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Fronteiras e extrapolamentos do corpo nas produções de arte do século

CAPÍTULO III – CORPO E DISCIPLINA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

3.1. Experiências corporais paradigmáticas na arte do século XX

3.1.2. Fronteiras e extrapolamentos do corpo nas produções de arte do século

e os protestos contra a sociedade burguesa e o capitalismo influenciaram sobremaneira as produções de arte. Os artistas passaram a enfatizar as experiências físicas e orgânicas demonstrando o aspecto natural do corpo nos rituais cotidianos, com o propósito de transgredir aos atos privativos e aos tabus da tradicional desqualificação do corpo na sociedade burguesa (MATESCO, 2008). O Grupo Fluxus ocupou um lugar central nesse cenário de transgressão às regras sociais, religiosas e culturais. A palavra fluxus provem do latim flux, que indica mudança, escoamento, catarse, e foi esse o sentido atribuído às produções de artistas de várias partes do mundo, como os alemães Joseph Beuys e Wolf Vostell, o coreano Nam June Paik, o francês Ben Vautier e a japonesa Yoko Ono, entre outros. A criação do grupo é datada a partir da divulgação do Manifesto Fluxus81, escrito por Georges Maciumas, durante um Festival Internacional de Música que ocorreu em Wiesbaden-Alemanha, em 1961. Diferente dos happenings, que requeriam uma maior complexidade de duração em suas produções, “os artistas do Fluxus recorrem a ações simples e concentram-se em um acontecimento que ocorre de maneira improvisada. Sem nenhuma participação do expectador, suas ações são geralmente desenvolvidas perante o público” (MATESCO, 2008, p. 2987). Abaixo, selecionou-se uma ação emblemática do corpo na produção do Fluxus, nomeada de Cut piece, que fora realizada por Yoko Ono, em Quioto, no ano de 1964 (Figura 11). Na proposição, Yoko vestiu-se com traje de noite e convidou a audiência para cortar o seu vestido enquanto ela permanecia sentada, tranquila e contemplativa diante da plateia. Segundo Matesco (2008), o caráter natural de Cut piece pressupunha um desenrolar temporal, um acontecimento efêmero, transitório, com a presença imprescindível do corpo e de um público, que demonstrou uma reação agressiva e violenta diante do ato.

81 Fragmento do Manifesto Fluxus: ''Livrem o mundo da doença burguesa, da cultura 'intelectual',

profissional e comercializada. Livrem o mundo da arte morta, da imitação, da arte artificial, da arte abstrata... Promovam uma arte viva, uma antiarte, uma realidade não artística, para ser compreendida por todos, não apenas pelos críticos, diletantes e profissionais... Aproximem e amalgamem os revolucionários culturais, sociais e políticos em uma frente unida de ação.'' DIAS, Mariana. Fluxus: o grito da antiarte, 2012. Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/semiotizando/2012/05/fluxus-o-grito-da- antiarte.html#ixzz5EksHsZge>. Acesso em 10 de abr. 2018.

Figura 11 - Yoko Ono - Cut Piece, 1964 Fonte: MoMA Learning

Disponível em: < https://www.moma.org/learn/moma_learning/yoko-ono-cut- piece-1964>.

A ação de Yoko reverberou nas produções subsequentes, notadamente na body art, cuja expressão surgiu oficialmente no ano de 196982. O termo body art é mesclado por múltiplas tendências no interior das suas produções, que vão do esquematismo da dança e do teatro até o exibicionismo do Grupo de Viena (GLUSBERG, 2013). Fizeram parte das ações da body art nomes como Vito Accionci, Michel Journiac, Daniel Buren, Gina Pane e Klaus Rinke. O propósito central de todas as produções, resguardadas as distinções internas, era a dessacralização e desfetichização do corpo humano, “em outras palavras, a body art se constitui numa atividade cujo objeto é aquele que geralmente usamos como instrumento” (Ibid., p. 43).

Nessa perspectiva, o corpo é transmutado da condição de ampliador do espaço pictórico e das técnicas formais da pintura para o centro das produções de arte, que procurou fazê-lo expressar as suas condições naturais e orgânicas. De acordo com Matesco (2008, p. 2989), os artistas:

82 Muitos artistas já trabalhavam no sentido da body art desde o início da década de 1960, como, por

exemplo, o Grupo de Viena e Carolee Sheeman, que utilizavam substâncias reais em suas produções, tais como: sangue e cadáveres de animais. Cf.: Matesco (2008, p. 2988).

