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Lygia Clark: da profanação do objeto artístico ao corpo como obra de arte

CAPÍTULO III – CORPO E DISCIPLINA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

3.2. Lygia Clark: da profanação do objeto artístico ao corpo como obra de arte

Lygia Clark95 não desenvolveu análises teóricas das produções de arte da sua época, como o artista Hélio Oiticica, embora tenha elaborado reflexões sobre o processo prático e intencional que constituíram os seus trabalhos através de diários e correspondência com outros artistas, críticos e/ou historiadores de arte. Contudo, a artista demonstrou interesse em inteirar-se das discussões filosóficas promovidas por seus colegas no campo teórico da arte e das leituras que favoreciam a sustentação do movimento Neoconcreto. Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Hélio Oiticica foram amigos e principais interlocutores de Lygia Clark no tocante às bases teóricas da arte e do movimento Neoconcreto. Sobre as discussões teóricas, Lygia Clark afirmou: “Fui engravidada pelos ouvidos”, “(...) não aceito coisa alguma de quem quiser me catalogar. Só aceito as críticas de quem seja capaz de vivenciar comigo a sensibilidade e a

95 A artista Lygia Clark nasceu na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, em 23 de

outubro de 1920. Saiu da sua terra natal para estudar com Roberto Burle Marx (1909-1994) no Rio de Janeiro, em 1947, e posteriormente foi à França dar continuidade aos seus estudos com Fernand Léger (1881-1955), entre 1950 e 1952. Ao retornar ao Brasil, integrou-se ao grupo de artistas neoconcretos. Lygia Clark foi convidada a lecionar na Faculdade de Artes Plásticas da Sorbonne-Paris, entre 1973 e 1976. Em 25 de abril de 1988 (aos 67 anos), Lygia Clark faleceu de infarto no Rio de Janeiro. Encontram- se como principais referências práticas na de obra de Lygia Clark (e dos neoconcretos) os artistas Piet Mondrian (1872-1944), Kazimir Malevich (1878-1935), Naum Gabo (1890-1977) e Vladmir Tatlin (1885-1953). Como destacado anteriormente, os referidos artistas fomentaram as mudanças no campo da arte durante o início do século XX. Mesmo sob essa influência, os neoconcretos buscavam meios de ultrapassar a técnica mecanicista e o objetivismo do projeto construtivo brasileiro.

experiência que me levaram a um quadro ou a uma atitude.” (CLARK apud FABBRINI, 1994, p. 12).

Diferentemente do que a cultura moderna ocidental produziu em torno da noção de artista, como a figura de um criador, e de modo análogo ao título requerido pela ciência e pela filosofia moderna cartesiana, o de “um deus”, Lygia Clark renegou a divindade e o gênero patriarcal imposto por essa noção de artista (deus), ao afirmar em uma carta escrita em Paris, no ano de 1969, endereçada a Mário Pedrosa:

Tomei consciência de que, na medida em que quase todos os artistas, hoje, se vomitam a si mesmos num processo de grande extroversão, eu, solitária, engulo, cada vez mais, num processo de introversão, para depois fazer a ovulação, que é miseravelmente dramática, um ovo de cada vez. Depois é só engolir novamente, introverter-se até quase a loucura, para botar um único ovo que nada tem de inventado, mas sim de gerado... Loucura? Não sei. Só sei que é a minha maneira de me amarrar ao mundo, ser fecunda e ovular! (CLARK apud BRETT, 2001, p. 32).

Segundo Brett (2001), as imagens da deglutição e da ovulação revelam a evolução do trabalho de Lygia Clark das proposições geométricas para a dimensão orgânica e corporal, além de demonstrar o processo em que o outro, convencionalmente mero espectador, redescobre sua expressividade e criatividade, tornando-se sujeito da sua própria experiência, como em “meu grande ego me fazia dar tudo ao outro, até a autoria da obra” (CLARK apud BRETT, 2001, p. 33).

Como se viu, nas intervenções dos artistas Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark as obras perdiam o seu caráter meramente ilustrativo, figurativo e simbólico e passavam a integrar o mundo da vida, interagindo de modo frontal com o real.

