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A "segunda fase" do Framingham Heart Study

LISTA DE GRÁFICOS

3) ensaio clínico: é o desenho de estudo voltado para o teste de intervenções terapêuticas e preventivas, que serão testadas em ao menos dois grupos

2.2 Um pouco de história

2.2.2 A "segunda fase" do Framingham Heart Study

A segunda metade da década de 1960 representou um novo período conturbado para o estudo de Framingham, inicialmente por conta de um conflito velado entre os pesquisadores locais do estudo e os funcionários do NIH, localizados em Bethesda, MD. Aos poucos, se estabeleceu entre os pesquisadores a impressão de que as decisões sobre a condução da pesquisa e da análise dos dados eram ditadas por profissionais distanciados da realidade cotidiana do estudo, causando o descontentamento da equipe lotada em Framingham.

Como relembra Thomas Dawber:

A separação entre os pesquisadores que coletavam os dados daqueles diretamente responsáveis por sua análise se tornou um verdadeiro problema. (...) Eu percebi que como principal pesquisador eu tinha cada vez menos controle sobre a análise. Além disso, o pessoal do National Institutes of Health se tornou gradativamente mais possessivo em relação aos dados, ostensivamente para preservar a confidencialidade dos registros médicos (Dawber, 1980: 29).

A partir do depoimento do diretor, é possível inferir que se estabeleceu uma disputa em relação aos méritos e reconhecimento decorrentes do estudo, que

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começava a ganhar visibilidade dentre as comunidades científica e médica. Em sua narrativa oficial sobre o estudo, Dawber dá a entender que essa disputa seria a causa inicial da mudança ocorrida posteriormente no controle e condução do estudo, que deixaria de ser executado diretamente pelo National Heart Institute e passaria a ser gerenciado pela Boston University. Disputas por crédito, prestígio e autonomia não são incomuns na atividade científica, mas essa seria uma explicação parcial, baseada somente na história "oficial" do estudo. Por isso, convém qualificar as afirmações do ex-diretor.

De fato, diversos fatores poderiam ser implicados no surgimento desse impasse: em primeiro lugar, o estudo se aproximava da marca de vinte anos -- ou seja, o prazo originalmente proposto para sua realização -- e um comitê interno do NIH avaliou que ele havia atingido seus objetivos, podendo ser descontinuado (Castelli, 2013; Levy, 2013). Em outras palavras: o estudo atingiu seus objetivos originais, ao menos em termos de sua duração prevista. Em segundo lugar, havia nessa época uma predisposição para o financiamento de pesquisas relacionadas com testes laboratoriais e clínicos, em particular para males como o câncer (Levy e Brink, 2005).41 Em um artigo de 2012, a historiadora Sejal Patel, associada ao Office of History do NIH oferece uma interpretação complementar para esse acontecimento: para a autora, os questionamentos em relação à continuidade do estudo de Framingham podem ser explicados por mudanças nas políticas de administração e supervisão ocorridas no NIH a partir de 1965, que demandavam um posicionamento mais burocrático e orientado a resultados, por parte dos coordenadores do estudo. As origens dessa postura podem ser relacionadas, por um lado, pela pressão do Congresso (especialmente na figura do congressista democrata Lawrence H. Fountain) para uma maior transparência em relação às verbas destinadas ao NIH. Por outro, estão associadas a um processo de revisão interna dos projetos do NIH -- conhecido como "relatório Wooldridge" --, ordenado pelo presidente Kennedy. A partir desse relatório, se estabeleceu uma política de

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Essa mudança de ênfase na política de pesquisa biomédica se intensificou a partir do primeiro ano da gestão de Richard Nixon (1969), coincidindo com os cortes de recursos para o FHS. Mais tarde, a política de "guerra ao câncer" da gestão Nixon seria formalizada em torno do National

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revisões constantes dos resultados dos projetos do NIH, especialmente em relação aos seus possíveis payoffs e possibilidades de avanço técnico e científico (Patel, 2012). A natureza essencialmente "aberta" do FHS, relacionada com a impossibilidade de estabelecer metas e objetivos quantificáveis, e a necessidade de acompanhamentos de longa duração para a produção de resultados significativos representavam, nesse sentido, o oposto das práticas esperadas pelos policy makers e contribuintes, o que poderia explicar de outra forma as recomendações para o encerramento do estudo.