[...] passam a utilizar em suas ações substâncias reais; o sangue vertido sobre corpos humanos e os cadáveres de animais eram motivos visitados. A celebração da carne e a ênfase em funções orgânicas, como vomitar, urinar, defecar, ejacular, sangrar, visavam à restauração da situação primordial do corpo por meio de atos e direitos elementares. Tratavam o corpo com crueza a doença, a morte, a sexualidade, pois consideravam o corpo centro das relações existenciais e potência de liberdade.

Em 1972, a Documenta (5) de Kassel83 reconheceu internacionalmente a body art organizando uma mostra com os seus mais relevantes artistas em todo o mundo. Na exposição, uma das seções foi dedicada aos trabalhos que priorizavam o corpo, que incluiu artistas do Fluxus, do accionismo vienense e também os norte-americanos, como Vito Acconci, Dennis Oppenheim e Terry Fox (Ibid.).

Muitas produções são emblemáticas para a compreensão da inserção do corpo nas variadas tendências desse grupo, como, por exemplo, nas proposições dos artistas Carolee Scheemann, Michel Journiac e Gina Pane, para citar apenas alguns.

Nas obras intituladas Eye body (1963) e Messe pour un corps (1969), Carolee Scheemann e Michel Journiac (Figura 12 e Figura 13 a, b), respectivamente, apresentaram rituais simbólicos que estabeleciam um contraponto com a imagem do corpo sacralizada pelos dogmas religiosos. Em Eye body, Carolee Scheemann exibiu o corpo nu em meio a um ambiente com objetos, espelhos e painéis, aludindo a uma imagem do corpo dessacralizada (MATESCO, 2008). Em outro sentido, Michel Journiac retirava o próprio sangue para fazer uma salsicha que foi utilizada na montagem da Messe pour un corps, apresentada em 1969, em Paris. Na proposição, o artista, que foi seminarista, vestiu-se de sacerdote, recitou uma missa em latim e propôs a Eucaristia com a salsicha feita com o seu próprio sangue, que representou, em suas próprias palavras, “o arquétipo da criação: o homem que se alimenta dele mesmo e os

homens se alimentando do artista. Esta comida corporal é mais apetecível e mais energética do que a comida espiritual” (JOURNAC, apud PIETTRE, 2009, n.p.)84.

Nas proposições da body art dentro da cena francesa, a ênfase era atribuída ao aspecto biológico do corpo como objeto de prazer e sofrimento. Outra produção emblemática desse período foi Escalade (1971), da francesa Gina Pane (Figura 14), que

83 A Documenta representa uma das maiores e mais relevantes exposições da arte contemporânea e da arte

moderna internacional, que ocorre a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha. Para acessar a retrospectiva das exposições, sugere-se ver: https://www.documenta.de/en/retrospective/documenta_5#.

84 Trata-se de um artigo sobre um ciclo de exposições dedicadas ao artista Michel Journiac, ocorrido na

Galeria Patricia Dorfmann, em Paris, no período de 17 de outubro a 29 de novembro de 2009. O texto foi redigido por Céline Piettre e publicado on-line no site Paris Art, em 04 de novembro de 2009, sem paginação. Disponível em: < http://www.paris-art.com/messe-pour-un-corps/ >. Acesso em: 20 de abr. 2018.

consistia em a artista subir uma escada na qual continha lâminas de barbear nos degraus, um ritual de dor através da autodilaceração do corpo. Pane acreditava que esse tipo de ação provocava um efeito purificador na sociedade anestesiada. Para Matesco (2008, p. 2990), “o corpo em sofrimento passa ser o elemento que unifica os rituais dos artistas do accionismo vianense, Carolee Schneemann, e os franceses Michel Journiac e Gina Pane”. Nas imagens das produções que seguem vê-se a contestação dos artistas, denunciando como a sociedade vivencia, oculta, exprime e rejeita o corpo.

Figura 12 - Carolee Schneemann - Eye body, 1963

Fonte: Schimmel, Paul. Out of Actions, between performance and the object 1949-1979. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1998, p. 295.

