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Doenças cardíacas e risco : o Framingham Heart Study

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Academic year: 2021

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MAIKO RAFAEL SPIESS

DOENÇAS CARDÍACAS E RISCO: O FRAMINGHAM HEART STUDY

CAMPINAS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

MAIKO RAFAEL SPIESS

“DOENÇAS CARDÍACAS E RISCO: O FRAMINGHAM HEART STUDY”

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA UNICAMP PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM POLÍTICA CIÊNTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO MAIKO RAFAEL SPIESS E ORIENTADO PELA PROFA. DR.A MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

CAMPINAS 2014

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AGRADECIMENTOS

Escrever uma tese de doutorado é um processo longo, tortuoso, cansativo e complexo. Também pode ser uma atividade desafiadora, gratificante, esclarecedora, instigante. Nos momentos bons e nas horas difíceis, o doutorando nunca está sozinho. Agradecer é, portanto, uma obrigação.

Em primeiro lugar, agradeço aos servidores, alunos e professores do Departamento de Política Científica e Tecnológica. Aos servidores e servidoras, em particular à Valdirene, Gorete e Adriana, agradeço pela inestimável ajuda e atenção. Aos alunos do Departamento, amigos e colegas de mestrado e doutorado, e membros dos grupos de pesquisa, gostaria de agradecer pela oportunidade da convivência e do aprendizado. Aos professores, sem exceção, gostaria de agradecer por compartilharem conhecimentos e sabedoria. Em especial, agradeço à Profa. Conceição pela orientação na pesquisa e no estágio docente, pelas críticas, oportunidades e paciência, durante todos esses anos. Agradeço aos membros da banca pela disposição e ao prof. Marko por ter contribuído no exame de qualificação. Agradeço duplamente ao prof. Josué, que ajudou respondendo meus ingênuos questionamentos sobre epidemiologia e participando das bancas. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio financeiro no doutorado e durante o estágio no exterior.

I‟d also like to thank Prof. David Jones, the faculty and staff at the Department of the History of Science, Harvard, for their huge support. For the help and cordiality, I‟d like to thank the Framingham Heart Study staff, and the historians at the Framingham History Center. Also, Marion and David, for the friendship and hospitality.

Agradeço profundamente à Adriane, não apenas pelo amor, amizade e cumplicidade, mas também pelos inestimáveis comentários, revisões e correções

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ao texto. Também pelo talento que transformou minhas ideias vagas em infográficos ricos e interessantes, e pela paciência de conviver com o rocambolesco “homem-tese”. Por fim, agradeço aos amigos não-acadêmicos, e aos meus familiares pela paciência, apoio afetivo, material e, principalmente, por propiciar valiosos momentos de descontração. A todos o meu muito obrigado!

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“Cleanliness is next to fordliness.” - Aldous Huxley, Brave New World

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

DOENÇAS CARDÍACAS E RISCO: O FRAMINGHAM HEART STUDY

RESUMO

Tese de Doutorado Maiko Rafael Spiess

Este trabalho trata das origens sociais e técnicas dos riscos para as doenças cardiovasculares e de sua relação com a alimentação nas sociedades contemporâneas. Em particular, analisa a trajetória histórica e os aspectos sociotécnicos do influente Framingham Heart Study, uma pesquisa epidemiológica conduzida há mais de seis décadas nos Estados Unidos, voltada para a compreensão das doenças cardiovasculares e seus fatores de risco. A partir da perspectiva da Teoria Ator-Rede, a tese demonstra o processo de determinação mútua entre o contexto social e conteúdo da ciência relacionado às doenças cardiovasculares produzida pelos pesquisadores de Framingham, desde o final da década de 1940. Metodologicamente, baseou-se em métodos de pesquisa histórica, documental e entrevistas realizadas entre os anos de 2012 e 2013, nos Estados Unidos. O primeiro capítulo apresenta uma discussão ampla sobre os riscos alimentares, as recomendações governamentais oficiais e a crescente importância do discurso científico sobre o assunto. O segundo capítulo apresenta um levantamento histórico sobre a trajetória do estudo de Framingham. O terceiro capítulo propõe um modelo de antecedentes sociotécnicos para o estudo epidemiológico em questão, apresentando as condições e elementos contextuais que possibilitaram seu surgimento e determinaram suas características. De forma complementar, o quarto capítulo descreve a construção da credibilidade do estudo e sua influência nas percepções contemporâneas sobre os fatores de risco, colesterol e doenças cardiovasculares. Dessa forma, a tese apresenta uma discussão crítica sobre as formas contemporâneas de compreensão a respeito dos temas do risco, saúde e doença, doenças cardíacas e alimentação, demonstrando o caráter intrinsecamente social do Framingham Heart Study e dos enunciados de risco produzidos pela epidemiologia.

Palavras chaves: Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, risco, doenças cardíacas, alimentação, Framingham Heart Study

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UNIVERSITY OF CAMPINAS INSTITUTE OF GEOSCIENCE

CARDIAC DISEASE AND RISK: THE FRAMINGHAM HEART STUDY

ABSTRACT

PhD Thesis Maiko Rafael Spiess

This doctoral thesis deals with the social and technical background of risk factors for cardiovascular disease and their relation to diet in contemporary societies. In particular, it analyzes the historical trajectory and socio-technical aspects of the influential Framingham Heart Study -- an epidemiological research conducted for more than six decades in the United States with the objective of understanding cardiovascular diseases and their risk factors. From the perspective of Actor-Network Theory it demonstrates the process of mutual determination between the social context and the science related to cardiovascular diseases produced by Framingham researchers since the late 1940s. Methodologically, it was guided by historical and documentary methods, and interviews conducted between the years 2012 and 2013 in the United States. The first chapter presents an extensive discussion on health risks, official dietary guidelines and the growing importance of scientific discourse on the subject. The second chapter presents a historical review of the history of the Framingham Study. The third chapter proposes a model of socio-technical background for that epidemiological study, highlighting the conditions and contextual factors that led to its emergence and helped determining its characteristics. The fourth chapter describes the construction of the credibility of the study and its influence on contemporary perceptions about the risk factors, cholesterol and cardiovascular disease. Thus, the doctoral dissertation presents a critical discussion on contemporary forms of understanding risk, health, disease, and the relation between heart disease and diet, while demonstrating the inherently social nature of the Framingham Heart Study and the risk statements produced by epidemiology.

Keywords: Social Studies of Science and Technology, risk, cardiac disease, diet, Framingham Heart Study

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO 1: A alimentação e as doenças cardíacas hoje 11

1.1 A alimentação e a dieta como problemas contemporâneos 13

1.2 Uma paisagem de recomendações alimentares 27

1.2.1 As primeiras recomendações e guias 29

1.2.2 Dietary Goals for the United States e a ênfase nas doenças crônicas 39 1.2.3 "Quer que eu desenhe?": visualizando as recomendações 46

1.3 A hipótese lipídica 59

1.3.1 Uma verdade incontestável ou um problema em aberto? 66

1.4 Considerações finais 77

CAPÍTULO 2: O Framingham Heart Study, sua importância e trajetória

histórica 83

2.1 Qual a importância do Framingham Heart Study? 85

2.2 Um pouco de história 98

2.2.1 De Framingham para o mundo 101

2.2.2 A "segunda fase" do Framingham Heart Study 117

2.3 Considerações finais 125

CAPÍTULO 3: Analisando as origens do estudo: modelo de antecedentes

sociotécnicos 129

3.1 Condições necessárias e redes sociotécnicas 129

3.2 Perfil epidemiológico 135

3.3 Instituições 143

3.4 Ciência e tecnologia 158

3.4.1 Uma rede de conhecimentos e técnicas 160

3.4.2 A doença em números 172

3.5 Moralidade 184

3.6 O modelo de antecedentes sociotécnicos 199

3.7 Considerações finais 207

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Heart Study ajudou a moldar nossa percepção sobre risco? 213

