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CAPÍTULO I – CORPO E DISCIPLINA EM CONCEPÇÕES EDUCATIVAS DA

1.3. Rousseau e o valor educativo da arte

O pensamento moderno do século XVIII também estabeleceu um debate aproximado do campo artístico, sobretudo no tocante à relevância social da arte. Peter J. Schneemann, em seu texto Inocência. Paradigmas contemporâneos do espectador como um eco de Rousseau (2015), assinala o valor atribuído por Rousseau à dimensão educativa da arte na Carta a D’Alembert sobre os espetáculos, publicada em 1758.

A Carta a D’Alembert (2015) surgiu como resposta ao verbete Genebra, publicado por D’Alembert em um dos volumes da Enciclopédia, em 1757. Nele, o filósofo e matemático enaltecia a importância do teatro para o aperfeiçoamento do gosto e dos costumes dos cidadãos de Genebra, encorajando a revogação das leis que proibiam as instalações dos teatros na cidade. A Carta a D’Alembert (2015), considerada um exame da função social e política dos espetáculos, como adverte Franklin de Matos na introdução da última edição brasileira, publicada em 2015 e intitulada de: Teatro e amor-próprio, aponta também para a dimensão educativa da arte. O autor do Emílio, ao tratar da afirmativa de D’Alembert de que o teatro teria a função de aperfeiçoar o gosto e os costumes dos cidadãos genebrinos, questionava “o velho modelo de exemplum virtutis, segundo o qual o público imitaria os protagonistas no palco” (SCHNEEMANN, 2015, p. 149).

Rousseau retrucou sistematicamente as proposições favoráveis à instalação dos teatros, como defendidas por D’Alembert, argumentando que os espetáculos institucionalizados servem apenas ao entretenimento, o que ocasiona o afastamento dos prazeres naturais da nossa condição humana proveniente dos trabalhos, dos relacionamentos e da inserção do homem na sua comunidade. Assim, no teatro, “vamos esquecer os amigos, os vizinhos, os próximos, para nos interessarmos por fábulas, para chorarmos desgraças dos mortos ou rirmos à custa dos vivos” (ROUSSEAU, 2015, p. 45). Desse modo, Rousseau (2015, p. 54-55)criticava não apenas o aspecto utilitário da arte, mas também o artifício da representação:

Quanto mais eu penso, mais acho que tudo o que se representa no teatro não se aproxima de nós, mas se afasta. [...] os costumes não são

21Referimo-nos, especificamente a influência das teses sustentadas no Contrato social, que exerceram

uma grande relevância no estabelecimento dos princípios da Revolução Francesa, cujo lema foi: Liberté,

corrigidos, e sim retratados, e um rosto feio não parece feio a quem o tem. Pois se quisermos corrigi-los através de sua caricatura, abandonamos a verossimilhança e a natureza, e o quadro não produzirá mais efeito. [...] e sempre vemos no teatro seres diferentes de nossos semelhantes.

Em outro sentido ao que propunha D’Alembert, Rousseau (2015, p. 151) defendeu que os dramas dos teatros fossem ajustados às necessidades do povo, que “nós mesmos escrevamos e tenhamos autores antes de termos atores”. Por conseguinte, havia uma valorização da dimensão criativa e inventiva do povo, daquilo que é próprio, natural e singular de cada comunidade, em detrimento à representação, à imitação do que é estrangeiro, dos modelos e opiniões alheias. Rousseau já ponderou sobre essa questão em seu Discurso sobre as ciências e as artes (1983c), afirmando que a arte da sua época uniformizava os costumes de modo enganoso e desprezível. A arte, cujo propósito era polir as maneiras e ensinar uma linguagem mais apurada às paixões, parecia fundir todos em um mesmo molde, em um mesmo padrão que não correspondia ao que há de mais genuíno em cada um22. O filósofo genebrino aprofundou e refinou essa discussão na Carta a D’Alembert (2015), como se vê no trecho que segue:

Numa cidade pequena encontramos, guardadas as proporções, menos atividade, sem dúvida, do que numa capital: porque as paixões são menos vivas e as necessidade menos prementes; mas mais espíritos originais, mais indústria inventiva, mais coisas realmente novas: porque ali a gente é menos imitadora e, tendo poucos modelos, cada um põe mais de si mesmo em tudo o que faz: porque o espírito humano, menos extenso, menos afogado pelas opiniões vulgares, se elabora e fermenta melhor na tranquila solidão: porque, vendo menos, imagina mais: enfim, porque, menos pressionada pelo tempo, a gente tem mais lazer para ouvir e digerir ideias (ROUSSEAU, 2015, p. 89). Schneemann (2015) lembra que no século XVIII o valor educativo da arte era predominantemente atribuído às narrativas baseadas nas histórias que contemplavam as ações de heróis fortes. Nesse sentido, os modelos de comportamentos heroicos e virtuosos teriam a função de educar o público, “o teatro servia como modelo para discutir papéis exemplares e, na identificação através de empatia, o perigo da emoção” (SCHNEEMANN, 2015, p. 149). O autor (Ibid. p. 148) recupera as reflexões de Rousseau sobre as artes e o público (espectador), buscando estabelecer um diálogo com as estratégias contemporâneas elaboradas por artistas e por instituições, cujo propósito é reivindicar a relevância social da arte, afirmando que:

Essa referência (ao espectador) implica uma mudança de paradigma de interação entre arte e espectador, de maneira semelhante à que Rousseau questionava o valor educativo da arte. Como artistas e instituições imaginam, ou desenham o espectador contemporâneo? Que tipo de envolvimento buscam? Qual o conceito de ‘público’ hoje em dia?

Rousseau, ao fazer referência ao tipo de espetáculo adequado a uma República, era contrário aos espaços fechados dos teatros e defendia as celebrações públicas e as festas ao ar livre. O filósofo via no espectador um partícipe e até mesmo o próprio espetáculo. Assim, o público emancipado seria capaz de desenvolver a dupla condição do espectador: “inocência e autoconsciência” (RANCIÈRE, apud SCHNEEMANN, 2015, p. 150). Sobre os espetáculos livres e o espectador, Rousseau afirmava que:

[...] Já temos os prazeres das festas públicas; tenhamo-nos em ainda em maior número. Mas não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas num antro escuro; que as mantêm temerosas e imóveis no silêncio da inação; só oferecem aos olhos biombos, pontas de ferro, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade. [...] É ao ar livre, é sob o céu que deveis reunir-vos e entregar-vos ao doce sentimento de vossa felicidade! Não sejam mercenários os vossos prazeres; nada do que sabe a obrigação e o interesse os envenene; sejam eles livres e generosos como vós, e ilumine o sol vossos inocentes espetáculos; vós mesmos formareis um espetáculo, o mais digno que ele possa iluminar. Quais serão, porém, os objetivos desses espetáculos? Que se mostrará neles? Nada, se quisermos. [...] Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor ainda: oferecei os próprios espectadores como espetáculo; tornai-os eles mesmos atores (ROUSSEAU, 2015, p. 157).

É por meio da experimentação e do encontro com o nosso próprio corpo e com os outros corpos que saímos do plano estritamente teórico, do conhecimento abstrato e representativo, para acessar o plano dos sentidos (tátil, perceptivo, olfativo, gustativo e visual). É nesse ponto que se encontra o aspecto estético-educativo da proposta de Rousseau, o que não significa dizer que essa experiência prescinda o plano racional. De modo diverso, ela amplia a capacidade de apreensão e compreensão da realidade, tornando-nos conscientes da nossa constituição humana de maneira autêntica e inventiva. O espetáculo, como preconizado pelo filósofo genebrino, aponta para uma autocriação, uma autoformação, a partir da nossa inserção radical no mundo. O corpo, nessa perspectiva, ganha outra dimensão, para além do sentimento de autopreservação fisiológico e biológico, tal como se viu nas reflexões em torno do homem natural e na educação do Emílio, bem como é também expressão e situação no mundo.

Na próxima seção está apresentada a proposta educativa de Kant contida em suas lições sobre a pedagogia. Na obra em questão, o filósofo alemão desenvolveu uma visão que se tornou paradigmática para a educação do seu tempo e da posteridade, no tocante ao sujeito do conhecimento e seus desdobramentos nas reflexões sobre as temáticas do corpo e da disciplina.