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O corpo-próprio como indicação de uma nova epistemologia

CAPÍTULO II – AS IMAGENS DA ARTE NA REINTERPRETAÇÃO DO CORPO

2.1. O corpo-próprio como indicação de uma nova epistemologia

Merleau-Ponty desenvolveu uma filosofia descritiva da percepção, considerando a nossa cinestésica, a experiência pré-científica, vivida-corporal e a cognição do mundo, buscando estabelecer a unificação das nossas capacidades afetivas, motoras e sensoriais. Para o filósofo, a percepção seria uma instância expressiva e criativa intimamente ligada à prática artística e, sobretudo, ao corpo enquanto possibilitador dessa expressividade. Embora o fenomenólogo tenha desenvolvido reflexões sobre os distintos campos da arte, a pintura ganhou relevo e profundidade devido à capacidade de articular as dimensões da percepção, do movimento e da expressão por meio do corpo do artista.

A temática de corpo tem sido motivo de diversos estudos em variados campos do conhecimento, o que evidencia a relevância do aspecto corpóreo nos debates contemporâneos. Com essa perspectiva, Merleau-Ponty (2001, p. 256) disse que o seu século “apagou a linha divisória entre o ‘corpo’ e o ‘espírito’ e vê a vida humana como espiritual e corporal lado a lado, sempre apoiada no corpo, sempre associada, até nos seus modos mais carnais à vida das pessoas”.

Na esteira do que atesta o fenomenólogo, David Le Brenton (2009, p. 39) diz que “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem”. Não resta dúvida da proeminência desse debate para os variados campos epistemológicos, notadamente a partir do que convencionalmente foi chamado de “crítica da modernidade”43, em que as

condições materiais concretas, o inconsciente e as relações de poder que permeiam a existência humana foram postas no cerne das discussões.

Por essa ótica crítica e iconoclasta, o corpo restabelece seu caráter criativo no tempo e no espaço enquanto modo de apropriação da existência e caminho por onde o ser humano constitui suas relações consigo mesmo, com o outro e com o mundo/natureza. Nóbrega (2006) adverte que o interesse de diversas disciplinas científicas, filosofias e modelos de educação pela temática do corpo provém do fato de que o aspecto corpóreo possui uma espacialidade própria, descontínua, disponibilizando desde componentes físico-químicos a signos que definem a condição humana e as possibilidades de comunicação. Por conseguinte, para compreender o corpo em sua dimensão cultural e enquanto vetor de construção e de atribuição de sentidos das relações humanas com o mundo, é preciso considerar que essa lógica de produção de

43 Convenciona-se utilizar a expressão para indicar o período de crise dos valores e ideais da

modernidade, especialmente com o advento da psicanálise, das relações de trabalho e de poder que puseram em xeque todas as certezas e cânones da época. As concepções críticas de Nietzsche, Marx e Freud representam marcadamente o período.

sentidos funciona através de uma rede de relações instrumentais, de operadores epistêmicos, de um determinado sentido legitimador da rede de relações, do funcionamento dos operadores e do próprio procedimento das lógicas produtivas (BÁRTOLO, 2007).

Silva (2006, p. 91), ao problematizar as reflexões em torno da epistemologia da corporeidade44, atesta que o corpo não é cognoscível em sua totalidade. O fato de que a dimensão corpórea possui aspectos não conceituáveis é, para o autor, o indicativo de que não é possível considerar plenamente a corporeidade enquanto uma concepção científica. Em outro sentido, Nóbrega (2010, p. 35) considera a corporeidade, em termos epistemológicos, como uma área de saberes que emerge da capacidade interpretativa do ser vivo desde os níveis celulares e moleculares até os aspectos simbólicos e sociais, compreendendo também o saber incorporado enquanto espaço de experiência e de reflexão, a partir do qual se desdobram contemporaneamente possibilidades epistemológicas, éticas, estéticas, sociais e históricas.