No ano posterior à publicação do Manifesto Neoconcreto, Lygia Clark levou o grande prêmio da VI Bienal, com a escultura “Bichos”, construções geométricas de estrutura metálica que eram articuladas por meio de dobradiças e que, para ganhar sentido, precisavam ser manipuladas pelo espectador. Foi nesse momento que Lygia Clark abandonou o suporte da moldura, o espaço bidimensional do quadro, e se abriu para o real, para o espaço tridimensional. A proposta da artista provocou a dissolução da fronteira entre a obra de arte e o espectador, a profanação do objeto artístico e a ruptura com o lócus tradicional da arte. Fazem parte dessa etapa as esculturas das séries “casulos” e “bichos”, de 1958-1960, que marcaram o momento em que a artista retirou a obra da tela e mergulhou no espaço tridimensional. Segundo Brett (2001, p. 33), é o momento em que “a superfície plana passa a esconder um espaço interior (Casulos,

1958) (Figura 25). O objeto estático pendurado na parede desce para o chão e se reconstitui com um grupo de plano móveis (Bichos, 1960)” (Figura 26).

Figura 25 - Lygia Clark - Casulo, 1958. Fonte: Barcelona - Fundació Antoni Tàpies. Disponível em:

<http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/outras.html> Acesso em: 20 mar. 2017

Figura 26 - Lygia Clark - Bichos, 1960. Fonte: MoMa – New York

Disponível em:

<https://www.moma.org/explore/multimedia/audios/388/6732?language=pt> Acesso em: 20 mar. 2017

A trajetória artística de Lygia Clark foi marcada por rupturas e descontinuidades internas, contudo, há uma coerência no sentido da busca pelo entrelaçamento entre o sujeito e o objeto, entre corpo e mente, entre o visível e o invisível e a defesa por uma experimentação orgânica da arte como a própria encarnação da vida humana. Embora não se possa afirmar que Lygia Clark fundamentou as suas produções de arte na

fenomenologia de Merleau-Ponty, é inegável que a artista tenha demonstrado em sua trajetória um modo fenomenológico de apreensão do mundo, notadamente ao eleger o corpo como a própria obra de arte. Nas palavras de Lygia Clark:

Em geral, a arte sai da barriga, não da cabeça (...) do centro nevrálgico do corpo humano, onde tudo que importa tem sua origem mais profunda.

(...) Cada vez que ataco uma nova fase de minha obra, experimento todos os sintomas da gravidez. Desde que a gestação começa, eu tenho as verdadeiras perturbações físicas, a vertigem, por exemplo, até o momento em que chego a identificar, reconhecer esta nova expressão de minha obra em minha vida de todos os dias, (...) vida-corrente, espontânea e natural, como o ato de comer (CLARK apud FABBRINI, 1994, p. 12).

A pesquisadora de arte Maria Alice Milliet, em seu livro Lygia Clark: obra- trajeto (1992), assegura que o neoconcretismo recorreu ao pensamento encarnado, que não é dissociado do corpo, e que se configura enquanto aspecto inalienável de todo o conhecimento. Sobre esse registro, a arte neoconcreta em sua expressividade se vincula incontestavelmente com a apreensão fenomenológica do mundo, “seu sentido deve transparecer na interseção das experiências individuais, na engrenagem de umas com as outras, nesse nó de relações. Não teme a contaminação da mente pelo corpo, nem cair no caótico subjetivo.” (MILLIET, 1992, p. 92). No neoconcretismo a afirmação completa da integração entre o domínio psicossensorial do homem era a exigência para torná-lo capaz de gerar uma objetividade mais profunda, porque só sob essa condição ela seria indissociada da sua subjetividade (Ibid.). Nesse sentido, não há uma predominância entre o que é visível objetivamente e aquilo que a obra provoca no interior/invisível das nossas sensações corpóreas, em outros termos, há uma ambiguidade própria na tessitura do fazer do artista.