4.1 A relação micro e macro 215

4.2 Construindo a credibilidade do estudo 221

4.3 Tornando-se um ponto de passagem na rede 237

4.4 Um breve parênteses: o colesterol volta para Framingham 246

4.5 Considerações finais 251

CONCLUSÕES 255

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: "Controle o colesterol" 25

Figura 2: "Alimentos: Valor nutritivo e custo" 31

Figura 3: Basic Four 38

Figura 4: Food Guide Pyramid 49

Figura 5: MyPyramid 51

Figura 6: MyPlate 55

Figura 7: A Porção Ideal 57

Figura 8: Tipos de gordura 68

Figura 9: "Dr. Dawber apresentará artigo sobre o estudo de Framingham

para Congresso Mundial” 95

Figura 10: Framingham, MA. Hollis St. e Irving St., circa 1950 104

Figura 11: Carta aos participantes do estudo (1980) 115

Figura 12: Ficha de exame inicial [parcial] 113

Figura 13: "Não gosto da direção que esse esquema lucrativo está indo!!" 124 Figura 14: Configuração institucional do FHS (circa 1948) 149 Figura 15: Proposta de modelo transacional (FHS - instituições –

atores individuais) 155

Figura 16: Resultados laboratoriais 162

Figura 17: "Hipóteses dietéticas" 166

Figura 18: Tabaco e cigarro nos resultados do FHS 194

Figura 19: Modelo de antecedentes sociotécnicos 202

Figura 20: Círculo de credibilidade 223

Figura 21: Ancel Keys na capa da Time Magazine 234

Figura 22: Combinação de anormalidades 240

Figura 23: “Dr. William Castelli quer diminuir o nível de

colesterol da América” 248

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Figura 25: as diferentes versões da relação dieta - doenças

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Artigos publicados pelos pesquisadores do Framingham

Heart Study, por década 96

Gráfico 2: Número de mortes a cada 100.000 habitantes (EUA),

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INTRODUÇÃO

Em abril de 2010, no início do meu doutorado em Política Científica e Tecnológica, uma campanha de vacinação contra a gripe H1N1 estava sendo organizada pela Universidade Estadual da Campinas, seguindo critérios determinados pelo Ministério da Saúde. Estudantes, professores e servidores eram encorajados a comparecer em postos pré-determinados para receber a imunização de forma gratuita, desde que se enquadrassem em certos critérios de risco: gestantes, portadores de doenças crônicas e pessoas com idades entre 20 e 39 anos foram selecionados como o público-alvo da ação, com base em dados de contágio e mortalidade observados no ano anterior, durante a pandemia de influenza H1N1. Para algumas pessoas, o sentido de gravidade inerente ao termo “pandemia” e o caráter restritivo da seleção do público para a imunização pareciam formar um quadro paradoxal: se o problema epidemiológico era tão grave, porque agir de forma tão restrita? Por que alguns e não outros? Quem faz essas escolhas por nós?

Essas inquietações, no entanto, não duraram muito. Na maior parte das vezes, parece haver uma espécie de conforto quando as escolhas públicas estão baseadas em alguma racionalidade aceita, legítima, neutra. Nesse caso, a autoridade da Organização Mundial de Saúde (OMS) e seus cientistas foi suficiente para que o público-alvo se encaminhasse docilmente para as filas de vacinação e para que todos os demais procurassem as vacinas disponíveis em clínicas particulares, ou eventualmente aceitassem que estavam inseridos em um grupo de baixo risco. De mais a mais, as escolhas políticas pareciam seguir uma racionalidade técnica confiável: alguém, em algum lugar, certamente havia pensado muito sobre esse problema. Para grande parte das pessoas, essa é garantia suficiente para esquecer as ressalvas e seguir adiante.

Em se tratando de saúde e doença, a racionalidade de risco aponta invariavelmente para a disciplina científica chamada epidemiologia e para o estudo de grandes agregados humanos como forma de construir generalizações sobre

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saúde e doença. Essas generalizações científicas não se resumem as doenças infecto-contagiosas. De fato, as doenças crônicas (do coração, respiratórias, câncer) não-transmissíveis são também enquadradas nessa forma de pensar e agir. Biomarcadores como os níveis de colesterol, de pressão sanguínea ou índice de massa corporal são frequentemente empregados como formas de antecipar o surgimento de certos males, por meio de estimativas de risco quantificáveis. Além disso, nossos hábitos pessoais -- de alimentação, de consumo, de prática de atividades físicas -- são largamente relacionados com medidas de risco, se enquadrando nessa forma relativamente recente de experienciar a saúde e doença. Vivemos, pois, em um mundo povoado de riscos à saúde, que devem ser evitados a qualquer custo.

A bibliografia existente sobre o tema, no âmbito das Ciências Sociais, demonstra que prescrições comportamentais para manutenção ou melhoria da saúde humana costumam ser frequentemente associadas a padrões morais e formas de controle social. No caso dos riscos das doenças crônicas, onde o indivíduo é visto como diretamente responsável por seu bem-estar, esse fenômeno torna-se particularmente claro. Em um nível discursivo, por exemplo, o câncer de pulmão ou as doenças cardiovasculares são praticamente indissociáveis das escolhas pessoais, a ponto de implicarem em restrições e constrangimentos que antecedem o próprio episódio de adoecimento. Nos dias de hoje, ser um fumante ou ter um nível elevado de pressão arterial significa estar em risco, passando a viver em um estado de proto-enfermidade que, para todos os efeitos, é indistinto da doença em si, pois demanda o mesmo tipo de cuidado e as mesmas sanções ao indivíduo doente (Rosenberg, 1997; 2002).

Ainda de um ponto de vista mais sociológico permaneciam, todavia, muitas questões: como essas regras foram determinadas, e por meio de qual tipo de autoridade? Como foram testadas? Quando e onde foram empregadas pela primeira vez? Como se tornaram confiáveis? Como se tornam uma questão coletiva, e como são incorporadas em políticas públicas? Em resumo, de onde surgem as ideias de risco, e como elas se tornaram uma forma amplamente aceita de descrever e intervir na realidade?

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Em outras palavras, é preciso ainda investigar como esses discursos surgiram e se disseminaram. A preocupação principal deste trabalho se foca, dessa forma, nas origens ou antecedentes da racionalidade de risco, notadamente em relação às doenças crônicas. Em se tratando do objeto de pesquisa, o olhar foi direcionado para estudos epidemiológicos, que serviram como os fundamentos a partir dos quais seriam construídas as generalizações sobre o pensamento epidemiológico e doenças específicas. Para além da investigação dos efeitos sociais da racionalidade de risco, é necessário abordar suas origens, intimamente relacionados com os estudos populacionais produzidos no âmbito da epidemiologia.

A escolha final do objeto de pesquisa foi determinada tanto por essa série de aproximações graduais, quanto por meio de questões práticas, um tanto imprevistas. Com a aprovação do estágio de doutorado sanduíche no Departamento de História da Ciência, na Universidade de Harvard (2012-2013), se colocaram as condições para a pesquisa histórica, documental e in loco, de um dos mais famosos estudos epidemiológicos norte-americanos, o Framingham Heart Study. O estudo de Framingham (iniciado no final dos anos 1940 na cidade de mesmo nome, no estado norte-americano de Massachusetts) é amplamente reconhecido por ser o local de origem da abordagem dos fatores de risco e de uma série de comprovações a respeito da causalidade das doenças cardiovasculares. Também pode ser relacionado, ao lado de outros estudos populacionais que buscavam compreender a causalidade das doenças do coração, como a fonte das comprovações científicas que apontavam para os efeitos malignos do colesterol no sangue e, indiretamente, para a condenação da ingestão de gordura na alimentação.