Um outro campo vasto para a investigação sobre a conexão entre mente e corpo é o da neurociência. Pesquisas como a do biólogo Fagundes Varela enfatizam que a vida é um processo cognitivo desde os níveis mais elementares até as formas mais complexas, como os seres humanos, e, neste caso, a cognição emerge da corporeidade, da dinâmica dos processos corporais. Em seu texto El fenómenos de la vida: Cuatro pautas para el futuro de las ciencias cognitivas (O fenômeno da vida: quatro pautas para o futuro das ciências cognitivas), de 1999, o biólogo chileno atesta:

Um dos mais importantes avanços da ciência nos últimos anos foi a convicção de que não podemos ter nada que se assemelhe a uma mente ou uma capacidade mental sem que esteja totalmente encarnada ou inscrita corporalmente, envolta no mundo. Surge como uma evidência imediata, inexplicavelmente ligada a um certo corpo que é ativo, que se move e que interage com o mundo45 (VARELA, 1999, p.

2).

44 É comum encontrar o termo corporeidade referindo-se a tudo que é proveniente do corpóreo, que, por

sua vez, se refere à existência física, material, palpável, antônimo de espiritual. Ou seja, a noção de corporeidade é oposta à vida espiritual, tendo também sua acepção fortemente marcada pela dicotomia entre os dados sensíveis, oriundos dos sentidos, e os inteligíveis, vinculados ao domínio da racionalidade científica. “O sentido da palavra corporeidade em dicionários da língua portuguesa expressa uma determinada visão de corpo fortemente marcada pela oposição corpo e alma, presente de modo predominante no pensamento ocidental.” (NÓBREGA, 2010, p. 18). Destaca-se, contudo, que a acepção adotada neste trabalho é a que busca a superação das concepções tributárias do dualismo clássico, de vertente platônica, e do moderno, sustentado pelo cartesianismo.

45 Versão original: “Uno de los más importantes avances en ciencia en los últimos años es la convicción

de que no podemos tener nada que se asemeje a una mente o a una capacidad mental sin que esté totalmente encarnada o inscrita corporalmente, envuelta en el mundo. Surge como una evidencia inmediata, inextricablemente ligada a un cuerpo que es activo, que se mueve y que interactúa con el mundo.” (VARELA, 1999, p. 2).

Diante desse breve panorama de perspectivas e campos diversos de estudo, faz-se necessário admitir que é desafiador, e ao mesmo tempo indispensável, o desenvolvimento de pesquisas em torno das questões epistemológicas do corpo, sobretudo para problematizá-las no amplo e complexo domínio da educação.

Com o propósito de subverter compreensões como a cientificista, partiu-se das trilhas elaboradas por Merleau-Ponty em torno da busca por nosso contato primordial e inaugural com o mundo e a defesa de uma razão fundada na sensibilidade como potência de conhecimento, como em “na casa onde nasce uma criança, todos os objetos mudam de sentido, eles se põem a esperar dela um tratamento ainda indeterminado, alguém diferente e alguém a mais está ali, uma nova história, breve ou longa, acaba de ser fundada, um novo registro está aberto” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 545-546).

Por essa ótica, Merleau-Ponty estabeleceu os vieses de uma fenomenologia fundamentada na percepção que confere ao corpo a centralidade de toda e qualquer ação em direção ao mundo. O fenomenólogo situou os aspectos não conceituáveis e o caráter descontínuo da corporeidade como condição primeira no processo de construção do conhecimento. A temática do corpo percorre toda a obra de Merleau-Ponty, desde A estrutura do comportamento até O visível e o invisível – obra inacabada e publicada postumamente. Verifica-se no corpo, por conseguinte, o ponto de ligação estrito, um liame irrecusável entre os trabalhos iniciais e os de sua fase final, como menciona Nóbrega (2007, p. 8): “Desde os primeiros trabalhos se delineia a corporeidade como realidade ontológica, sendo inegável a relação do corpo com o sensível.”. Adverte-se, contudo, não por se ter a pretensão de esgotar todas as reflexões sobre o corpo promovidas pela filosofia merleau-pontyana, mas para elucidar em que medida a reinterpretação corpórea, operada pelo pensamento do filósofo francês, torna-se a base de uma nova concepção sobre a construção do conhecimento.

