitindo assim uma renovação da racionalidade ocidental, que estaria desligada de suas raízes somáticas e perceptuais” (EAGLEATON, 1993, p. 20). A tarefa imposta pela fenomenologia husserliana foi de dotar o conhecimento científico de mundaneidade, de lembrar que “o corpo antes mesmo de chegar a pensar, é sempre um organismo sensivelmente experimentador e está no mundo de modo bastante diverso do de um

objeto numa caixa” (Ibid.). Todavia, a fenomenologia husserliana, cujo propósito era de se constituir enquanto estatuto filosófico, pressupunha uma redução37 que rompesse

nossa familiaridade com o mundo. A redução fenomenológica consiste em “suspender” ou “colocar em parênteses” crenças, conhecimentos, atitudes, teorias e ideias, com a finalidade de buscar a essência das coisas. Nessa direção, Merleau-Ponty, herdeiro da tradição fenomenológica, assumiu a tarefa de dar concretude ao legado transcendental de Husserl e, ao fundamentar os seus postulados na percepção e no corpo, defendeu que a razão deveria ser concebida nos termos de uma racionalidade encarnada38.

Na busca por um solo comum entre os aspectos sensível e racional, enquanto fundamento para qualquer proposta de construção do conhecimento, Merleau-Ponty estabeleceu uma crítica radical à dicotomia sujeito e objeto. Suas indagações se dirigiam a questionar o projeto moderno, herança clássica platônica, de separação entre consciência e mundo, particularmente ampliada na filosofia cartesiana, em que determina a consciência, res cogitans, sujeito cognoscente ou espírito, descrito como interioridade, e a coisa, matéria, res extensa ou objeto, definida como exterioridade.

Merleau-Ponty, em sua obra seminal Fenomenologia da percepção, publicada em 1945, defendeu o nosso reencontro com a camada pré-humana, lugar onde a experiência forja seus recursos selvagens antes de se acomodar à objetividade (em si) e/ou subjetividade (para si)39. A radicalidade da proposta rompe com o adquirido e se

37 Na obra O visível e o invisível, Merleau-Ponty (2009) desenvolve uma crítica à redução, que, para ele, é

oriunda de uma filosofia reflexiva idealista, “é o que Husserl punha francamente a nu quando dizia que toda redução transcendental é também redução eidética, isto é, todo esforço para compreender de dentro e a partir das fontes o espetáculo do mundo exige que nos separemos do desenrolar efetivo de nossas percepções e de nossa percepção de mundo, que nos contentemos com sua essência, que deixemos de nos confundir com o fluxo concreto de nossa vida para retraçarmos o andamento de conjunto e as articulações principais do mundo sobre o qual ela se abre.” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 52-53). Para aprofundar a análise sobre a redução fenomenológica proposta por Edmund Husserl, ver sua obra Investigações

lógicas: sexta investigação (1980).

38 “Merleau-Ponty referia-se ao logos estético como um tipo de racionalidade que afirma a comunicação

entre a lógica e o sensível, a razão e o corpo. Nesse arranjo epistemológico, essas dimensões não estariam separadas pelo entendimento, mas entrelaçadas na percepção e na dimensão estética. Merleau-Ponty ilustrou a reflexão corporal a partir da consideração da filmagem, em câmera lenta, do trabalho de Matisse: ‘Esse mesmo pincel que, visto a olho nu, saltava de um ato para outro, podia-se vê-lo meditar, num tempo dilatado e solene, numa iminência de começo do mundo, tentar dez movimentos possíveis, dançar diante da tela, roçá-la várias vezes, e por fim abater-se como um raio sobre o único traçado necessário [...]. Não considerou, com o olhar da mente, todos os gestos possíveis, e não precisou eliminá- los todos, exceto um, justificando-lhes a escolha. É a câmara lenta que enumera os possíveis. Matisse, instalado num tempo e numa visão de homem, olhou o conjunto aberto de sua tela começada e levou o pincel para o traçado que o chamava, para que o quadro fosse afinal o que estava em vias de se tornar [...]. ‘Tudo se passou no mundo humano da percepção e do gesto’ (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 46).” (NÓBREGA, 2009, p. 19, 28).