Tendo em vista a importância desse estudo epidemiológico estadunidense, o objetivo da tese é, em primeiro lugar, descrever suas origens sociais e técnicas (capítulos 2 e 3). De forma complementar, procura também evidenciar o papel do Framingham Heart Study para a conformação das noções atuais a respeito dos fatores de risco, em geral, e dos riscos alimentares, em particular (capítulos 1 e 4). Com isso, partimos de um caso específico para responder perguntas relacionadas

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à origem e usos sociais da noção de risco. Em outras palavras, ao analisarmos o estudo realizado em Framingham procuramos responder questões amplas sobre a racionalidade de risco em saúde, mas também, de forma mais específica, sobre sua influência em nossos hábitos individuais e padrões alimentares. A narrativa subjacente, portanto, reconstitui a trajetória dos riscos construídos em Framingham, ao mesmo tempo em que descreve como eles se mesclaram aos discursos contemporâneos sobre a alimentação.

A hipótese de trabalho pode ser resumida da seguinte forma: por um lado, a percepção científica sobre os riscos de doenças do coração (em particular, aqueles relacionados à alimentação e os níveis de colesterol no sangue) e, em particular, o estudo de Framingham foram diretamente determinados por um contexto social e técnico específico, onde a percepção sobre o aumento das doenças cardiovasculares, a atuação de instituições sociais, antecedentes científicos e aspectos morais foram igualmente importantes para direcionar e possibilitar a atuação de cientistas, gestores e profissionais de saúde envolvidos com essa iniciativa. Por outro, os conhecimentos científicos sobre os riscos das doenças cardíacas influenciaram a construção da percepção que temos sobre o tema, ajudando a redefinir nossa relação com as doenças e nossos hábitos individuais e coletivos. Trata-se, portanto, de uma relação de determinação mútua, onde o contexto social determinou o conteúdo da produção científica e onde o discurso científico, por sua vez, influenciou na constante reformulação do contexto social.

Em relação aos procedimentos de pesquisa empírica e levantamento de dados, a tese construiu-se como um trabalho de sociologia histórica (Gray et al, 2007), demandando procedimentos de pesquisa específicos, que podem ser resumidos conforme abaixo:

a) pesquisa documental: foram realizadas atividades de análise de artigos de jornal e revistas, relatórios científicos, manuais e diretrizes oficiais relacionados com o Framingham Heart Study, de forma a compreender seus antecedentes sociotécnicos e sua trajetória histórica. Sempre que possível, fontes primárias e

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documentos oficiais foram priorizados. A pesquisa documental foi realizada no arquivo do estudo, no Arquivo Histórico da cidade de Framingham e por meio de documentos disponibilizados eletronicamente pelo National Institutes of Health (NIH) norte-americano.

b) análise de artigos científicos publicados pelos pesquisadores do FHS, ao longo de sua história de mais de 60 anos. Aproximadamente 250 artigos foram copiados eletronicamente ou acessados por meio do sistema de bibliotecas da Universidade de Harvard, cobrindo principalmente o período das duas primeiras décadas do estudo. Esses artigos foram então categorizados de acordo com o assunto, palavras-chave, autores, sua relação com a criação da abordagem de risco e a "hipótese lipídica" e por sua relevância para a história do estudo. Em seguida, os artigos foram revisados por meio de análise de conteúdo de caráter qualitativo.

c) entrevistas: de forma a produzir uma apreensão mais detalhada do objeto, produzindo descrições mais próximas à experiência dos atores envolvidos com o estudo, a pesquisa documental e análise de artigos foram acompanhadas de entrevistas semi-estruturadas com pesquisadores e funcionários do Framingham Study (na ativa e aposentados). A amostra foi obtida pelo método “reputacional” (ou “snowball”) (Gray et al, 2007), e contemplou uma funcionária do quadro técnico do estudo, o diretor atual do FHS, um estatístico e um pesquisador aposentado (ex-diretor do estudo). Três entrevistas foram conduzidas na cidade de Framingham e uma foi realizada por conferência via aplicativo Skype.

Inicialmente, os dados obtidos por meio da pesquisa documental serviriam para a preparação das entrevistas, enquanto as informações obtidas por meio das entrevistas buscariam complementar possíveis "gaps" ou inconsistências na historiografia oficial a respeito do estudo. Porém, conforme as atividades de pesquisa avançaram, percebeu-se que as entrevistas teriam utilidade limitada: os entrevistados possuíam um discurso bastante homogêneo sobre o histórico do

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Framingham Heart Study, em muitos casos reproduzindo informações produzidas em caráter oficial sobre o estudo como, por exemplo, a revisão histórica contida em Dawber (1980). Vale lembrar que os entrevistados representam a "terceira e quarta gerações de pesquisadores" do estudo (Levy, 2013), não tendo participado diretamente de sua fase de criação, instalação e publicação dos primeiros resultados. Dessa forma, as entrevistas se mostraram importantes para a conferência e verificação dos dados levantados por meio de outras técnicas de pesquisa. Como maneira de complementar essa deficiência (e considerando o caráter histórico da pesquisa), foram empregadas também reportagens e entrevistas publicadas anteriormente com os antigos diretores e participantes do estudo, seguindo indicações obtidas dos entrevistados.

Os capítulos foram organizados de forma a partir dos temas mais amplos para os mais específicos. Dessa forma, o primeiro capítulo é dedicado à relação entre a alimentação, risco e as doenças cardíacas, em um sentido amplo. Nele, são apresentadas algumas das características e particularidades das noções contemporâneas sobre alimentação, assim como sua relação com a saúde humana, em especial seus contornos majoritariamente científicos e sua transformação em uma questão de política pública, ocorrida por meio da elaboração de recomendações alimentares oficiais que procuram informar e conduzir as escolhas alimentares do público leigo. Também são discutidas as relações entre essas recomendações e pesquisas científicas, de caráter populacional, desenvolvidas nos Estados Unidos no período pós-Guerras, e o surgimento da hipótese lipídica (a proposta de relação de causalidade entre dieta, colesterol e as doenças cardiovasculares). Muito mais do que uma simples digressão, essa narrativa de caráter mais amplo se faz necessária para demonstrar o vínculo entre a abordagem de risco e hábitos alimentares amplamente disseminados nas sociedades ocidentais contemporâneas. Sobretudo, apresenta ao leitor uma forma de se familiarizar gradativamente com os temas em questão, antes de abordar questões mais específicas.

O segundo capítulo é focado na história do Framingham Heart Study, e procura proporcionar ao leitor uma visão ampla sobre sua importância, as

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condições de seu surgimento e sobre as diversas contingências e redefinições que sua trajetória. O capítulo 3 complementa essa visão histórica com uma análise sociologicamente embasada, propondo um modelo de antecedentes sociotécnicos, que procura reinterpretar os dados históricos. Trata-se de uma análise inspirada em alguns dos princípios metodológicos e teóricos da Teoria Ator-Rede. Em resumo, argumenta que o estudo de Framingham é resultado da interação entre elementos que, à primeira vista, são completamente distintos, mas cujo alinhamento foi fundamental para o sucesso do estudo; assim, as condições percebidas sobre a distribuição de doenças nos Estados Unidos do período pós-Guerra, atores institucionais, fatos científicos e tecnologias, e preceitos morais são descritos como os elementos que, uma vez associados retoricamente, possibilitaram o surgimento do estudo da cidade de Framingham e sua vasta produção científica.