As fases da obra de Lygia Clark apresentaram uma constante interrogação e uma intensa inquietação. Percebe-se, particularmente a partir da segunda etapa da trajetória da artista, uma produção artística que reforçava a poética da não representação, a busca por uma significação que deveria ser tecida no interior da própria experiência, que não se referia a nenhum objeto dado e/ou aos significados comumente atribuídos a ele. O sentido da obra deveria ser estabelecido na interação entre o sujeito/espectador e o objeto. Desse modo, havia um estímulo duplo, a obra convidava o espectador, que, a partir da sua exploração, ampliava o campo de potencialidades e de sentidos do objeto artístico, independentemente da catalogação que ele tivesse recebido antes. “A obra passa a emanar, receber vida e se transforma nas mãos do espectador, ela passa a ser mais vulnerável, ‘mais humana’, mais ‘orgânica’. Os títulos que Lygia Clark atribui às

suas obras revelam esse ‘envolvimento contínuo e cada vez mais intenso com o mundo’” (MALUF, 2007, p. 25). Nesse sentido, observa-se que a artista, no momento em que se retirou do espaço bidimensional da moldura, dedicou-se à construção espacial tridimensional, em que a participação ativa do espectador era primordial para o acontecimento da obra. Percebe-se que a artista demonstrou, nessa etapa, uma aproximação maior das questões relativas à natureza e aos seres vivos, como evidenciou nas séries Casulos (1958) e Bichos (1960).

A fase intermediária, que marcou a ruptura da produção de Lygia Clark com o objeto artístico, inaugurada em 1964 com a proposição Caminhando, foi caracterizada pelo contato cada vez maior com o público. Nela, “as faces opostas de um plano retangular se tornam uma única e contínua superfície de Moebius96. Metal rígido vira borracha flexível, capaz de assumir qualquer posição, lugar ou postura” (BRETT, 2001, p. 33). Nesse momento o espectador passa a fazer parte da obra, por meio da sua interação com o objeto: do olho para o tato e do tato para um conjunto de sentidos, até sua integração total à obra, que vai do conjunto de sentidos para o corpo inteiro. São experiências emblemáticas do período intermediário: Caminhando97 (1964), Trepantes (1964) e Máscaras Sensoriais (1967) (Figura 27, Figura 28 e Figura 29, respectivamente).

96 De acordo com Ronaldo Brito (1999), ao buscar procedimentos mais abertos em torno de geometrias

não-euclidianas, distintos do pensamento mecanicista em arte, os neoconcretos, notadamente Lygia Clark e Lygia Pape, desenvolveram produções nas quais utilizaram a faixa de Möebius, criada em 1858 pelo matemático e astrônomo alemão, August Ferdinand Möebius. A figura geométrica que representa o espaço topológico, também é citada por Jacques Lacan, que a descreve como “forma tridimensional de toro”, em suas análises sobre as relações entre real, imaginário e simbólico; e por Rudolf Laban, que a nomeia como Leminiscate, incorporando a figura às suas reflexões em torno do movimento do corpo na dança. Segundo Laban: “O matemático e astrônomo A. F. Moebius (1790-1868) descobriu uma superfície a qual descreveu como não tendo ‘outro lado’, por exemplo, uma superfície de um lado da qual se pode chegar a seu outro lado sem atravessar uma extremidade”. LABAN, Rudolf. The Language of movement: guidebook to choreutics. Boston: Plays, 1974, p. 98.

97 A proposição Caminhando representa um dos momentos mais radicais da trajetória da artista. Nos

termos da própria Lygia Clark (2006, p. 352): “não consigo comunicar essa mudança de conceito que para mim era tão profunda e radical dividindo a arte entre ‘o que já era’ e o que poderia ser”.

Figura 27 - Lygia Clark - Caminhando, 1964. Fonte: MoMa – New York Disponível em:

<https://www.moma.org/explore/multimedia/audios/388/6736>Acesso em: 01 Mai 2018.

Figura 28 - Lygia Clark - Trepante, 1964. Fonte: Barcelona - Fundació Antoni Tàpies. Disponível em:

<http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/ou tras.html> Acesso em: 20 mar. 2017

Figura 29 - Lygia Clark - Máscaras sensoriais, 1967. Fonte: Barcelona - Fundació Antoni Tàpies.

Disponível em:

<http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/outras.h tml> Acesso em: 20 mar. 2017

Ainda durante esse período, as produções da artista estabeleceram o corpo como a própria unidade artística, passando a dar ênfase direta à vida, à estrutura orgânica humana e ao vínculo incindível da corporeidade e da sensorialidade do participante com o acontecimento da obra. A proposição Caminhando (1964), de Lygia Clark, foi representativa do trânsito entre a “descoberta do corpo” para uma “reconstituição do corpo”, através de estruturas supra e intrassensoriais, e do ato na participação coletiva, que culmina numa forte estruturação ético-individual (OITICICA, 2011, p. 92). Nessa perspectiva, foram emblemáticos os Objetos Relacionais: Ar e pedra (1966), Respire comigo (1968), O Eu e o Tu: Roupa-corpo-roupa (1967), Máscara abismo (1968), e a instalação A Casa é o Corpo (1968) (Figura 30 e Figura 31), apenas para citar alguns. Essas propostas consolidaram as dimensões participante e multissensorial, além de terem situado o processo criativo da artista enquanto um dispositivo para a interconexão entre espaço interno e externo, corpo e mundo, eu e o outro (BRETT, 2002).

