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Estesia: mediação entre corpo e carne

CAPÍTULO II – AS IMAGENS DA ARTE NA REINTERPRETAÇÃO DO CORPO

2.2. A expressividade do corpo-próprio: invenção e cognição

2.2.1 Estesia: mediação entre corpo e carne

Os limites da fenomenologia foram imputados pelo próprio Merleau-Ponty, que, ao apresentar o projeto de trabalho para a sua candidatura ao Collège de France, em 1952, revisitou criticamente o seu percurso filosófico e circunscreveu os novos quadros do seu pensamento na expressividade como campo da verdade e da intersubjetividade (NÓBREGA, 2016), como lemos no trecho que segue:

No início, o filósofo que reflete sobre a percepção se retira do corpo que habita e mesmo das coisas as quais o corpo se dirige no exercício da vida, faz-se sujeito contemplativo. Correlativamente, as coisas percebidas se distanciam de nós, não sendo definidas por certo número de características e por leis de sucessão e de coexistência entre elas. O corpo próprio não é mais que um desses objetos, elevado tardiamente à dignidade do saber científico, mas como elas [as coisas], está destinado a uma explicação por ligação de função à variável. Em face de uma consciência filosófica em primeira pessoa, do sujeito conhecedor ou transcendental, que é só sujeito, abre-se um universo em terceira pessoa que são apenas objetos (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 17; 18 apud NÓBREGA, 2016, p. 49-50).

Nota-se que a revisão dos termos sujeito e objeto, revelada nas palavras do filósofo, adverte sobre o dualismo que a Fenomenologia da percepção buscou superar, mas que não logrou o êxito pretendido em virtude de ter permanecido tributário das filosofias da consciência. O cogito tácito ou pré-reflexivo, como defendido por Merleau-Ponty54, termina por estabelecer vinculações com o velho prejuízo idealista, considerando que a noção de corpo passa a desempenhar a função análoga a do conceito de sujeito e a de consciência perceptiva, derivada da análise do corpo fenomenal, não se depreendendo totalmente da herança conceitual clássica da subjetividade (SILVA, 2010, p. 89).

O trânsito entre o mundo natural e o mundo humano pode ser compreendido a partir do deslocamento realizado por Merleau-Ponty da sensorialidade para a corporeidade, exatamente no ponto em que refletiu sobre as relações entre estesia e libido. Esse é o ponto em que Merleau-Ponty procurou ultrapassar a noção de corpo sujeito, estabelecendo uma reflexão em torno da natureza, do sensível e do esquema corporal, liberada dos pressupostos das filosofias da consciência.

54 Nas notas de O visível e o invisível Merleau-Ponty atestou a impossibilidade do cogito tácito como

pretendido na Fenomenologia da percepção advertindo: “O que chamo de cogito tácito é impossível. Para possuir a ideia de ‘pensar (no sentido de ‘pensamento de ver e de sentir’), para fazer ‘redução’, para retornar à imanência da consciência de... é preciso possuir palavras.” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 167).

O empreendimento do filósofo passou a ser o corpo estesiológico, que se move e que deseja. Nóbrega (2015, p. 72) diz que Merleau-Ponty, ao tematizar o corpo estesiológico, não se referiu mais a um eu ou a um sujeito, recorrendo a meios intermediários fortemente marcados pela motricidade, pelo desejo, pelos gestos e sua expressividade. O que se vê nos cursos sobre a Natureza é o deslocamento de uma fenomenologia para a experiência propriamente do ser bruto ou ser selvagem e a revisão de todas as noções caras ao filósofo. Para Claude Imbert (1997, p. 78 apud NÓBREGA, 2015 p. 72), Merleau-Ponty, “descreve novas ordens de expressão, ultrapassando a percepção do movimento dada pela Gestalt, abrindo uma nova gama, um alfabeto, uma paleta sob a cinestesia do corpo e de sua motricidade.” O sentido de estesiologia carrega um novo traçado que manifesta e apresenta uma filosofia da carne e, oposta às representações conscientes, designa o sentir mesmo. Nessa perspectiva, a carne diz nossa humanidade pelo corpo e nossa especificidade por sua fragilidade, não há uma relação antagônica entre o humano e o natural, mas inerência. É por meio do corpo que o homem se faz homem e não por uma capacidade de reflexão que se instala no corpo (NÓBREGA, 2016, p. 81).