O capítulo 4 procura relacionar a realidade local do estudo com seu contexto social originário. Mais especificamente, procura demonstrar como o estudo se estabeleceu como um local de produção de conhecimento dotado de credibilidade e, por isso, como pôde influenciar e redefinir esse contexto social. Trata, portanto, dos processos sociais e técnicos que levaram o estudo de Framingham a moldar e direcionar a paisagem de recomendações alimentares e as noções de saúde e doença descritas no capítulo 1. Em suma, pretende demonstrar como o contexto social e o conteúdo do estudo científico se influenciam mutuamente, tornando-se indissociáveis e produzindo uma forma específica de descrição da realidade.

Nota sobre apresentação do texto

Teses acadêmicas fazem parte de um gênero literário notoriamente árido, desafiador ou simplesmente monótono. Para facilitar a leitura e fluência do texto, principalmente para os leitores menos familiarizados com as particularidades da escrita acadêmica, certas observações de caráter teórico, esclarecimentos,

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informações e bibliografia adicional foram incluídos, no decorrer do trabalho em caixas de texto como esta, que foram inseridas em meio ao conteúdo principal. Diferenciam-se das notas de rodapé, em particular, em termos de sua extensão e do caráter das informações que procuram passar. Enquanto as notas de rodapé se apresentam quase sempre como informações complementares e esclarecimentos pontuais, as caixas de texto agrupam discussões que, ainda que pertinentes, ficariam deslocadas se inseridas em parágrafos normais.

Esta tese não apresenta longas revisões teóricas e discussões conceituais. A omissão foi uma escolha deliberada, de forma a não reproduzir discussões já bastante exauridas e principalmente como forma de colocar os dados empíricos e o objeto de pesquisa como elementos centrais do texto. Assim, buscamos colocar a literatura e reflexões teóricas a serviço do caso analisado, deixando o leitor livre para procurar maiores informações, se houver interesse ou necessidade.

Cabem ainda mais alguns esclarecimentos: em primeiro lugar, queremos deixar explícito que este não é um trabalho das áreas de medicina ou epidemiologia e, como tal, não pode pretender possuir caráter de recomendação de saúde. Em caso de doença ou suspeita de doença, os leitores devem sempre procurar atenção médica. A postura crítica apresentada à racionalidade de risco deve ser vista mais como subsídio para seu aprimoramento qualitativo, do que como um discurso negacionista. Nesse sentido, procuramos evitar as ressalvas baseadas na ideia (incorreta) de que uma análise de inclinação construtivista e relativista da ciência implica, obrigatoriamente, na negação de seu realismo.

Em segundo lugar, o leitor certamente irá notar que o texto raramente menciona o Brasil e processos locais de produção de conhecimento. Ora, essa característica é muito mais imposta pela natureza do tema e objeto analisados do que por omissão do analista. Por definição, os discursos sobre riscos se pretendem universais e, historicamente, foram disseminados levando isso em conta. Se os resultados do estudo de Framingham e as recomendações alimentares produzidas nos Estados Unidos foram muitas vezes transplantadas,

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sem grandes mudanças, para o contexto local, a postura de ir ao cerne da questão não apenas parece lícita, mas também lógica. Ademais, é possível pensar nas implicações dessa inversão da abordagem antropológica clássica: ao invés de atores sociais do centro se voltarem para a periferia, temos um caso do escrutínio sociológico se movendo no sentido contrário, da periferia ao centro.

Para concluir, gostaríamos de ressaltar que esse trabalho se justifica pela necessidade cada vez mais evidente de aproximar a ciência e o grande público, incentivando trocas e feedbacks, e gerando relações de responsividade e accountability. Desde o declínio de formas tradicionais de compreensão das doenças e de determinação do que é bom e saudável, temos depositado grande confiança em profissionais de saúde e cientistas, algumas vezes com resultados positivos, outras com retrocessos ou consequências indesejadas. A crítica aqui apresentada, a partir da ótica das ciências humanas, busca não apenas desconstruir ideais estabelecidos, mas destacar pontos fortes e fracos das percepções científicas sobre alimentação, doenças do coração e riscos, como forma de construir uma nova percepção, renovada e multidisciplinar sobre a questão. Talvez, com a interferência de um pensamento humanista e crítico, a perspectiva de risco possa cumprir seu verdadeiro potencial, melhorando não apenas a saúde, mas a vida humana em um sentido mais amplo.

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CAPÍTULO 1

A alimentação e as doenças cardíacas hoje

Comer é cada vez mais difícil. Todos os dias somos submetidos a conselhos e recomendações sobre quais alimentos devemos consumir para ter uma vida saudável. Profissionais médicos, a mídia e entidades governamentais frequentemente nos encorajam a consumir determinados alimentos e a evitar outros, sob pena de comprometermos nossa saúde e bem-estar. O processo de escolha dos alimentos e dietas mais adequados, no entanto, é uma tarefa complexa, pois em muitos casos as recomendações são conflitantes ou se alteram no decorrer do tempo. De fato, somos basicamente submetidos a diferentes discursos, produzidos em contextos sociais específicos, sobre os quais temos pouca ou nenhuma capacidade de intervenção. O caso da relação entre a dieta e as doenças cardiovasculares é um exemplo desse fenômeno: a maioria das pessoas socializadas nos países ocidentais industrializados está familiarizada com os efeitos negativos do consumo de gordura para o coração. Trata-se de um fato amplamente aceito, para o qual somos educados e informados, e que se apresenta como um fato consolidado, como "senso-comum". Mesmo quando ignoramos esse conhecimento (digamos, degustando um gorduroso hambúrguer de uma rede de lanchonetes fast food), somos constantemente relembrados dos potenciais efeitos negativos das refeições, muitas vezes até mesmo nos auto-disciplinando em nome de um bom estado de saúde.

A experiência contemporânea sobre a saúde onde alimentos e nutrientes como a gordura são potenciais ameaças, é algo relativamente recente. Curiosamente, a trajetória histórica dessa forma de pensar os alimentos e refeições é frequentemente ignorada, em uma postura de "ausência tática de curiosidade" (Bijker e Law, 1997: 2). Podemos, em alguns momentos, conjecturar a respeito da origem desses fatos, mas na maioria do tempo nos abstemos dessas

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reflexões, adotando recomendações produzidas e divulgadas por atores sociais que recebem nossa confiança e aceitação, estejam eles envolvidos com a produção do conhecimento ou com o estabelecimento de políticas de saúde pública. Com isso, vivenciamos o fenômeno da alimentação de forma parcial e relativamente passiva. Somos, de certa forma, usuários passivos de uma série de sistemas sociais desenvolvidos para nosso bem-estar.

No entanto, ao analisarmos a questão com maior atenção, perceberemos que a relação entre a alimentação e as doenças crônicas é um fenômeno complexo, resultado de uma série de negociações e de uma intrincada trajetória sociotécnica, da qual experienciamos apenas os resultados acabados e os fatos estabilizados. O mundo social da alimentação, nos dias de hoje, é composto de diversas esferas sociais ou "camadas", cada uma com uma dinâmica distinta. Em grande medida, vivenciamos essa questão por intermédio de recomendações oficiais, que fornecem elementos para basearmos nossas ações individuais e que, em última instância, traduzem e divulgam os conhecimentos produzidos em contextos distintos e herméticos, como a comunidade científica e dos profissionais médicos. Com isso, vivenciamos apenas os efeitos mais exteriores e imediatos de um processo complexo e multifacetado.