As análises nesta seção estão circunscritas às reflexões sobre percepção e corpo desenvolvidas em Fenomenologia da percepção, com o intuito de compreender como a proposta de uma reinterpretação corpórea pode estar vinculada a outra forma de acesso ao conhecimento. Nessa obra, Merleau-Ponty apoiou-se nas teses husserlianas sobre a fenomenologia, todavia, desde as primeiras linhas, apresentou os equívocos dessa tradição, no tocante à compreensão das essências46 e da consciência transcendental47.

46 “As essências de Husserl devem trazer consigo todas as relações vivas da experiência, assim como a

rede traz do fundo do mar os peixes e as algas palpitantes.” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 12).

47 “O idealismo transcendental também ‘reduz’ o mundo, já que, se ele o torna certo, é a título de

Nesse aspecto, é possível verificar a inegável vinculação da fenomenologia com “o pensamento moderno que privilegia o sujeito consciente e sua relação com o mundo das ideias e com o mundo da vida” (NÓBREGA, 2016, p. 25). Contudo, Merleau-Ponty buscou outras bases em seu trânsito no interior da fenomenologia, aproximando-se, por exemplo, da Gestalt e dos estudos sobre a percepção, a forma e a figura-fundo (Ibid.). Todo esse movimento do filósofo francês demonstrou, ainda que implicitamente, seu “engajamento político, sua relação com a arte como forma de conhecimento e por um pensamento estético que se desdobrará em sua filosofia e em sua obra” (NÓBREGA, 2016, p. 26).

Diferentemente da visão objetivante das ciências, a fenomenologia merleau- pontyana48 se compromete em retornar ao mundo vivido da experiência, distancia-se de uma consciência descolada do corpo, rompe com a concepção idealista da consciência na filosofia e investe em uma reflexão corporificada. Aludindo, portanto, ao fato de que a experiência sensível produz sentidos que se antecipam às reduções determinadas pelo entendimento. Em outras palavras, a ação, o sentimento e a vontade são maneiras originárias de criar significados liberados tanto do objetivismo quanto do subjetivismo extremos. Nesse contexto, é possível estabelecer um tipo de razão radicada na experiência sensível. Sobre isso Merleau-Ponty assegurou que:

A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou em mundo no sentido realista. O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela ele se torna imanente à consciência e através disso a aseidade das coisas está suprimida.” (MERLEAU- PONTY, 2011a, p. 13).

48 “É preciso afastar, de início, duas simplificações empobrecedoras das relações entre Merleau-Ponty e a

fenomenologia. Primeiramente, tais relações não devem ser reduzidas àquelas entre Merleau-Ponty e Husserl. É verdade que o filósofo alemão, fundador do movimento fenomenológico contemporâneo, será o centro das reflexões de Merleau-Ponty sobre o tema; em contrapartida, o interesse do filósofo francês não se limita à obra husserliana, abarca também os trabalhos de Fink, Gurwitsch, Scheler e Conrad- Martius, autores cuja contribuição para seu pensamento não pode ser negligenciada. Em segundo lugar, deve-se recusar a interpretação segundo a qual haveria um primeiro estágio, em que Merleau-Ponty se filia irrestritamente à fenomenologia, e um segundo, no qual ocorreria uma ruptura inexorável. [...] Merleau-Ponty se serve do instrumental fenomenológico para desenvolver uma análise da percepção, concebida como experiência irrefletida, anterior às atividades de uma consciência cognoscente. Assim, deve-se acentuar que Merleau-Ponty inicia sua carreira filosófica com um projeto filosófico próprio, o qual guia a leitura dos textos de Husserl e o leva a formular, na Fenomenologia da percepção, uma noção ampliada de fenomenologia.” (FERRAZ, 2009, p. 179-180).

retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 18).