O termo estesiologia foi largamente tematizado nos últimos cursos do filósofo francês, ministrados no Collége de France entre 1956 e 1960, transcritos e publicados integralmente após 34 anos da sua morte, em 1995, sob o título La nature (A natureza). No primeiro esboço, Merleau-Ponty revisitou a noção de esquema corporal, sintetizando-o como “corpo que se move e isso quer dizer corpo que percebe” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 337). Essa retomada anunciou a emergência de uma teoria da carne, concebida enquanto corpo das sensações e das coisas implicadas nele. Contudo, a reedição da noção de esquema corporal nada tem a ver com a ideia de uma consciência que “desceria” num corpo, mas, pelo contrário:

É o enrolamento de um corpo-objeto sobre si mesmo ou, antes, trégua de metáforas: não é um sobrevoo do corpo e do mundo por uma consciência, é o meu corpo como interposto entre o que está diante de mim e o que está atrás de mim, o meu corpo levantado diante das coisas levantadas, um circuito com o mundo – Einfühlung [empatia], com o mundo, com as coisas, com os animais, com os outros corpos (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 338).

Trata-se, portanto, de compreender a carne como visibilidade do invisível e a estesiologia enquanto o órgão dos sentidos, onde se figura a visibilidade da invisível “tomada de consciência”. Para Merleau-Ponty, o corpo, como esquema corporal, o corpo estesiológico, a carne, já nos deu a Einfühlung [empatia] do corpo com o ser

percebido e com os outros corpos, isso significa dizer que a Einfühlung já é desejo, libido, projeção – introjeção, identificação –, a estrutura estesiológica do corpo é, portanto, uma estrutura libidinal, a percepção, um modo de desejo, uma relação de ser e não de conhecimento (MERLEAU-PONTY, 2006). Percebe-se aqui que as análises de Merleau-Ponty se dirigem à psicanálise55, à busca por um assentimento do mundo, uma anuência à vida e a uma comunhão com o outro. Para o filósofo, paralelamente ao estudo do corpo estesiológico, seria necessário um estudo do corpo libidinal, uma retomada de todas as contribuições da psicanálise para a teoria do sujeito que deseja. Em seus termos:

O Eros aliás, não sendo entendido como um efeito ou uma força orientada, mas como uma elevação, uma espécie de ebulição, ‘um vazio sempre futuro’ – o desejo apresenta o mesmo problema que a percepção = um espírito não desejaria, assim como não perceberia. Qual é o Eu do desejo? É o corpo, evidentemente (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 340).

Esse corpo, entretanto, não é um feixe de funções pré-estabelecidas, anônimas, nem simples meio ou instrumento, mas um corpo que, por si mesmo, deseja algo que não seja ele mesmo ou seus semelhantes. E o deseja segundo a sua própria lógica, por sua própria disposição, por seu próprio peso, como uma coisa percebida que se percebe, ou seja, um corpo como “massa de prazeres e de dores, que não são fechados sobre si mesmos, mas nos servem para sofrer e desfrutar do mundo e dos outros (prazer e realidade), aqui também ultrapassagem não frontal mas lateral, por desvio” (Ibid., 340- 341). Essas indicações sugerem um aprofundamento da leitura da psicanálise freudiana já iniciada nos trabalhos anteriores56 do filósofo, como, por exemplo, em Fenomenologia da percepção, quando tematizou o corpo como ser sexuado.

55 Na psicanálise freudiana o corpo funda-se na noção de estrutura, para qual a significância vale mais do

que o sentido perceptivo, de modo diverso aos pressupostos de Merleau-Ponty que priorizam a percepção (AYOUCH, 2012). Sobre o corpo na psicanálise de Freud, Cristina Lindenmeyer (2012, p. 342) atesta: “No seio da teorização psicanalítica, o corpo foi objeto de numerosos debates e divergências teóricas. Portanto, a posição freudiana é clara: o corpo não se reduz ao puramente orgânico, nem se desfaz de seus engajamentos como propõe a ‘psicossomática’. Para Freud, ele é o lugar do qual emerge o pulsional e seu meio de chegar à satisfação, seja ela no prazer ou no desprazer. Daí viria sua capacidade de se transformar em um ‘Teatro’ (McDougall, 1989) e colocar em cena os conflitos inconscientes mais variados. Ao longo da obra freudiana, o corpo toma formas diversas: o corpo na conversão histérica, o corpo erógeno, o corpo pulsional, o corpo do narcisismo, ou o Eu corporal, testemunhando, assim, sua função central na elaboração do aparelho psíquico. Em todas essas figuras, o corpo guarda uma coreografia (Lindenmeyer, 2010) que evolui ao longo da elaboração teórica. Sem sombra de dúvida, o corpo possui seu lugar na teorização freudiana.”