Neste capítulo, serão exploradas justamente as características e efeitos mais imediatos desse fenômeno. Para isso, serão abordados alguns conceitos e acontecimentos históricos que possibilitarão ao leitor uma compreensão ampla sobre a intersecção entre alimentação e saúde nos dias de hoje. Mais precisamente, temas como a crescente intervenção da ciência e medicina na alimentação e saúde, o papel das instituições governamentais, a constituição da hipótese lipídica (a correlação causal entre as gorduras, o colesterol e as doenças cardiovasculares) e as controvérsias recentes sobre a alimentação serão empregadas para familiarizar o leitor com o debate e, finalmente, para introduzir o problema dos estudos populacionais (como o Framingham Heart Study) como elementos fundamentais para a construção e consolidação da percepção conteporânea sobre a alimentação e a saúde humana. Sobretudo, este capítulo busca demonstrar argumentos que permitam começar a relacionar os problemas

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cotidianos dos cidadãos e consumidores modernos -- Quais alimentos consumir? Como cuidar da nossa saúde? -- com os contextos de produção de conhecimento científico, seus efeitos e consequências. Ou seja: procura descrever um contexto social que influencia nossas escolhas pessoais sobre a alimentação, ao mesmo tempo em que começa a apontar algumas das origens e antecedentes sociotécnicos desse mesmo contexto, em particular a construção da gordura como um nutriente maligno e seu papel para a causalidade das doenças do coração.

1.1 A alimentação e a dieta como problemas contemporâneos

Nas sociedades capitalistas contemporâneas,1 a relação entre saúde e alimentação é cada vez mais problemática. Se, por um lado, os avanços técnicos e científicos dos últimos cento e cinquenta anos possibilitaram um estado de segurança alimentar relativa e a superação de problemas decorrentes da má nutrição, por outro, somos submetidos à uma sucessão de recomendações, advertências, dietas, regimes e programas terapêuticos, muitas vezes contraditórios, produzidos por especialistas, governos, e até mesmo por profissionais de credenciais menos ortodoxas. Diariamente, somos orientados a consumir determinados alimentos e evitar certos nutrientes, instruídos a abandonar certos hábitos de consumo e a cultivar outros, navegando por uma complexa "paisagem nutricional", onde nossos principais guias são políticas públicas, informações e diretrizes produzidas de acordo com a racionalidade e método científicos. Nas dietas e padrões de alimentação modernos, estão em jogo

1 O termo “sociedades capitalistas contemporâneas” é empregado aqui para se referir ao contexto social dos Estados-nação atuais, capitalistas e ocidentais, nos quais entidades públicas, privadas e indivíduos são diretamente informados e influenciados pela produção científica ou, em outras palavras, onde a ciência possui relação direta com as percepções sobre saúde coletiva e individual. Também se refere aos contextos onde o cuidado de saúde é sistematizado e sujeito a intervenções de governos (sistemas públicos de saúde, vigilância epidemiológica e sanitária) ou atividades comerciais de entidades privadas (indústrias farmacêuticas e planos de saúde, por exemplo).

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nosso bem-estar, saúde e, em última instância, a adequação aos estilos de vida e padrões de consumo esperados das pessoas em nossa época.

Ao contrário das sociedades tradicionais, que selecionam os alimentos por meio de padrões culturais e identitários, por constrangimentos práticos como as estações, a variedade de fauna e flora, ou a qualidade das safras e dos rebanhos, nossas escolhas alimentares são multiplicadas pela variedade, rápida disponibilidade e pela dinâmica dos mercados capitalistas e sua produção industrial. Paradoxalmente, essas escolhas são também limitadas pelo risco percebido em certos produtos, pelos efeitos negativos da abundância, superprodução e do fácil acesso aos alimentos: nos dias de hoje, os alimentos são gradativamente relacionados com as "doenças da modernidade" ou "da civilização", isto é, com as doenças crônicas não-contagiosas, como os diferentes tipos de câncer e as doenças cardiovasculares, cuja causalidade é muitas vezes associada aos padrões alimentares que vivenciamos (Susser, 1985; Cordain et al, 2005; Taubes, 2008; Jones et al, 2012).

As mudanças de percepção em relação aos alimentos são resultado de processos semelhantes aos que constituíram uma nova visão de saúde e doença nas sociedades modernas. Processos sócio-históricos de secularização, racionalização e especialização profissional gradualmente constituíram os discursos científicos como a maneira legítima de falar sobre os processos de saúde e doença, enfraquecendo, em contrapartida, as noções de doença/saúde tradicionais, pré-modernas (Turner, 2000). Tais percepções tradicionais (em muitos casos baseadas em noções religiosas) se apresentam como mecanismos conceituais e reflexo das formas de organização dessas sociedades (Douglas, 1976). Nas sociedades tradicionais, as pessoas não adoeceriam por causa de microorganismos ou lapsos de higiene, mas por estarem violando regras sociais e morais, em completa oposição aos mecanismos de causalidade supostamente demarcados e identificáveis das sociedades contemporâneas ocidentais. A alimentação, de forma semelhante, é cada vez menos adotada pelos significados étnicos, por valores religiosos ou pelos ciclos da vida (por exemplo, mudança das estações e comemorações ou eventos culturais associados à passagem do

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tempo) e cada vez mais determinada pelo conhecimento científico, pela dinâmica dos mercados, por normas e políticas nacionais, e recomendações científicas de caráter universalizante (Douglas, 1984; Goode et al, 1984; Poulain, 2004).

"Ocidentalização" das dietas e doenças da civilização

Mudanças econômicas e nas formas de produção de alimentos nos últimos dois séculos contribuíram para alterações importantes nos padrões alimentares. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (2004), a disseminação de uma dieta densa em energia, com alto teor de gorduras (especialmente gorduras saturadas) e baixa quantidade de carboidratos, combinada com um declínio do gasto de energia diário associado aos estilos de vida sedentários, levou à emergência recente de doenças crônicas em todo mundo. Para os especialistas, esses novos padrões alimentares, disseminados desde o colonialismo e reforçados pela dinâmica econômica da globalização e pela industrialização -- onde produtos alimentícios tornaram-se commodities, comercializadas cada vez mais em nível global -- levaram ao declínio de dietas tradicionais, em um processo de transição alimentar.

Quase que invariavelmente esses novos padrões de dieta incluem produtos que foram adotados por sua durabilidade e facilidade para transporte, tais como o açúcar, melado, farinha refinada e arroz branco. Em decorrência da introdução desses produtos em contextos tradicionais, observou-se o aumento entre populações não-industrializadas da obesidade e de doenças como a diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão, câncer, cáries, apendicite, úlcera péptica, diverticulite, colelitíase (cálculo na vesícula), hemorróidas e constipação, até então praticamente desconhecidas para esses povos. Para alguns especialistas essas seriam, portanto, "doenças da civilização", isto é, doenças diretamente decorrentes do modo de vida e padrões de consumo ocidentais (Taubes, 2008; Cordain et al, 2005).

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Mesmo nos países ocidentais, onde essa transição alimentar não foi tão brusca, a abundância de alimentos industrializados, com adição de açúcar, farinhas refinadas, conservantes e outros produtos químicos, a redução dos custos e acesso facilitado são fatores comumente associados ao aumento de doenças crônicas não-contagiosas (Nestle, 2002).