De qualquer forma, a direção do estudo não tardou a agir. Em 1966, percebendo que o apoio para o estudo estava em risco, Dawber se demitiu do estudo de Framingham, assumindo uma posição no Departamento de Medicina Preventiva da Boston University e deixando a direção do estudo para seu pupilo, William Kannel. Dawber iniciou uma massiva campanha para arrecadação de fundos, para garantir a continuidade do estudo no caso do corte efetivo das verbas governamentais. Em outubro de 1969, após várias disputas internas, o NIH determinou a interrupção do estudo de Framingham em julho de 1970; até essa data, o estudo seria reduzido a uma equipe mínima de cinco funcionários (entre eles, outro futuro diretor, William Castelli), encarregados da conclusão dos exames e da análise final dos dados. Em sigilo, Dawber e uma funcionária de longa data do FHS (Patricia McNamara) começaram a fazer cópias de todos os dados armazenados desde o início do estudo -- supostamente, a um custo pessoal de US$ 10.000 para Dawber (Levy e Brink, 2005: 118).

Desde seu desligamento e com a ajuda da Boston University, Dawber havia levantado US$ 500.000 de fontes privadas para a continuidade do estudo (Castelli, 2013; Richmond, 2006; Oranski, 2006). Do total arrecadado, aproximadamente US$ 40.000 foram doações de mais de mil moradores de Framingham, que enviaram cheques de até US$ 100 para a direção do estudo, demonstrando o estreito relacionamento entre o estudo e a comunidade. Seus principais colaboradores, todavia, eram as empresas de seguros, para quem as

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metodologias de cálculo de risco eram particularmente úteis.42 Com isso, a continuidade do estudo estava garantida, ao menos no curto prazo: nesse arranjo, os pesquisadores continuariam sendo pagos pelo governo, enquanto os exames e análise de dados seriam custeados com as verbas arrecadadas por Dawber. O corte de verbas públicas, no entanto, não passou despercebida, sendo criticada pela grande mídia43 e autoridades, como o senador Ted Kennedy e o influente cardiologista Paul Dudley White.44 Dawber havia conseguido mobilizar aliados importantes, o que aumentou a pressão pública para o prosseguimento do estudo. À pressão da opinião pública e de autoridades se somou um movimento interno no NHI, para direcionar verbas para o estudo de Framingham por meio de pesquisas sobre a hereditariedade das doenças cardiovasculares (uma área de conhecimento que estava em ascensão). Para isso, um projeto de pesquisa genética e hereditariedade, envolvendo a população de Framingham e os dados previamente produzidos foi elaborada e negociada em um curto período de tempo com o NHI. O estudo passou então a ser gerenciado pela Boston University, sob contrato com o governo federal para o repasse de verbas. Com isso, em 1971, se estabelecia o Framingham Offspring Study, composto por uma segunda geração de participantes, e uma nova etapa da história do estudo. A segunda coorte envolveu o seguimento de 5.124 participantes, a maioria filhos ou filhas dos participantes originais que ingressaram no estudo duas décadas antes. Além disso, os exames e acompanhamento da coorte anterior continuaram normalmente. Em termos práticos, o financiamento federal para o estudo foi interrompido apenas temporariamente, para ser reestabelecido sob uma nova rubrica.

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Para maiores informações sobre a longa relação entre as empresas de seguro e os fatores de risco, consultar Public Health and the Risk Factor: A History of an Uneven Medical Revolution, de William G. Rothstein (2008).

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Por exemplo, uma matéria do New York Times, "Big Study Program on Heart Attacks to Close

Because of Fund Shortage" (New York Times, 1969).

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Paul Dudley White (1886 - 1973) foi um médico cardiologista norte-americano. Formado em Harvard, serviu como médico durante a Primeira Guerra Mundial. Após o conflito, foi professor em Harvard e membro fundador da American Heart Association e presidente da International Society

of Cardiology. Publicou 12 livros e mais de 750 artigos científicos. No entanto, é mais conhecido

por ter atuado como médico pessoal de Dwight D. Eisenhower, após o ataque cardíaco do Presidente em 1955 (Favaloro, 1999).