56 A relação com a psicanálise é constatada em todo o decurso da obra de Merleau-Ponty, notadamente na Fenomenologia da Percepção (1945); nos Cursos sobre a Psicologia e Pedagogia da criança na Sorbonne (1949-1952); e na conferência proferida nos Encontros Internacionais de Genebra sobre O homem e a Adversidade em 1951, publicada em Signes (1960). Verifica-se também referências diretas à

Muitas críticas são dirigidas à leitura da psicanálise freudiana operada pela fenomenologia. Para compreender esses entraves com mais profundidade seria preciso retomar toda a tradição fenomenológica e nomes como Heidegger, Binswanger e Sartre. Entretanto, as análises desta tese estão limitadas ao que é apresentado sobre a psicanálise na obra de Merleau-Ponty. É importante destacar inicialmente que a leitura da psicanálise realizada por Merleau-Ponty recebeu várias críticas dirigidas por J-B. Pontalis, André Green, Cornelius Castoriadis e Jacques Lacan. Todos concordavam em pensar que o filósofo falhara em compreender o inconsciente freudiano, ao reduzi-lo ao implícito, ao ambíguo ou ao sobredeterminado. Algumas das dificuldades em torno dessa aproximação são problematizadas por Thamy Ayouch (2012) em seu texto: Merleau-Ponty e a psicanálise: da fenomenologia da afetividade à figurabilidade do afeto, que, embora situe toda a obra de Merleau-Ponty nos termos de uma fenomenologia, não realizando, portanto, uma análise mais aprofundada sobre as nuances e deslocamentos operados no interior do pensamento do filósofo, notadamente nos últimos escritos do filósofo francês, apresenta importantes contribuições para as análises sobre a natureza distinta dos dois campos, no que se refere aos pontos de partidas e seus alcances. Ayouch (2012) nomeia os principais entraves para um quadro comparativo entre fenomenologia e psicanálise, como, por exemplo, no que diz respeito à atestação, ao enquadramento epistemológico e ao caráter clínico. Contudo, no tocante à perspectiva de Merleau-Ponty especificamente, ela situa a questão do inconsciente como sendo a problemática central dessa relação. Em uma leitura da obra Fenomenologia da percepção e retomando os preceitos husserlianos, Thamy Ayouch (2012, p. 182) afirma:

O inconsciente fenomenológico invita a concepção de uma continuidade entre consciência e inconsciente: as impressões apagadas estão no rasto das ainda conscientes. A este inconsciente fenomenológico fundamentado sobre o escurecimento perceptivo se opõe o inconsciente simbólico da psicanálise, articulado por uma instituição simbólica encarnada na linguagem e nas redes de relações e intercâmbios humanos. O inconsciente tematizado por Freud ou Lacan se inscreve na instituição simbólica: ele procede da estrutura dos significantes e do grande Outro. Portanto, ele não provém de nenhuma percepção, mas precisamente de lacunas, buracos no sistema perceptivo. O inconsciente é modelizado pelo automatismo de repetição: ele não é nenhuma percepção apagada, mas um desencontro, uma não-percepção, um não-realizado.

(1956-1960); e nas notas de O visível e o invisível (1961), sendo que esta seção se ocupou mais detidamente desses dois últimos títulos.

Além das divergências entre as ideias do inconsciente da psicanálise freudiana e as proposições sobre o inconsciente na fenomenologia de Merleau-Ponty, também fica evidente que ambas as investigações possuem alvos distintos no que se refere à relação entre expressão e sentido. O sentido desenvolvido por Merleau-Ponty caracteriza-se como expressão diametralmente inscrita no corpo. Em a Fenomenologia da percepção, a expressividade do corpo é uma operação primordial de significação em que aquilo que é expresso não existe apartado da expressão, e onde os signos mesmos induzem o seu sentido para o exterior. A linguagem é compreendida como uma extensão do gesto corporal na sua relação com o mundo sensível. A articulação linguística é, portanto, apresentada como uma conduta do corpo que confere uma significação ao mundo. Por conseguinte, a fenomenologia de Merleau-Ponty oferece uma continuidade entre a linguagem e os fenômenos pré-linguísticos, como níveis diferentes de uma única operação expressiva. Para Thamy Ayouch (2012), a expressividade corpórea como descrita pelo filósofo francês é característica do afeto, em seus termos, é uma figurabilidade do afeto57.