39Os termos Em Si e Para Si, que aparecem na crítica de Merleau-Ponty à tradição filosófico-científica,

foram desenvolvidos na filosofia de Jean-Paul Sartre, especialmente na obra O ser e o nada, de 1943, em que Sartre assegura a existência de um em si, definido por tudo aquilo que não possui consciência (matéria/objeto), e um para si, que designa a consciência humana. É importante destacar que, sobre essa questão, os dois filósofos receberam influências da leitura hegeliana, extraída dos cursos ministrados por

funda no precedente, no irrefletido, renunciando à ideia de representação do pensamento, como defendida na concepção kantiana. Para o filósofo francês, todo pensamento se expressa corporalmente, sendo, ao mesmo tempo, consciência e carne. Nóbrega (2016, p. 27) adverte que a consciência para Merleau-Ponty “não é transparente em si mesma, mas contaminada pelo engajamento no mundo, engajamento que só é possível, em última instância, pelo corpo na relação com o outro”. Assim, o corpo não é uma reunião de aspectos físico-fisiológicos e biológicos, mas um nó de significações vivas. Nesse contexto, é a carne que entrelaça o corpo e as coisas, ela converte em si o que é comum dos outros seres, facultando ao corpo o direito de coexistir com as coisas como se estivessem atados em uma mesma trama. Nas palavras de Merleau-Ponty (1991, p. 184):

A carne do sensível, esse grão concentrado que detém a exploração, esse optimum que a termina, refletem a minha própria encarnação e são a contrapartida dela. Há aí um gênero do ser, um universo com o seu “sujeito” e com o seu “objeto” sem iguais, a articulação de um no outro e a definição de uma vez por todas de um “irrelativo” de todas as “relatividades” da experiência sensível, que é fundamento de direito para todas as construções do conhecimento. Todo o conhecimento, todo o pensamento objetivo, vivem desse fato inaugural que senti, que tive com essa cor ou qualquer que seja o sensível em causa, uma existência singular que tolhia repentinamente o meu olhar e, contudo comprometia-lhe uma série indefinida de experiências, concreção de possíveis desde já reais nos lados ocultos da coisa, lapso de duração dado numa só vez.

A atividade artística orientou as análises de Merleau-Ponty sobre a experiência corporal como originária e fundante do mundo sensível. A obra de arte era entendida como um mundo em questão e, portanto, não poderia ser apreciada como uma réplica de um sensível, mas como um lugar de gestação que não conserva, mas recolhe em si, pela experiência corporal do artista, simultaneamente, sensação e pensamento, conhecimento e ação, sujeito e objeto. Nessa perspectiva, “não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 208).

A produção merleau-pontyana é comumente estudada em duas fases, uma fenomenológica e outra ontológica. A primeira seria a etapa em que o filósofo se Alexandre Kojève sobre a obra de Hegel: Fenomenologia do espírito, de 1807, na École Pratique des

Hautes Études, em Paris, entre 1933 e 1939. Na obra em destaque, Hegel apresentou uma reflexão sobre o

corpo e a consciência, entre o orgânico e o inorgânico, e estabeleceu a expressão dicotômica – em si e

para si – que posteriormente foi empregada por Sartre e criticada por Merleau-Ponty em sua proposta de

superação das oposições entre corpo e mente, interno e externo, sujeito e objeto. Destaca-se, ainda, que a interpretação de Hegel por Kojève foi uma das mais influentes do século passado. Além de Merleau- Ponty, alguns dos grandes pensadores franceses seguiram as lições de Kojève, como Georges Bataille, André Breton e Jacques Lacan. Para aprofundar a reflexão sobre os termos ver: Sartre (2005) e Hegel (2008).

dedicou às reflexões sobre a consciência40, e uma segunda, em que elaborou uma nova

ontologia a partir da experiência sensível do Ser bruto41. Destaca-se que o trabalho