(a)

(b)

Figura 13 - Michel Journiac - Messe pour um corps, 1969 Fonte: Paris Art

Figura 14 - Gina Pane - Escalade, 1971 Fonte: Blog Art and politic now

Disponível em: <http://www.artandpoliticsnow.com/2014/04/feminism-and-performance-joan- jonas-and-gina-pane/>.

Ainda no decorrer da década de 1970, as propostas fundadas nos termos da body art foram se diluindo dentro da performance, que, em meio aos novos modos de comunicação e significação, passou a ser o centro das práticas artísticas. A performance, diferentemente da body art, não se limitou apenas à exploração das capacidades biológicas e/ou fisiológicas do corpo como matéria-prima, mas introduziu aspectos individuais, coletivos e sociais com o propósito central de transformar o artista em sujeito e objeto de sua arte (GLUSBERG, 2013). Nessa perspectiva, a efemeridade e a instabilidade da ação do corpo, características principais da desmaterialização da obra de arte no início dos anos 70, cederam lugar ao teor conceitual. Os artistas, em suas proposições, atribuíam maior relevância à ideia, enquanto a forma material foi secundarizada, desmaterializada. Sobre as mudanças ocorridas ao longo dos anos 70, Matesco (2008, p. 2991) acrescenta:

Entre as ideias desenvolvidas a partir do minimalismo, de situação, repetição e processo são fundamentais para que os artistas efetuem a transferência de uma concepção de obra enquanto objeto para um trabalho que implique a colocação do espectador em situação. Isso requer uma situação de espaço real, daí a ênfase na relação arte e vida, tratada então como peça de arte.

Segundo a mesma autora, os rituais de autodilaceração de Gina Pane85 já se

inserem no âmbito das performances emblemáticas que instituíram vínculos entre ação e imagem, na fronteira que reorientou o estatuto dos trabalhos com o corpo. As questões relativas ao corpo e a imagem são também tematizadas por Viviane Matesco em seu texto Corpo, ação, imagem: consolidação da performance como questão (2012, p. 110), no qual destaca:

Nas décadas de 1960 e 1970, a identificação do artista com o seu próprio corpo desempenhava papel central, pois era um meio novo e autêntico, um campo inexplorado, portador de efeito de choque em relação aos outros meios da modernidade que a sociedade de massas havia diluído. Daí a ênfase em processos orgânicos e a exploração das capacidades do corpo. Happenings e ações Fluxus buscavam ser extensão da vida cotidiana, girando em torno de situações comuns em acontecimentos naturalísticos nos quais o público identificava o artista como condutor de uma ação. O corpo era material da arte apenas enquanto durava o gesto, o acontecimento, e fotografias e filmes eram usados para documentar esse momento transitório. Esses trabalhos só existiam efetivamente no aqui e no agora da presença de artista e público, sendo as imagens ou filmes apenas registros incompletos de uma temporalidade anterior. As imagens não davam conta da complexidade dos trabalhos; era necessário que relatos complementassem o registro para resgatar o momento da ação. A autora defende que a noção de corpo literal, a temporalidade da ação e o papel da imagem, através de vídeo ou fotografia, legitimaram a performance dentro da moldura do sistema de arte (ibid., p. 105)86. A análise elaborada por Matesco, no tocante

ao período assinalado (1960 e 1970), corrobora com o que pontua Jorge Glusberg quando desenvolve uma reflexão da pré-história87 do gênero em seu livro A arte da

performance, publicado originalmente em 2009. No texto, o argentino e crítico de arte contemporânea descreve o trabalho que, em sua ótica, inaugurou a arte da performance: Era uma manhã de 1962, em Nice, cidade onde havia nascido trinta e quatro anos antes, Yves Klein realizou um de seus trabalhos mais

85 A proposição Escalada (1971), de Gina Pane, mencionada anteriormente, foi executada para um

pequeno grupo de amigos em seu estúdio e fotografada em close (MATESCO, 2012).

86 Adverte-se que a reflexão de Matesco (2012) evidencia as limitações das análises de Jorge Glusberg e

de outros autores no que se referem às transformações pelas quais a performance passou nos últimos anos. Contudo, para esse momento, destaca-se apenas um dos aspectos que aproxima a perspectiva dos autores com relação à arte da performance. Sugere-se, para uma leitura mais aprofundada: GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. – São Paulo, Perspectiva, 2013 e MATESCO, Viviane. Corpo, ação e imagem: consolidação da performance como questão. Revista Poiésis. – Niterói, UFF, n. 20, p. 105-118, dezembro de 2012. Disponível em: <http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis20/08.pdf>.