Por essa ótica, o sentido encarnado na expressividade do corpo, como assegurado por Merleau-Ponty, se opõe à significância própria do modo de funcionamento do inconsciente. A diferença fica evidente quando comparada ao fenômeno da histeria descrito por Freud, como assegura Ayouch (2012, p. 180-181):

Para Freud, a dor histérica tem um estatuto singular: ela é um elemento material provindo de uma verdadeira linguagem do corpo, mas que contém em si, simbolicamente, uma outra lógica psíquica. O sintoma histérico se inscreve unicamente sobre um corpo já investido pela linguagem. Nesse sentido, a continuidade entre corpo e linguagem apontada pela fenomenologia é invertida aqui: não é o corpo que induz a linguagem a partir da sua expressividade, determinando a palavra como continuação do gesto. Ao revés, a linguagem precede o corpo, vivido e sentido unicamente a partir de certas ‘representações de palavras’.

Outra leitura crítica arguta dirigida aos pressupostos de Merleau-Ponty foi elaborada por Jacques Lacan, contemporâneo e amigo do filósofo. Em O seminário livro 11: quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1998), o psicanalista fez

57 A autora realiza uma aproximação da psicanálise com a fenomenologia de Merleau-Ponty a partir da

expressão figurabilidade do afeto. Trata-se de estabelecer uma vinculação entre o que Merleau-Ponty teoriza enquanto um espaço intercorporal e intersensorial [entre a minha percepção e a do outro], que constitui a base da intersubjetividade e as análises da área transicional do psicanalista Donald Woods Winnicott. Para aprofundar essa proposta de trabalho, sugerimos a leitura: AYOUCH, Thamy. Merleau- Ponty e a psicanálise: da fenomenologia da afetividade à figurabilidade do afeto. Jornal de Psicanálise. V. 45, nº 83. São Paulo, 2012. (p. 173-190).

menção às referências de Merleau-Ponty à psicanálise de viés fenomenológico, mas se deteve de modo demorado às suas notas derradeiras, contidas em O visível e o invisível. Lacan evidenciou a possibilidade de o fenomenólogo ter desenhado um caminho muito próximo ao trabalho analítico da psicanálise e à própria noção de inconsciente, ao deslocar suas reflexões do corpo para a carne do mundo, como se lê no trecho que segue:

Mas se vocês se remetem ao texto dele, vocês verão que é nesse ponto que ele prefere recuar para nos propor retornar às fontes da intuição concernente ao visível e ao invisível, de voltar ao que está antes de qualquer reflexão, tética ou não-tética, a fim de discernir o surgimento da visão em si mesma. Trata-se para ele de restaurar – pois, nos diz ele, só pode se tratar de uma reconstrução ou de uma restauração, e não de um caminho percorrido no sentido contrário – de reconstituir a via pela qual pôde surgir, não do corpo, mas de algo que ele chama a carne do mundo, o ponto original da visão. Parece que vemos assim, nessa obra inacabada, desenhar-se algo como a pesquisa de uma substância inominada da qual eu mesmo, o vidente, me extraio. Das raias de uma armadilha, ou raios, se vocês quiserem, de uma cintilação da qual de começo sou uma parte, surjo como um olho, ganhando, de algum modo, emergência por aquilo que eu poderia chamar a função

da voyura. Daí emana um odor selvagem, deixando entrever, no

horizonte, a caçada de Artêmis - cujo toque parece associar-se a esse

momento de trágico desfalecimento onde perdemos aquele que fala.

Mas era mesmo esse, entretanto, o caminho que ele queria tomar? Os

traços que nos restam da parte por vir de sua meditação nos permite duvidar disto. As referências que ali se fazem, muito especialmente ao inconsciente propriamente psicanalítico, nos deixam perceber que ele estaria talvez se dirigindo para uma pesquisa original em relação à tradição filosófica, para essa nova dimensão da meditação sobre o

sujeito que a análise permite, a nós outros, traçar. Quanto a mim, só

posso me sentir tocado por algumas dessas notas, para mim menos enigmáticas do que parecerão a outros leitores, por recobrirem muito exatamente os esquemas – especialmente um deles – que serei levado a promover aqui. Leiam, por exemplo, a nota concernente ao que ele chama reviravolta em dedo de luva, na medida em que aí parece despontar – vejam de que modo o couro é invólucro do pelame nas luvas de inverno - que a consciência, em sua ilusão de ver-se vendo-

se, encontra seu fundamento na estrutura em reviravolta do olhar

(LACAN, 1998, p. 81-82).