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Assim, essas inovações no desenho do estudo foram resultado direto de mudanças contextuais e estruturais, que forçaram os pesquisadores a revisar sua prática e, de certa forma, reconstruir o estudo. Dito de outra forma, a "segunda fase" do estudo de Framingham não foi decorrente de processos deliberados, ou de estratégias previamente elaboradas de seus pesquisadores, mas muito mais da adaptação do estudo às contigências da política de pesquisa e da ação de atores sociais diversos. Ainda que o novo arranjo tenha representado, a princípio, um menor apoio do governo federal, por outro abriu caminho para a expansão do escopo e duração do estudo e, consequentemente, para a continuidade de sua produção e visibilidade. Em especial, significou o retorno do poder decisório para Dawber (agora na Boston University), Kannel e seus pupilos, como o futuro diretor William Castelli.45

Além da segunda geração, novos grupos de participantes foram incluídos sob o guarda-chuva do estudo de Framingham nas décadas subsequentes. Em 1994, diante das mudanças demográficas ocorridas na cidade e no pais, e pelo crescente interesse na questão racial e sua relação com saúde e doença, foi iniciado o projeto Omni Cohort 1, que consistia na inclusão de minorias na grande amostra criada pelos pesquisadores. Assim, 507 homens e mulheres, afro- americanos, hispânicos, asiáticos, indianos, nativos das ilhas do Pacífico e indígenas passaram a figurar nas estatisticas e produção de dados de Framingham, corrigindo um possível viés que determinava o estudo desde seu princípio: o foco em uma população cuja representatividade era, no mínimo, questionável.46 Esse projeto foi expandido, com a inclusão de novos indivíduos considerados como minorias entre 2003 e 2005, somando mais 410 novos

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Castelli começou sua carreira como pesquisador no FHS em 1965. Em 1979, assumiu a direção do estudo, permanecendo como pesquisador chefe até 1995. Naquele ano, desligou-se do estudo e se tornou diretor e médico praticante no Framingham Cardiovascular Center, uma clínica localizada a poucos quilômetros da sede atual do FHS (Castelli, 2013).

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O início do estudo de Framingham antecede o estágio da medicina racializada, isto é, a noção de que diferentes etnias são mais suscetíveis a determinadas doenças e que, por isso, devem ser submetidas a tratamentos e medicamentos diferentes. Estudos epidemiológicos alinhados a essa perspectiva são relativamente recentes. Um destaque é o Jackson Heart Study, iniciado no final dos anos 1990 e orientado para a investigação dos determinantes genéticos e raciais das doenças cardiovasculares. Por seu pioneirismo, esse estudo ficou conhecido como o "Black Framingham" (Pollock, 2007).

122 participantes.

Mais recentemente, o estudo se alinhou à pesquisa genômica. A partir de 1991, os participantes do Offspring Study passaram a ter sangue coletado com o objetivo específico de mapeamento de DNA. Em 2001, foi iniciada a seleção para a terceira geração de participantes (a coorte Gen III), que foram submetidos tanto aos procedimentos originais quanto à coleta de material genético. Os participantes originais não foram incluídos nessa etapa, por representarem uma amostra enviesada: os com maiores propensão para as doenças cardiovasculares provavelmente já haviam falecido e os sobreviventes eram, em grande medida, saudáveis. Para melhorar o poder estatístico dessa pesquisa genética, foi elaborado também a New Offspring Spouse Cohort: se o cônjuge de um participante do Offspring Study nunca havia participado do estudo e se, no mínimo, dois de seus filhos biológicos estivessem associados ao Gen III, ele foi convidado a participar dos exames genéticos, proporcionando aos pesquisadores do FHS um quadro mais completo sobre os elementos hereditários relacionados aos fatores de risco das doenças cardiovasculares (FHS, 2014). Sem dúvidas, a ênfase nos aspectos genéticos e o emprego de tecnologias genômicas é um reflexo de um movimento mais amplo, no campo da pesquisa médica, em direção a esse tipo de conhecimento como forma cada vez mais central para a produção de discursos (fontes biomedicina). Para Daniel Levy, essa racionalidade pode ser resumida da seguinte forma:

Existem dúzias -- talvez centenas -- de genes envolvidos nas doenças do coração e é muito provável que alguns desses genes atuem acelerando a suscetibilidade às doenças cardiovasculares em pessoas que fumam, consomem uma dieta rica em gorduras, não conseguem se exercitar, ou que ignoram outros riscos relacionados ao estilo de vida. Inversamente, uma pré-disposição genética às doenças do coração pode não se manifestar em alguém com uma carga pequena de fatores de risco -- um não-fumante com baixa pressão arterial, um baixo nível de colesterol LDL e um alto nível de colesterol HDL. (...) Ao procurarmos os genes das doenças cardíacas podemos descobrir novos fatores de risco críticos para a trajetória das doenças, relacionados com aterosclerose, suscetibilidade aos ateromas, coagulação do

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sangue e inflamações. Essas descobertas podem levar a novos tratamentos para pessoas com doenças do coração e novas abordagens para tratamento (Levy e Brink 2005: 224).

A inserção do FHS no paradigma genômico, no entanto, não aconteceu sem incidentes. No início dos anos 2000, como resultado de um plano dos dirigentes do estudo para permitir o uso dos dados genéticos do participantes por outros pesquisadores, grupos de pesquisa ou empresas, houve uma polêmica entre a tradicionalmente cooperativa população de Framingham. Muitos participantes sentiram-se frustrados e traídos pela possibilidade de seus dados genéticos serem usados por lucro ou, simplesmente, de terem sua "privacidade genética" violada (Metrowest Daily News, 2000). Eventualmente, a direção e apoiadores do estudo tiveram que esclarecer que os dados do estudo são de domínio público mas indubitavelmente sigilosos do ponto de vista individual, e que uma empresa que se instalou na cidade naquela época (Framingham Genomic Medicine) iria simplesmente "trazer novas tecnologias para organizar os dados do estudo e comercializar as ferramentas para sua análise" (Medscape, 2000: s/p), com a justificativa de, por exemplo, acelerar a pesquisa com novos farmácos. De qualquer forma, se houve algum plano no sentido de comercializar os dados genéticos da população como forma de obtenção de recursos para a manutenção do estudo, ele não foi jamais concretizado. De fato, a direção afirma que apesar da constante necessidade de recursos financeiros para viabilizar a pesquisa, jamais houve qualquer intenção semelhante por parte do estudo e seus pesquisadores (Levy, 2013).

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Figura 13: "Não gosto da direção que esse esquema lucrativo está indo!!" Fonte: Metrowest Daily News, 2000

Em particular, o episódio a respeito dos dados genéticos dos participantes demonstra que mesmo o apoio dos moradores de Framingham (um dos fatores mais estáveis do estudo) não é absoluto, mas sim condicional. Mesmo aliados aparentemente "desinteressados" ou altruístas são levados a mudar sua opinião, caso surjam condições que conflitem com sua visão de mundo, valores ou interesses. Portanto, é possível afirmar que a condução do estudo não é apenas uma questão de gerenciamento de elementos técnicos e conhecimentos médicos, mas também um exercício de constante negociação com os atores sociais que o

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apóiam. No final das contas, a tensão entre a necessidade de obtenção de recursos e o suporte da população local evidenciou esse dilema: ainda que seja preciso custear as despesas da pesquisa, a estreita relação entre os pesquisadores e a população local se mostrou ainda mais importante.

A questão dos recursos para a manutenção do estudo surgiu novamente em 2013, por ocasião do impasse em relação ao orçamento do governo norte- americano para o ano fiscal de 2014, que trouxe cortes emergencias de gastos públicos e reduções significativas e a longo prazo no investimento em diversas áreas, inclusive na pesquisa biomédica (no episódio conhecido como budget sequestration ou fiscal cliff). Como resultado dos cortes, o estudo de Framingham irá perder um aporte de US$ 4 milhões ao ano -- cerca de 40% do financiamento total anual proveniente do National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI). Os cortes serão efetivados a partir de agosto de 2014, afetando pessoal de áreas administrativas e de suporte, representando com isso uma redução nos exames clínicos e operações de laboratório. Conforme um boletim informativo publicado pelo estudo em fevereiro de 2014, os principais pesquisadores estão em contato com o NHLBI em busca de outras formas de financiamento para o estudo, de modo a garantir sua continuidade (FHS, 2014). Todavia, de acordo com uma funcionária do estudo (Splanski, 2014), as perspectivas futuras para o estudo ainda são incertas e é muito provável que algumas medidas de redução de custos tenham que ser mantidas. Ainda que os pesquisadores estejam otimistas em relação à sua continuidade, pouco sabem a respeito das condições para sua realização nos próximos anos. Novamente, é possível perceber que mesmo arranjos estáveis -- o FHS tem mais de seis décadas de história e apoio governamental! -- estão sujeitos a dificuldades e obstáculos relacionados com contextos mais amplos. Os próximos estágios do estudo irão depender possivelmente de novas formas de coordenação entre instituições e atores sociais diversos, cujas características e papéis são impossíveis de serem precisados.