87 Jorge Glusberg (2006) atesta que a origem da ideia do uso do corpo humano como sujeito e força

motriz dos rituais remonta à tradição judaico-cristã, no tocante ao pecado original simbolizado pela nudez dos corpos de Adão e Eva. Além dessa tradição, o crítico de arte também menciona os rituais tribais, os mistérios medievais e os espetáculos organizados por Leonardo Da Vinci, no século XV, e Giovani Bernini, duzentos anos mais tarde.

conhecidos: Salto no Vazio88. Ele mesmo – fotografado no instante

que saltava para a rua, de um edifício – era o protagonista de sua obra, e, nesse sentido, a obra em si. Talvez tenha sido esta experiência de Klein – um antigo estudante de línguas orientais, bibliotecário, treinador de cavalos, judoca e pintor – a iniciação do que se tem denominado arte da performance (GLUSBERG, 2013, p. 11).

A arte de performance apresentava-se como multifacetada, devido à apropriação de diversas características das demais expressões artísticas, por conseguinte, possuía uma constituição multidisciplinar e fronteiriça. Segundo Richard Schechner, em seu texto O que é performance? (2003, p. 39), “qualquer comportamento, evento, ação ou coisa pode ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de ação, comportamento, exibição”. Para Glusberg (2013), o termo performance sugere dois sentidos, o primeiro seria o da presença física e o segundo, o de um espetáculo, como algo para ser visto. Em uma acepção similar, Renato Cohen (2013) considera a performance uma linguagem que estabelece fronteira com o teatro por situar tempo, espaço e corpo enquanto elementos constitutivos da sua ação. Segundo o autor:

Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la (COHEN, 2002, p.28). Diante das perspectivas mencionadas, encontram-se variadas tendências dentro da arte de performance, o que torna desafiadora a tarefa de realizar um recorte dentro das produções dessa linguagem artística, considerando que nem todas as discussões e conceituações são consensuais. Nesse sentido, destaca-se que não se realizou uma análise aprofundada sobre a questão da imagem (registros fotográficos, fílmico ou de vídeo), nem a respeito das reflexões semiológicas em torno da performance, como sugerem, respectivamente, os trabalhos de Matesco (2012) e de Glusberg (2013). Em outro sentido, procurou-se focalizar as imagens e as expressões do corpo dentro dos processos de criação de artistas no decorrer da década de 1970. Seguindo o que Glusberg (2013, p. 46-47) adverte, “qualquer mapeamento da arte de performance deve começar com o trabalho daqueles artistas que centraram as suas investigações no corpo”, destacou-se a proposição Step piece (1971), do italiano Vito Acconci, que mediu a resistência, a energia e os poderes gestuais do corpo subindo e descendo de um banco no ritmo de trinta passos por segundo, repetidas vezes; e a da sérvia Marina

88 A proposição de Yves Klein está disponível em: Schimmel, Paul. Out of Actions, between performance and the object 1949-1979. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1998, p. 36-37.

Abramovic, que exaltou a qualidade plástica do corpo quando a artista e o seu companheiro ficaram nus, frente a frente, na entrada de um museu na Itália. Cada visitante via-se compelido a passar entre o casal para entrar no museu, a ênfase foi menos na nudez e mais em torno da reação do público, que precisou enfrentar uma situação incomum (Figura 15 e Figura 16).

Figura 15 - Vito Acconci - Step piece, 1971 Fonte: Akron Art Museum

Figura 16 - Marina Abromovic - Imponderabilia, 1977

Fonte: Finestre sull'Arte – Rivista online d’Arte antica e contenporanea

Disponível em: <https://www.finestresullarte.info/359n_imponderabilia-marina-abramovic-ulay- performance-1977.php>.