Nessa perspectiva, “a racionalidade da fenomenologia não se reduz ao indivíduo ou a uma subjetividade idealista, mas afirma-se como intersubjetividade. Dessa maneira, a fenomenologia afasta-se do ser puro para dirigir-se ao ser no mundo, na relação com o outro” (NÓBREGA, 2016, p. 33). Nota-se aqui um investimento em uma terceira via epistemológica, uma zona híbrida entre as vertentes empirista e intelectualista [ou o objetivismo e o subjetivismo extremos], em que “todos os conhecimentos, apoiam-se em um ‘solo’ de postulados e, finalmente, em nossa comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 20). Sobre o sentido renovado de consciência em Merleau-Ponty, Nóbrega (2016, p. 27) descreve:

A consciência para Merleau-Ponty não é transparente em si mesma, mas contaminada pelo engajamento no mundo, engajamento que só é possível, em última instância, pelo corpo na relação com o outro. Aqui é marcante a questão da atitude fenomenológica, a empatia, os hábitos corporais, a espacialidade do corpo no mundo cujo esquema corporal ultrapassa o organismo para se adensar na motricidade, na linguagem, na sexualidade e na historicidade.

Dessa forma, entende-se que o indivíduo adquire consciência a partir da relação de seu corpo com o outro, a partir de uma atitude fenomenológica, “trata-se de reconhecer a própria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir” (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 15).

Portanto, é a nossa existência corporal que possibilita a nossa compreensão do mundo a partir de uma consciência correlativa aos movimentos corpóreos. Para fundamentar essa inteligibilidade originária do corpo, Merleau-Ponty desenvolveu a noção de corpo próprio que visa romper com a ideia de corpo-objeto ou corpo-máquina sustentada pela filosofia cartesiana. Por conseguinte, mudou radicalmente a proposta do cogito cartesiano do eu penso para o eu desejo, eu sinto. Osvaldo Fontes Filho (2012, p. 30-31), em sua obra Merleau-Ponty na trama da experiência sensível, diz que:

O corpo próprio não pode ser apreendido, à semelhança dos objetos exteriores, em um “conhecimento distante”, como “máquina bem limpa” de toda ambiguidade e cuja unidade seria dada pelo encadeamento de eventos psíquicos e fisiológicos. A intencionalidade do corpo vivo é a realização de “certa energia da pulsão de

existência”, irredutível tanto a processos em terceira pessoa quanto à cogitatio em primeira pessoa. [...] o corpo subverte a ortodoxia da identidade, inverte os papéis do sujeito e do objeto e as clássicas cisões interior/exterior ou passivo/ativo, para se esclarecer no registro ambíguo de “uma coisa que sente.” Portanto, compreende-se por que a experiência do corpo próprio não tem lugar no dualismo substancial da metafísica clássica.

Assim, Merleau-Ponty designou, em Fenomenologia da percepção, a experiência do sentir como um modo de conhecer radicado no corpo, na sexualidade, na linguagem e na motricidade. Para o filósofo francês, é a partir da experiência sensível que conferimos sentidos e conhecemos o mundo, os fenômenos, as situações e estabelecemos relações. “Nesse contexto, a sensação não é apenas um dado físico, mas o sentido para mim, o modo como as coisas, as pessoas e situações me afetam. Por isso, o dado físico da sensação já aporta um sentido afetivo.” (NÓBREGA, 2016, p. 33).

Por conseguinte, não há sensações isoladas da experiência, o corpo e o mundo se mostram parceiros em uma experiência e estabelecem entre si uma permuta. É nesse sentido que a expressão sou meu corpo aponta para a nossa essencial inerência ao mundo, ser corpo é estar atado a certo mundo (MERLEAU-PONTY, 2011a). Com isso, o lócus corporal não é neutro, há uma pluralidade de atravessamentos que fornecem significações para sua expressividade. Dito em outros termos, apenas através da experiência corporal é possível significar o nosso agir no mundo. Essa imbricação corpo/mundo é condição para a produção dos sentidos. Sobre a experiência sensível e o conhecimento, Merleau-Ponty atestou que:

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos das ciências não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda (MERLEAU-PONTY, 2011b, p. 3).