Veja também: Perfil epidemiológico, Capítulo 3.

De forma mais precisa, a compreensão atual sobre os alimentos e seu papel na saúde é decorrente de avanços em diversas áreas da ciência, como a química, nutrição, fisiologia, estudos populacionais e os conhecimentos particulares sobre os diferentes males crônicos, especialmente a partir do final do século XIX. De fato, a compreensão dos efeitos positivos e negativos dos alimentos não existiria sem o escrutínio sistematizado a respeito da composição dos alimentos (isto é, a identificação e compreensão dos diferentes nutrientes presentes nos alimentos), o entendimento da interrelação entre esses nutrientes e, sobretudo, do conhecimento sobre sua atuação no corpo humano. Em outras palavras, trata-se de uma mudança gradual, mas intrinsecamente moderna e ocidental, nas formas de vivenciar a alimentação -- antes, uma atividade guiada por valores e noções tradicionais, e agora progressivamente dominada por uma lógica racional, secular e científica.

Esses avanços proporcionaram uma compreensão mais detalhada sobre a dieta e os produtos alimentícios disponíveis, sobre sua qualidade, e seus efeitos positivos e negativos. Por exemplo, nos dias de hoje é impossível dissociar o problema da obesidade do conhecimento científico e nutricional acumulado durante o século XX: tanto a conceitualização e dimensionamento do problema, quanto as medidas para sua reversão são majoritariamente informadas pelos conhecimentos científicos; dito de outra forma, não existe experiência contemporânea sobre a obesidade que não esteja relacionada, em maior ou

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menor grau, com termos técnicos como, digamos, calorias ou índice de massa corporal (IMC). Da mesma forma que as doenças se tornaram fenômenos submetidos à ciência e racionalidade, sendo objeto de um corpo profissional e discursos especializados, a alimentação (e seu papel para a saúde ou causalidade de doenças) também é subordinada a uma visão específica, produzida pelas sociedades modernas.

Todavia, esse conhecimento possui também efeitos negativos, inesperados. Para o sociólogo australiano Gyorgy Scrinis, a centralidade do discurso científico e o foco excessivo nos nutrientes que compõe os alimentos se manifestam na forma da ideologia do nutricionismo. Segundo o autor,

O nutricionismo -- ou reducionismo nutricional -- é caracterizado pelo foco redutivista na composição dos alimentos como forma de compreender sua salubridade, bem como pela interpretação redutiva do papel desses nutrientes na saúde do corpo. Um aspecto chave dessa interpretação redutivista dos nutrientes é que, em algumas instâncias (...) ela oculta e substitui as preocupações sobre a produção e qualidade de processamento de um alimento e de seus ingredientes (Scrinis, 2013: 2, grifo do autor).2

Em outras palavras, o olhar médico-científico contribui para a descontextualização ou simplificação do papel dos alimentos, padrões dietéticos e diferente nutrientes para a saúde humana, ao mesmo tempo em que ignora problemas como as formas atuais de produção e consumo dos alimentos. A noção de nutricionismo guarda, dessa forma, semelhanças com o processo de medicalização da sociedade. Se a medicalização é definida como a crescente expansão da jurisdição dos discursos médicos na vida cotidiana (por exemplo, por meio da transformação de problemas comportamentais como o alcoolismo em

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Apesar de ter sido popularizado por seu uso no livro "Em Defesa da Comida: Um Manifesto" de Michel Pollan (2008), o conceito nutricionismo foi apresentado por Gyorgy Scrinis, pela primeira vez, em um artigo chamado "On the Ideology of Nutritionism" (2008). Em seu livro "Nutritionism:

The Science and Politics of Dietary Advice" (2013), Scrinis critica a forma como o termo foi adotado

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problemas médicos),3 o nutricionismo é o principal mecanismo do avanço dos conhecimentos científicos (e, em especial, da nutrição) sobre as formas tradicionais e cotidianas de dieta e alimentação, notadamente em nome da saúde e bem-estar humanos. Em termos práticos, os alimentos passam a ser cada vez mais vistos como um aglomerado de nutrientes, positivos ou maléficos para a saúde, e cada vez menos como a expressão de costumes e conhecimentos locais, tradicionais.

Ainda que existam discordâncias e controvérsias entre os produtores dos discursos contemporâneos sobre a alimentação, a racionalização e cientificização do tema foram capazes de produzir um discurso relativamente unificado. Por um lado, o nutricionismo estabelece definitivamente a alimentação como um fator fundamental, não apenas para a nutrição e manutenção da vida, mas também para a boa qualidade de vida -- uma premissa resumida na antiga ideia de que "uma boa alimentação é condição indispensável para uma boa saúde", mas adaptada aos tempos atuais. Por outro lado, e em decorrência da premissa anterior, qualifica e classifica os alimentos de acordo com suas propriedades benéficas ou seus efeitos negativos, submetendo o ato da alimentação à racionalidade ocidental: não basta apenas escolher e consumir os alimentos corretos, mas consumí-los nas quantidades e proporções determinadas pelos especialistas médicos e da área de nutrição.

Sob o nutricionismo, uma refeição passa a ser vista quase exclusivamente como um conjunto de proteínas, gorduras, vitaminas e calorias que possuem determinados efeitos e consequências cientificamente catalogados e previstos para o funcionamento do corpo humano. Seus valores e usos, por exemplo, do ponto de vista cultural e da socialização tornam-se cada vez mais secundários. Em resumo, as noções ocidentais, modernas, gradualmente se estabeleceram como a base dos discursos contemporâneos sobre doença e saúde, suplantando concepções tradicionais sobre o tema. Portanto, os alimentos são cada vez menos apreciados por seu sabor, valor simbólico e cultural ou utilidade coletiva, mas

3 Para Conrad (1992: 209), a medicalização é o processo pelo qual “problemas não-médicos passam a ser definidos e tratados como problemas médicos.”

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gradativamente como produtos positivos ou negativos, quer podem ser reduzidos às suas particularidades nutricionais, e que devem ser levados em conta em nossas escolhas dietéticas, pois refletem diretamente em nossa saúde e bem-estar.

Convém ressaltar que o ideal reducionista se manifesta em diversos níveis do discurso sobre a alimentação. No estágio de produção do conhecimento, no âmbito da pesquisa científica, o reducionismo é apontado como uma prática comum, ainda que não problematizada. Por exemplo, de acordo com Marion Nestle, pesquisadora norte-americana, especialista em saúde pública e nutrição,

As pesquisas sobre os efeitos de um único nutriente tem maior probabilidade de serem financiadas, e os resultados são mais prováveis de ganharam as manchetes, especialmente se eles entram em conflito com estudos anteriores (Nestle, 2002: 20).