Para Glusberg (2018), o que interessa prioritariamente numa performance é o processo de trabalho, sua sequência, seus fatores constitutivos e sua relação com o produto artístico: tudo isso fundido em uma manifestação final. Nessa perspectiva, a arte de performance parece contribuir amplamente com as questões de caráter estético- educativo suscitadas por esta pesquisa, notadamente no que se refere às três dimensões de seu processo: 1. formativa; 2. criativa; e 3. de preparação corporal. São igualmente importantes para as análises aqui presentes as experiências com a arte de performance concernentes ao corpo no espaço, à relação entre artista e público e com os fenômenos da percepção, cujas fontes de referência residem também nas produções de arte de cena89, que buscavam desarticular os mecanismos das formas clássicas da dança, do teatro e, do mesmo modo, nas peças musicais, em que os artistas produziam críticas às

89 Elegeu-se como eixo principal da tese o corpo nas artes visuais, contudo o corpo na arte de performance presentifica diversas linguagens artísticas, notadamente as artes de cena (teatro, dança e

músicas convencionais, aos estereótipos de interpretação e ao uso de instrumentos (GLUSBERG, 2008).

Uma experiência da arte de cena que pode sugerir caminhos fecundos para o trabalho com uma proposta de disciplina-ressignificação do corpo nos processos formativos contemporâneos é a Tanztheatre (dança-teatro), notadamente as produções de Pina Bausch.

Como se viu no início deste capítulo, o final do século XIX e o início do século XX representaram grandes mudanças no pensamento e nas artes, de modo geral. Para as artes de cena, como para as artes visuais, esse período foi marcado por intensa experimentação e pelo questionamento aos cânones da arte. A dança moderna buscou uma aproximação com a vida e um engajamento com a questões materiais do cotidiano do homem e do mundo. De modo diverso ao que propalava o balé clássico, em que os movimentos e seus encadeamentos obedeciam a uma ordem pré-estabelecida, a dança moderna buscou uma composição entre sentido e forma, um movimento como expressão de um significado interno. E em lugar de privilegiar partes específicas do corpo (pernas e membros periféricos), como no balé clássico, colocou o corpo inteiro em movimento (GARAUDY, 1980).

Os estudos sobre o movimento de Rudolf von Laban (1879-1958) serviram como base para o surgimento da dança-teatro no século XX. Para o alemão, o movimento humano sempre se constituiu dos mesmos elementos, seja na arte ou na vida cotidiana. O termo dança-teatro foi cunhado pela primeira vez pelo próprio Laban, referindo-se a uma nova forma de arte em que o centro era o movimento (BRADLEY, 2009). A dança-teatro, entretanto, só veio a tornar-se propriamente um gênero artístico a partir do investimento de um pupilo de Laban, Kurt Jooss, de quem Pina Bausch foi aluna na Folkwang Hochschule, até 1959.

A artista alemã viveu em Nova York durante parte dos anos 60 e presenciou as transformações ocorridas na dança e no teatro da cena americana. O caráter híbrido mesclava e envolvia todo o meio artístico, como pintores, escultores, dançarinos, atores, músicos etc., através dos happenings, da dança pós-moderna americana e do Living Theater, que marcaram a época. Embora não haja registros sobre a influência desses movimentos na dança-teatro de Pina Bausch, é possível que eles tenham relevância em suas proposições, visto que alguns aspectos da obra bauschiana sugerem uma aproximação com as características dos gêneros mencionados, a saber: o trabalho fronteiriço com os procedimentos das diversas formas de arte (dança, teatro, música); a presença e o contato aproximado com o espectador, a busca por transgredir os rígidos

padrões e os códigos convencionais de atuação, considerados inibidores; o interesse primordial com o processo (em suas três dimensões: formativa, criativa e de preparação corporal); e a dissolução das fronteiras entre arte e vida. Em um viés de performance autobiográfica, as proposições de Pina Bausch trabalhavam a intensidade e a expressão da experiência intersubjetiva. Na elaboração das suas produções, a artista buscava trazer à tona, por meio de perguntas, os sentimentos mais profundos vivenciados pelos bailarinos-atores, e as falas serviam de material para recompor as cenas. A articulação entre o sentimento e a técnica da repetição foi o meio pelo qual Bausch criou uma forma de descondicionar os corpos dos bailarinos-atores, com o propósito de realizar um processo de reelaboração e conscientização de seus esquemas corporais. Sobre suas proposições, Pina Bausch assegurava:

Cada detalhe é relevante, cada mudança, porque cada alteração produz um efeito diverso. Tudo o que achamos nos ensaios é analisado de