Desse modo, em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty realizou um inventário que revisa os prejuízos clássicos estabelecidos em torno das noções de sensação e de percepção, e reivindica um retorno aos fenômenos tais quais existem em nossas vidas (NÓBREGA, 2016). O filósofo francês, ao rejeitar qualquer uma das alternativas excludentes do sujeito ou do objeto, direcionou a sua crítica às teses

empirista e intelectualista, apoiando-se inicialmente nos estudos da Gestalt49 e

gradativamente aproximando-se do sentido psicanalítico dos afetos e das teorias da sexualidade (Ibid.).

Nessa perspectiva, o sentir, descolado dos afetos, é meramente causalidade estímulo-resposta, o corpo vivo deixa de ter sua relação com a existência, torna-se um objeto ou, ainda, quando concebemos apenas a ideia de corpo abandonamos a nossa experiência primeira (de ser corpo) para construir pensamentos objetivos. “Assim, por exemplo, ao invés de admirar uma paisagem nos atemos apenas a sua descrição geográfica ou à ideia matemática do círculo sem perceber corporalmente o espaço circular” (NÓBREGA, 2016, p.35).

As análises tecidas por Merleau-Ponty sobre a fisiologia mecanicista demonstraram a fragilidade da compreensão do corpo por meio da causalidade do tipo estímulo-resposta e das teses localizacionistas que subdividiram o cérebro em regiões para analisar o comportamento e as funções cognitivas básicas do homem (linguagem, percepção, inteligência e etc.). Para a fisiologia mecanicista, todos os fenômenos que se manifestam enquanto comportamento dos seres vivos são mecanicamente determinados e necessariamente de origem físico-química.

Nesse sentido, a camada originária do sentir, de que falava Merleau-Ponty, é uma instância cuja unidade do sujeito não é pensada, mas sim vivida. A percepção defendida pelo filósofo não surge como uma maneira de pensar o objeto, ou de pensar o sujeito a partir do objeto, mas como um emaranhar-se nesse corpo que possui um saber, anterior à consciência, sobre os meios infinitos de acesso ao mundo. O corpo próprio surge como uma recusa ao modo de ser do corpo como sujeito ou como objeto. Por conseguinte, encontrou-se a ativação de outro tipo de ser, um corpo ambíguo que se percebe como exterioridade de uma interioridade; que aparece para si no mesmo momento em que faz aparecer o mundo e que realiza a unidade entre objetivo e subjetivo, como ratificou Merleau-Ponty, no trecho que segue:

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a

49 “Merleau-Ponty apoia-se incialmente nos estudos da Gestalt, apresentando estudos científicos sobre a

percepção, como é o caso da sensação de Müller-Lyer. Nela, a ambiguidade da percepção se mostra na ilusão das linhas que aparecem desiguais, mas ao se observar o contexto, a diferença desaparece. Posto que a sensação pontual só existe como um dado científico abstrato, sendo o conjunto que se faz visão, modo de ver.” (NÓBREGA, 2016, p. 34).

experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (MERLEAU-PONTY, 2011a, p. 269). Desse modo, pode-se observar que o corpo, na reflexão merleau-pontyana, se insere em um esboço provisório de totalidade e não permite outro modo de se fazer conhecido, senão sendo vivido. A experiência tecida pelo corpo próprio não deixa de ser desfavorável à divisão reflexiva entre sujeito e objeto, mesmo quando a investigação ontológica assume o centro das reflexões do filósofo. O corpo próprio, aquele que por meio do qual meus pensamentos e sentimentos, por assim dizer, “fazem contato” com os objetos, de forma que um mundo existe para mim, é o corpo em “primeira pessoa”. Como sujeito da experiência, foi subvertido nas reflexões das obras finais de Merleau-