Além disso, o uso de biomarcadores individuais -- elementos ou substâncias químicas mensuráveis -- para a pesquisa sobre os mecanismos de causalidade das doenças crônicas pode ser um resquício das práticas (ou "estilo de pensamento") da epidemiologia das doenças infecciosas, onde um único elemento (digamos, um microorganismo) é suficiente para identificar um portador e as causas de sua doença. Garrety (1997) sugere que o uso do colesterol como marcador das doenças cardiovasculares pode ser resultado da persistência dessa prática, isto é, o uso frequente de um único biomarcador para determinar a causalidade das doenças e, em última instância, a condição fisiológica de um paciente. De forma relacionada, segundo Scrinis,

Desde os anos 1960, os peritos em nutrição se focaram em um número relativamente pequeno de biomarcadores internos (marcadores biológicos) do risco de adoecimento. Eles incluem a medição dos níveis de colesterol LDL e HDL no sangue, níveis de açúcar no sangue (hemoglobina A1c e índice glicêmico), hormônios como insulina e leptina, as necessidades de energia corporal medida em calorias, e o índice de massa corporal (Scrinis, 2013: 41)

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Essa seria, portanto, a contraparte biomédica do reducionismo nutricional: se a ciência da nutrição se caracterizou pela identificação dos componentes nutricionais dos alimentos, a ciência médica e a fisiologia também se envolveram, no decorrer do século passado, na identificação dos componentes biológicos do corpo humano e, por fim, de sua relação com a nutrição humana. Essa relação pressupõe um entendimento preciso e inequívoco dos processos bioquímicos e, dessa forma, a possibilidade de identificação de nutrientes "bons" e "ruins", em pesquisas cada vez mais específicas. Conforme apresentado adiante, a percepção generalizada sobre o papel das gorduras e do colesterol para as doenças cardíacas é um exemplo dessa lógica causal, reducionista e focada em alguns poucos biomarcadores. Para os críticos do reducionismo na pesquisa nutricional, esse raciocínio (ainda que fundamental para a evolução das noções de saúde e doença atuais) é essencialmente falho: primeiramente, ele causa uma confusão entre um fator de risco e a própria doença.

Em outras palavras, transformam de forma determinista, a presença do biomarcador ou fator de risco em uma certeza de adoecimento, o que se prova muitas vezes incorreto.4 Além disso, a ciência nutricional, as recomendações oficiais e o mercado de produtos alimentícios são questionados por analisar os nutrientes e alimentos de forma isolada, fora de contexto. Especialistas de dentro do campo da nutrição e saúde que assumem uma postura crítica e profissionais de outras áreas do conhecimento costumam apontar, por exemplo, que as pesquisas sobre alimentação ignoram os possíveis efeitos da interação entre diversos alimentos (Jacobs e Steffen, 2003; Jacobs e Tapsell, 2007), ou que o discurso do nutricionismo dificilmente leva em conta a origem, qualidade e

4

Por exemplo, durante boa parte do século XX, a causalidade das doenças cardiovasculares era conceitualmente e empiricamente associada a variáveis relativamente simples, como a quantidade total de ingestão de gorduras ou de gorduras saturadas. Por conta disso, especialistas recomendaram a substituição da gordura animal na alimentação. Como consequência, em grande parte dos alimentos industrializados, a gordura animal foi substituída pelo óleo hidrogenado; a manteiga, pela margarina; o bacon, pela proteína de soja; a gema de ovo, pelo amido de milho, etc., todos alimentos ricos em gordura trans. Recentemente, descobriu-se que a gordura trans -- “precisamente o tipo de gordura que os militantes em prol da pouca gordura passaram a maior parte dos últimos trinta anos nos encorajando a consumir” (Pollan, 2008: 54) -- é um dos tipos mais nocivos à saúde cardiovasculares. Este tema será abordado de forma recorrente ao longo do texto.

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quantidade de processamento de ingredientes envolvida em processos de industrialização (Gussow e Akabas, 1993), o papel do marketing e dos interesses econômicos das empresas produtoras de alimentos (Nestle, 2002; Lesser et al, 2007), ou o impacto dessas mudanças nos padrões dietários tradicionais ou estilos de vida.

As fases do nutricionismo

Para Scrinis (2013), o nutricionismo é um "paradigma" em constante evolução, tendo passado por três fases ou estágios distintos. Em um primeiro momento (do final do século XIX até meados do século XX), se caracterizou por uma racionalidade quase matemática e pela sistemática quantificação dos nutrientes nos alimentos, tendo em vistas as necessidades do corpo humano. A ênfase do discurso especializado era a identificação dos nutrientes essenciais para o crescimento, desenvolvimento e boa manutenção da saúde humana. A quantidade mínima necessária de calorias, vitaminas ou proteínas eram o objeto das pesquisas e políticas públicas sobre o tema. O autor chama essa fase de era da nutri-quantificação.

Em seguida, os avanços técnicos proporcionaram uma maior capacidade de diferenciação físico-química e metabólica dos nutrientes, abrindo caminho para a distinção entre nutrientes "bons" e "ruins" e, dessa forma, para identificação do papel de certos nutrientes na causalidade das doenças crônicas. Assim, o foco das pesquisas e políticas públicas nesse período (1960-1990) se modificou, das deficiências nutritivas para a redução e prevenção das "doenças da modernidade". Esse é o estágio dos nutrientes bons-e-ruins, durante o qual os guias e recomendações alimentares se popularizaram.

Por fim, o estágio atual -- a era dos alimentos funcionais -- consiste no aperfeiçoamento e na engenharia de alimentos, de forma a ressaltar as

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propriedades positivas de alguns nutrientes, incentivando sua inclusão nos produtos e dietas, buscando a otimização racional dos hábitos alimentares para a saúde humana.

Essa divisão por períodos históricos ou "estágios" se assemelha à reflexão sobre as diferentes fases da medicalização da sociedade, conforme apresentada por Clarke et al (2003). Para as autoras, a medicalização iniciou-se com a "ascensão da medicina" (1890-1945), passou por uma fase de medicalização propriamente dita (1940-1990), chegando a uma terceira fase, atual, de "biomedicalização" (isto é, o aprofundamento dos processos de medicalização por meio de avanços sociotécnicos como a biologia molecular, a genômica, transplantes e outras novas tecnologias médicas desde meados da década de 1980 até os dias atuais).

Em ambos os casos -- dos estágios do nutricionismo e das diferentes formas de medicalização -- os autores procuram demonstrar uma noção de continuidade (ou avanços gradativos e cumulativos) e a intensificação do caráter tecnocientífico sobre doença, saúde e alimentação, tanto do ponto de vista conceitual, quanto dos tratamentos e intervenções. Em comum, essas duas reflexões apontam para uma crescente "colonização" dos domínios de saúde e doença pelos discursos e práticas tecnocientíficas.

Por outro lado, o discurso do reducionismo nutricional apresenta-se como uma forma eficaz de disseminar o conhecimento e de reforçar políticas públicas e programas de ação. Isso ocorre porque a apresentação científica transmite um caráter universal e neutro para as recomendações produzidas por especialistas: diferentemente das práticas tradicionais sobre a alimentação (que são fortemente vinculadas com seu contexto originário e, portanto, menos intercambiáveis entre diferentes culturas), o discurso científico sobre a alimentação atua como o

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resultado de um sistema perito,5 que produz enunciados e recomendações que na maioria dos casos são válidos para todas as pessoas ou, no mínimo, para categorias específicas de pessoas. Por exemplo, mesmo as recomendações para classes de pessoas específicas, como os diabéticos (isto é, a interdição do consumo de açúcar) são válidas para todos os portadores da condição, independente de nacionalidade, religião ou etnia. Em outras palavras, são recomendações genéricas, "one size fits all", baseadas na noção de que o corpo humano e os agentes patológicos são, em certo grau, universais.