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Ao discorrer sobre as diferentes formas de descrição (textual, narrativa, visual, etc.) do mundo social, o sociólogo Howard Becker adverte que toda representação é "necessariamente parcial, é menos do que experimentaríamos e teríamos à nossa disposição para interpretar se estivéssemos no contexto real que ela representa" (Becker, 2010: 31). Resumidamente, Becker está afirmando que descrições e narrativas serão sempre incompletas, em um ou outro aspecto. Esse também parece ser o caso de um relato histórico sobre um empreendimento científico: descrições sobre sua trajetória serão, inevitavelmente, parciais. Primeiramente, por serem elaboradas de forma assíncrona e indireta, essencialmente retrospectiva. Mais do que isso, por serem dependentes das fontes disponíveis, que podem limitar e direcionar a qualidade do relato. Finalmente, vale lembrar que tais representações são construções deliberadas do analista, que as confecciona por meio da seleção arbitrária de fontes e fatos a serem relatados, de acordo com seus vícios de formação e interesses de pesquisa. Portanto, aqui é preciso fazer uma ressalva: a apresentação e a reconstituição da trajetória histórica do estudo de Framingham apresentadas neste capítulo não são exaustivas e definitivas. Ao contrário, se apresentam como uma forma de introdução e contextualização, que permitem ao leitor ter uma ideia ampla a respeito das origens, natureza, trajetória e contingências do famoso estudo epidemiológico.

Para isso, em um primeiro momento, o capítulo se concentrou em demonstrar a importância do estudo de Framingham para os conceitos contemporâneos de saúde e doença, e em particular a respeito das doenças do coração. Sem adentrar em especificidades técnicas, procurou reconstituir os diferentes discursos sobre o FHS e sua posição no campo da epidemiologia. Trata-se, afinal, de uma exposição complementar ao capítulo anterior: se partirmos da premissa de que os estudos científicos sobre os fatores de risco encontram-se no cerne da apreensão contemporânea sobre a alimentação, nada mais correto do que analisar como noções de autoridade e legitimidade se

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apresentam nesse meio social, e como iniciativas como o FHS estebeleceram historicamente sua posição. Mais do que tratar de forma específica da questão da relação entre alimentação e as doenças do coração e dos fatores de risco, o texto pretende destacar, antes de mais nada, a posição do estudo de Framingham no grande panorama dos estudos epidemiológicos sobre as doenças crônicas.

Em seguida, o capítulo voltou-se para a trajetória história do estudo de Framingham. O maior foco é, inevitavelmente, a primeira fase do estudo, abrangendo os anos de 1948 até 1969. Isso se deve por dois fatores principais: primeiro, pelo maior interesse de pesquisa e existência de material bibliográfico e documental prévios que abordam essa fase do FHS -- isto é, o ciclo que compreende os antecedentes do estudo, sua conformação e o encerramento do primeiro período de acompanhamento de vinte anos, previsto originalmente. Em segundo lugar, esse viés pode indicar um gradual processo de estabilização e autonomização ocorrido, de fato, no âmbito do FHS. Dito de outra forma, é possível conceber que o acúmulo de experiência dos pesquisadores e participantes, a rotinização das práticas e a gradual inserção do estudo em esferas sociais mais amplas tornaram o arranjo sociotécnico do FHS menos problemático e, com isso, menos aberto à questionamentos, críticas e revisões externas. Afinal, quanto mais estável um certo arranjo sociotécnico é, menos está sujeito a distúrbios ou controvérsias.

Ressalvas à parte, o conteúdo do capítulo é ilustrativo. Por um lado, evidencia o fato de que ao longo dos anos o FHS tornou-se um gigantesco e complexo esforço sociotécnico, frequentemente determinado pelas dificuldades para sua manutenção, seja do ponto de vista financeiro -- isto é, dos recursos