Figura 30 - Lygia Clark - O Eu e o Tu: Roupa-corpo-roupa, 1968.

Fonte: Associação Lygia Clark – Brasil

Disponível em: < http://cso.fba.ul.pt/ > Acesso em: 20 mar. 2017

Figura 31 - Lygia Clark - A casa é o corpo: labirinto, 1968. Fonte: MoMa – New York

Disponível em: < https://www.moma.org/explore/multimedia/audios/388/6789> Acesso em: 20 mar. 2017

No decorrer dos anos de 1970 a 1975 Lygia Clark ministrou aulas na Sorbonne e, nesse período, desenvolveu propostas coletivas. Entre as experiências realizadas com

os alunos estão: Baba Antropofágica98 (1973), Túnel (1973) e a Rede de elástico (1974)

(Figura 32, Figura 33 e Figura 34). Nessas proposições, o corpo se dissolvia em outros corpos para ser reconstituído por meio de outras percepções. A proposta da Rede de elástico (Figura 34), por exemplo, provocava o contato, a relação e o afecto (no sentido de ser afetado, tocado, perturbado, contaminado, etc.) por si mesmo através do corpo do outro e pelo outro a partir do seu próprio corpo. Era uma rede constituída por filetes de elásticos que iam sendo entrelaçados por várias pessoas e que se esparramava esticada no ar formando um corpo único de vários corpos ligados e tensionados por ela (COSTA, 2012). O movimento do corpo, possibilitado nessa proposição, ganhava uma expressão intencional de situação no mundo, para além do gasto energético, para além da conservação da vida fisiológica e biológica, o sentido de organicidade foi ampliado para a dimensão de uma reconstrução que fundia o corpo individual num todo coletivo.

Figura 32 - Lygia Clark - Baba Antropofágica, 1973.

Fonte: Post.at. MoMa (Notes on Modern & Contemporary art around the globe)

Disponível em: <http://post.at.moma.org/content_items/1031-part-3-affective-geometry- immanent-acts-lygia-clark-and-performance>. Acesso em: 30 abr. 2018.

98 “Nessa fase a artista se apoia na antropofagia de Oswald de Andrade, mais especificamente, na ideia de

devoração do outro que a sustenta, para simbolizar uma vertente importante da sua própria sintomática, a tendência de incorporar em si todas as diferenças. A partir do momento que as digere, as experimenta, elas perdem as fronteiras existentes na cultura” (BITTENCOURT, 2002, p. 188).

Figura 33 - Lygia Clark - Túnel, 1973. Fonte: Play Art

Disponível em: < http://www.playart.org/essay_difficultcomm.php >. Acesso em: 30 abr. 2018.

Figura 34 - Lygia Clark - Rede de elástico, 1974.

Fonte: Post.at. MoMa (Notes on Modern & Contemporary art around the globe)

Disponível em: < http://post.at.moma.org/content_items/1007-part-2-lygia-clark-at-the-border- of-art>. Acesso em: 30 abr. 2018.

Lygia Clark terminou a sua trajetória com a prática terapêutica, um modo de psicoterapia experimental em que o participante se tornou “paciente” engajado com a artista numa troca interpessoal mediada por seus Objetos relacionais99 (Ibid.).

3.2.1. Merleau-Ponty e Lygia Clark: tessitura de um entrelaçamento no corpo

Na obra de Lygia Clark o tema da percepção foi retomado nos termos de uma abertura para as sensações do corpo vivo/vivido. Nesse sentido, é possível atestar uma estreita vinculação das proposições da artista com as análises desenvolvidas por Merleau-Ponty em a Fenomenologia da percepção (1945). Para o pensador francês, o corpo é a nossa abertura ao mundo, a partir da experiência corpórea nos comunicamos com a realidade circundante sem retê-la, sem fixá-la em ideia. Sobre essa questão, o filósofo disse:

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 269). Desse modo, observa-se que o corpo, na reflexão merleau-pontyana, se insere em um esboço provisório de totalidade e não permite outro modo de se fazer conhecido, senão sendo vivido. O corpo próprio, aquele que por meio do qual meus pensamentos e sentimentos, por assim dizer, “fazem contato” com os objetos, de forma que um mundo existe para mim, é o corpo em “primeira pessoa”, como sujeito da experiência (MATTHEWS, 2011, p. 116, 191).