Lacan, embora reconhecesse a importância da reversão do visível em invisível enquanto uma dialética do olho e do olhar na base do engano do imaginário, contestou a ausência da dimensão simbólica na obra de Merleau-Ponty (AYOUCH, 2012). Como destacado anteriormente, outra questão que adensa as disparidades entre as duas leituras são as relações entre expressão e sentido, pauta que Lacan também pôs em relevo ao retomar as questões pertinentes ao sujeito e à primazia dada ao corpo nas teses de Merleau-Ponty, que limitam a proposta a um plano meramente imaginário, sem valorar

o plano simbólico que exige a palavra e a linguagem como instituintes da expressão do corpo. Contudo, em uma análise mais detida das indagações de Merleau-Ponty sobre o acontecimento e a expressão, em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, ensaio publicado em 1952 na revista Les Temps Modernes, é possível examinar que o filósofo francês não pretendia estabelecer um corte extremo ou uma distinção radical entre apreender o real na dimensão simbólica e na ordem do imaginário, como fica evidenciado no fragmento subsequente:

Quando se passa da ordem dos acontecimentos para a da expressão, não se muda de mundo: os mesmos dados a que se estava submetido tornam-se sistema significante. Aprofundados, trabalhados pelo interior, libertos desse peso sobre nós que os fazia dolorosos ou ofensivos, tornados transparentes ou mesmo luminosos, e capazes de esclarecer não só os aspectos do mundo que lhes assemelham, mas também outros, por mais que tenham sido metamorfoseados, não deixam de estar presentes, o conhecimento que podemos obter deles nunca substituirá a experiência da própria obra. Mas ele ajuda a avaliar a criação e nos ensina essa superação sem sair do lugar que é a única superação sem volta. Se nos instalarmos no pintor para assistir esse momento decisivo em que aquilo que lhe foi dado de destino corporal, de aventuras pessoais ou de eventos históricos cristaliza-se no tema, reconhecimentos que a sua obra nunca é um efeito, é sempre uma resposta a esses dados, e que o corpo, a vida, as paisagens, as escolas, as amantes, os credores, as polícias, as revoluções, que podem sufocar a pintura, constituem também o pão de que ela faz seu sacramento. Viver da pintura é também respirar esse mundo – sobretudo para quem vê no mundo algo por pintar, e todos os homens são um pouco esse homem (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 94-95). Embora seja imperativo considerar as oposições e contrapontos apresentados, torna-se inegável que a apreciação de Merleau-Ponty da obra de Freud, desde a Estrutura do comportamento (1942) até as últimas notas de O visível e o invisível (1961), confere musculatura às suas teses sobre o primado da percepção, da corporeidade e da sensorialidade. A vinculação dos últimos cursos de Merleau-Ponty com os postulados da psicanálise de Freud fica evidente quando a noção de desejo ratifica a estesiologia defendida pelo filósofo francês. Sobre essa aproximação, Nóbrega (2015, p. 63) afirma:

O corpo que tem sentidos é também um corpo que deseja, e a estesiologia se prolonga em uma teoria do corpo libidinal. Os conceitos teóricos do freudismo são ratificados e afirmados quando são compreendidos por meio da corporeidade tornada, ela mesma, pesquisa do fora no dentro e do dentro no fora, poder global e universal de incorporação. Assim, a libido freudiana não é uma enteléquia do sexo, nem o sexo uma causa única e total, mas uma dimensão inelutável, fora da qual nada de humano poderia permanecer, porque nada de humano é, com efeito, incorpóreo.

Nessa perspectiva, Merleau-Ponty realizou uma retomada ao tema do esquema corporal sob uma nova chave de leitura: a da psicanálise, que permite a compreensão profunda das relações entre o eu consciente e o inconsciente. Para tanto, o estudo das estruturas inconscientes da existência sugere um corpo aberto a um mundo como um campo denso de eventos que mobilizam o sujeito e a plasticidade do desejo