Como observou Zygmunt Bauman (2006), os riscos contemporâneos (muitas vezes apresentados nos dilemas de escolhas alimentares) são a fonte de muitas incertezas, inseguranças e ansiedades. Relações de causalidades simples, praticamente lineares, avalizadas por alguma forma de autoridade tornam-se particularmente eloquentes para os individuos expostos ao "medo líquido" na vida moderna, particularmente ansiosos por recomendações que guiem suas escolhas de consumo e estilos de vida. Seguindo Giddens (1984), poderíamos pensar em termos de "segurança ontológica", ou seja, a necessidade que as pessoas tem de previsibilidade, confiança e certeza de que o mundo social e natural são como eles se apresentam, gerando previsibilidade e facilitando assim as escolhas individuais. Ou ainda, para Mary Douglas, a profusão de recomendações alimentares é um subproduto "inesperado" da filosofia liberal, que pressupõe que o consumidor privado é uma pessoa incapaz de gerenciar suas próprias preferências alimentares sem alguma forma de orientação -- "o consumidor nas sociedades industriais modernas é retratado como obstinadamente conservador e cego em seu próprio benefício, como o lendário camponês no terceiro mundo ou em nosso próprio passado histórico" (Douglas, 1984: 4).

De todo modo, é possível assumir que o nutricionismo e as recomendações baseadas nessa filosofia se apresentam como uma nova forma, moderna e científica, de escolher alimentos e padrões de dieta. Independente da realidade

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Para Anthony Giddens (1991: 35), as sociedades modernas são dependentes de sistemas peritos (expert systems) ou "sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”.

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das informações apresentadas pelos especialistas (isso será discutido mais tarde), a alimentação e sua relação com as doenças tornou-se um problema cotidiano, real, que é percebido e vivenciado por meio de mecanismos sociais específicos -- políticas públicas, recomendações oficiais, discursos médicos e dietas (essas com maior ou menor grau de adesão ao discurso científico, mas ainda assim produzidas por algum tipo de perito, isto é, um ator social dotado de alguma forma de autoridade).

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Figura 1 - "Controle o colesterol" Fonte: Revista dos Vegetarianos (2013)

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(ex.: Figura 1, acima) representam uma dimensão dessa questão. Normalmente, apresentam os alimentos de forma essencialmente enquadrada nas mais populares diretrizes provenientes do paradigma do nutricionismo. Em muitos casos, as publicações tomam para si a credibilidade do nutricionismo científico, podendo até mesmo citar pesquisas científicas e resultados recentes para sustentar seu argumento ou recomendação. No entanto, fornecem ao consumidor um tipo de orientação que é, simultaneamente, mais acessível e menos consistente do que o jargão técnico, científico. Por um lado, suas recomendações e interdições alimentares são apresentadas de forma a maximizar a compreensão do público, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo; por outro, são um tipo de recomendação abundante, variada e frequentemente contraditória ("o que era bom agora é perigoso para sua saúde"), o que as torna muito mais uma fonte de insegurança ontológica do que um repositório seguro de estratégias de consumo e estilo de vida.

As ideias do nutricionismo tornam-se muito mais efetivas quando adotadas e disseminadas por atores sociais ou instituições tradicionalmente dedicadas à regulação da vida social e ao aconselhamento de cidadãos e consumidores como, digamos, agências governamentais. Nesses casos, as instituições também servem como “dispositivos de simplicação de problemas” (Douglas e Wildavski, 1982: 80), mas suas ações e intenções são qualitativamente e quantitativamente distintas. Para o caso abordado nesta pesquisa, esse aspecto das instituições é bastante importante: diante de um fenômeno objetivo específico (a emergência das doenças crônicas e sua relação com os hábitos alimentares), as instituições se apresentaram, historicamente, como um elemento central na coordenação da ação dos atores sociais distintos. Analisando a questão a partir do ponto de vista dos “leigos” (por exemplo, pacientes, educadores, etc.) a presença e ação de instituições sociais em relação ao problema percebido da “epidemia” de doenças cardíacas, representaria um mecanismo para informar e subsidiar processos de tomada de decisões. A organização, rotinização e “serialização” proporcionada pelas instituições (e seu caráter de persistência no tempo e no espaço) garante aos atores sociais os elementos para manter a segurança ontológica em

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momentos de incerteza e indeterminação. Nesse aspecto, as instituições historicamente envolvidas com o problema da alimentação se apresentam como repositórios de informação, conhecimento e normas para os indivíduos que, por sua vez, podem ou não adotar a postura determinada institucionalmente. A forma mais persistente e duradoura de adoção e disseminação do nutricionismo, dessa forma, são as políticas públicas para o tema, das quais os guias e recomendações oficiais são o exemplo mais marcante.

1.2 Uma paisagem de recomendações alimentares

The best way to ensure people eat well? Guidelines of course. What we can’t decide for ourselves, we can at least have other people tell us what to do. (Brones e Nestle, 2011)

A trajetória histórica do nutricionismo e da percepção atual da relação entre alimentação e as doenças é indissociável da elaboração e divulgação de recomendações alimentares oficiais, emitidas por alguma entidade governamental ou associação profissional. Esses documentos procuram resumir o consenso científico em torno da alimentação, nutrição e saúde, apresentando para a sociedade o pensamento mainstream sobre o tema. Mais precisamente, fornecem uma forma sistematizada para a seleção dos tipos e quantidades de alimentos necessárias para uma dieta adequada, do ponto de vista nutricional. Em outras palavras, guias e recomendações oficiais procuram traduzir a linguagem nutricional em termos de consumo necessário de alimentos, produzindo uma ligação entre o discurso técnico e a linguagem e práticas leigas (Welsh et al., 1993). Com isso, satisfazem o papel das instituições, "simplificando problemas" e apresentando aos cidadãos e contribuintes estilos de vida recomendáveis, seguros, cientificamente e moralmente corretos. Em contrapartida, servem aos policy makers e autoridades como um mecanismo de “governo à distância”, por meio de políticas de prevenção baseadas principalmente na auto-vigilância e

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controle, impostos aos indivíduos por meio da mobilização retórica do risco (Lupton, 1999; Turner, 1982).6

As recomendações oficiais são normalmente elaboradas com a consultoria e direção de profissionais conceituados e autoridades em seus respectivos campos de atuação. Apresentam algum tipo de diagnóstico do perfil epidemiológico, elaborações acerca do problema, e as diretrizes e cursos de ação para a diminuição ou eliminação desse problema. Costumam ser, dessa forma, essencialmente reducionistas: seu objetivo não é questionar o "estado da arte" da ciência nutricional, mas, ao contrário, reforçar sua validade e utilidade para a sociedade. Contudo, isso não significa que essas sejam recomendações descuidadas; na realidade, é imperativo que elas expressem uma racionalidade clara, de objetivos específicos. É preciso que os critérios e evidências escolhidos sejam explicitados, e a ciência subjacente -- métodos e resultados -- seja reiteradamente apresentada como sólida e definitiva. O sucesso e adoção de um guia alimentar depende, antes de mais nada, de sua consistência interna e de sua capacidade de mobilização dos atores sociais que constituem seu público-alvo, seja por sua utilidade percebida ou pela autoridade de seus produtores.

Guia, recomendação ou dieta?

No decorrer do texto, os termos "guia" e "recomendação" irão se referir aos documentos oficiais, emitidos por governos e outras instituições, com o intuito de fornecer diretrizes, aconselhamento e subsídios para a escolha de uma alimentação saudável. Ambos dizem respeito aos documentos e material de natureza técnica, que refletem uma poítica de saúde pública e são empregados como traduções intercambiáveis do termo em inglês guideline. Apesar de serem

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Essa perspectiva está intimamente relacionada com os aspectos coletivos da saúde: "as novas doenças 'sociais' do início do século XX (…) foram o alvo inicial de novas formas de cuidado médico, mas a principal expansão das técnicas de monitoramento ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, com ênfase no cuidado médico compreensivo, no cuidado primário e comunitário, sustentando a mobilização de serviços explícitos de vigilância como o rastreio e a promoção da saúde" (Armstrong, 1995: 399).

Referências

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