É importante reiterar que o percurso seguido pelo filósofo na obra A fenomenologia da percepção concentra as reflexões sobre o corpo no âmbito da

99Não se intenta aqui desenvolver uma análise em torno do último período produtivo de Lygia Clark,

correspondente à década de 1980, por exigir um estudo pormenorizado e mais cuidadoso que envolveria outros campos de pesquisa como, por exemplo, o da psicanálise. Em virtude da impossibilidade de se avançar nessas reflexões, e considerando a delimitação temporal estabelecida para esta pesquisa, sugerem-se as seguintes bibliografias para o aprofundamento do último período do trabalho da artista: BITTENCOURT, Nívea. A vassoura da bruxa: Lygia Clark na arte da lou-cura. Rio de Janeiro: Novamente, 2002 e WANDERLEY, Lula. O Dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o objeto relacional de Lygia Clark. – Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

percepção100. As análises fenomenológicas sobre o corpo próprio ou corpo

fenomenal/perceptivo elucidam a busca de Merleau-Ponty por uma subjetividade enraizada no mundo, diferentemente da visão objetivante das ciências. Como se viu no segundo capítulo da tese, a fenomenologia merleau-pontyana se compromete em retornar ao mundo vivido da experiência, distanciando-se de uma consciência descolada do corpo e assumindo uma reflexão corporificada. Para o filósofo, a experiência sensível produz sentidos que se antecipam às reduções determinadas pelo entendimento. Em outras palavras, a ação, o sentimento e a vontade são maneiras originárias de criar significados liberados, tanto do objetivismo quanto do subjetivismo extremos. Nesse contexto, é possível estabelecer um tipo de razão radicada na experiência sensível, a partir das contribuições da fenomenologia, que conseguiu unir o subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo e de racionalidade (MERLEAU-PONTY, 2011a).

Nesse mesmo contexto, de reabertura do problema da percepção e da centralidade das ações no corpo, também se insere a obra de Lygia Clark, tendo em vista que nas suas produções o objeto e o sujeito estão enredados um no outro. Por conseguinte, o novo comportamento perceptivo foi sendo elaborado na medida em que o espectador passou cada vez mais a interagir com a obra, até chegar a ser o espaço estruturante (o corpo) da proposição artística. De modo análogo, para Merleau-Ponty, a criação de sentidos se estabelecia na interação dos corpos com o mundo, por meio da percepção que se configurava enquanto condição inalienável da articulação sujeito e objeto. Em a Fenomenologia da percepção lê-se: “Na percepção, nós não pensamos o objeto e não nos pensamos pensando o objeto, nós somos para o objeto e o confundimos com esse corpo, que sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se têm de fazer uma síntese” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 320).

Lygia Clark buscava no sentimento de totalidade a conjugação entre o dentro e o fora, o sujeito e o objeto, o visível e o invisível. A constante busca pela dissolução dessas fronteiras foi marca não apenas do trabalho da artista, mas também motivo das diversas discussões desenvolvidas por Merleau-Ponty. Não foram ocasionais o

100 Como destacado anteriormente, em virtude da delimitação temporal estabelecida para as análises da

produção contemporânea da arte, entre as décadas de 1950 a 1970, não se deteve à etapa final da trajetória de Lygia Clark. Por conseguinte, optou-se por não realizar uma articulação analítica aprofundada das produções da artista brasileira com as análises posteriores de Merleau-Ponty, que incidiram em suas investigações no âmbito ontológico e na adoção do conceito de carne, para além do que sugere o corpo

próprio da fenomenologia. Contudo, admite-se a possibilidade de, a partir da noção de carne, desenvolver

uma chave interpretativa interessante, pelo viés psicanalítico, entre o último pensamento de Merleau- Ponty e a última fase produtiva de Lygia Clark, em que a artista coloca em xeque a fronteira entre arte e