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Condições necessárias e redes sociotécnicas

LISTA DE GRÁFICOS

3) ensaio clínico: é o desenho de estudo voltado para o teste de intervenções terapêuticas e preventivas, que serão testadas em ao menos dois grupos

3.1 Condições necessárias e redes sociotécnicas

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Para elaborar essa descrição sociológica, complementar à narrativa histórica foi adotado, em primeiro lugar, um princípio metodológico (ou, digamos, uma intenção) geral: seguir os atores ou retraçar as redes ou associações que constituem os fatos científicos. A ideia, dessa forma, não é tanto de reconstituir uma cadeia de relações causais, determinísticas, que dão sentido para uma narrativa linear sobre um empreendimento científico, mas descrever as condições que possibilitaram a existência do estudo de Framingham como um objeto ou processo de associação de diversos elementos sociotécnicos, em constante mudança.

Esse tipo de narrativa ou descrição está baseada em dois princípios: por um lado, a substituição de um modelo determinista da causação social -- caracterizado tipicamente por leis ou teorias generalizantes -- por uma postura mais descritiva, relacionada com a identificação de causas possíveis, cumulativas e não-exaustivas para os fenômenos sociais (Becker, 1994). Partindo desse princípio, foi possível identificar os fatores envolvidos na construção do estudo de Framingham, considerando várias relações de influência social ou técnica, sem realizar escolhas prévias, determinadas por uma postura conceitual, a respeito dos atores ou processos sociais possivelmente envolvidos. Por outro lado, a análise se baseia nos princípios do relacionismo semiótico e de simetria, conforme propostos pelos autores vinculados à Teoria do Ator-Rede. Trata-se da premissa de que os fatos científicos são resultado da associação simétrica de elementos sociais e técnicos, natureza e cultura, racionalidade e moralidade. Com isso, é possivel relacionar fatores de propriedades distintas, sem priorizar o discurso científico (determinismo técnico) ou grandes teorias das Ciências Sociais (determinismo social). Essa postura -- marcadamente indutiva -- procura lidar com as dificuldades e limitações decorrentes do uso de teorias sociais de grande alcance, generalizantes.47 Nesse aspecto, a adesão ao relacionismo semiótico ou à Teoria

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A discussão nesse ponto se assemelha à proposta de "teorias de médio alcance" de Robert K. Merton: "nossa principal tarefa hoje é desenvolver teorias aplicáveis a alcances conceituais limitados (...) ao invés de procurar por uma estrutura conceitual total" (Merton, 1968: 51); a

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Ator-Rede não é apenas um compromisso teórico, mas principalmente uma escolha metodológica e operacional. O objetivo final não é, portanto, listar as causas definitivas do estudo de Framingham. Pelo contrário, trata-se de descrever como ele se tornou possível, dos pontos de vista social e técnico, dado seu contexto histórico.

De forma mais detalhada, em primeiro lugar é preciso analisar a intuição de Howard Becker sobre a noção de causalidade dos fenômenos sociais:

Nós podemos destacar o que foi importante para a ocorrência de um evento posteriormente, mas não podemos especificar todas essas condições antecipadamente. Isso significa que a noção convencional de explicação científica, que toma a habilidade de previsão como sinal de uma explicação adequada, é falha (Becker, 1994: 187).

Para o autor, um exemplo expressivo pode ser extraído do caso de uma sinfonia ou concerto musical (Becker, 1982). Para que uma apresentação como essas ocorra, é imperativo que as pré-condições necessárias estejam colocadas -- são necessárias a presença dos músicos, dos instrumentos, das partituras, ensaios prévios, a audiência e o condutor em seus lugares, etc. Dito de outro forma, é necessário que uma série de elementos estejam "em ordem", para que a sinfonia ocorra. Todavia, mesmo com todos esses elementos presentes, é possível que a sinfonia não ocorra, ou transcorra de maneiras mais ou menos diferentes -- os músicos podem errar na execução, alguém na plateia pode se enfurecer e causar uma confusão, a energia elétrica pode falhar, o teatro pode pegar fogo, etc. Ou seja: existem inúmeras formas de as condições necessárias estarem em ordem e, mesmo assim, o concerto deixar de ocorrer. De maneira semelhante, em se tratando do mundo social, a presença das pré-condições necessárias não significa que os processos sociais se desenrolem de uma maneira fixa, previsível. Assim, para analisar um evento ou fenômeno geralmente partimos do fato ocorrido e inferimos, retroativamente, os antecedentes e

racionalidade aqui é partir de casos específicos, empiricamente investigáveis, e avançar gradualmente para esquemas conceituais mais amplos.

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condições necessárias para sua existência ou acontecimento. No caso do estudo de Framingham, nos concentraremos em descrever as condições necessárias para seu surgimento, ou seja, procuraremos identificar os elementos que foram necessários (e que se agruparam de forma cumulativa) para sua existência. Essa postura proporcionará uma ideia geral sobre as origens do estudo, mas também sobre seu estado atual: ao olharmos para o passado, é possível apreender a origem, características e dinâmica das escolhas técnicas e sociais que demarcam o estudo nos dias de hoje.

Em segundo lugar, a escolha desses elementos de interesse, a serem "seguidos" e empregados na construção da narrativa sociológica sobre as causas e condições necessárias, foi determinada por um princípio metodológico geral, defendido por Bruno Latour: trata-se da ideia de seguir os atores e a partir de sua narrativa própria reconstituir as redes ou associações que constituem os fatos sociais e científicos.48 Para os autores vinculados à Teoria Ator-Rede, fatos científicos e arranjos tecnológicos podem ser descritos como resultado do correto alinhamento de diferentes elementos, muitas vezes de natureza radicalmente distinta. Em outras palavras, um fato ou tecnologia estabelecidos, bem como sua trajetória histórica, são diretamente relacionados com a "engenharia" (ou ainda, “associação”) de diferentes elementos heterogêneos. Assim, cientistas e técnicos não fazem simples descobertas a respeito do mundo natural, descrevendo uma realidade objetiva ou criando construtos funcionais. Mais do que isso, esses "construtores de fatos" (Latour, 2000) avaliam e interpretam problemas, utilizando um estoque de conhecimentos existentes e das ferramentas técnicas disponíveis para construir formas para apreensão de diferentes fenômenos e intervenção no mundo natural, de acordo com os diferentes interesses sociais envolvidos em seu contexto social e histórico, que definem os propósitos e significados desses arranjos.

A Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory, ANT) é, atualmente, uma das

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Nas palavras de Bruno Latour, "a escolha é então clara: ou seguimos os teóricos sociais e iniciamos nossa viagem determinando desde o princípio que tipo de grupo ou nível de análise que vamos focar, ou seguimos os próprios caminhos dos atores e começamos nossas viagens pelos traços que eles deixam para trás por conta de sua atividade" (Latour, 2005: 29).

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perspectivas teóricas mais conhecidas no campo dos ESCT. Organizada em torno de autores como Bruno Latour, Michel Callon e John Law, a Teoria Ator-Rede pode ser considerada como um corpo flexível de premissas e conceitos, que foram sendo modificados e aprimorados no decorrer de sua trajetória histórica, conforme as especificidades apresentadas pelos casos empíricos estudados. No cerne desta “sensibilidade” específica para a análise social, porém, encontram-se alguns preceitos que podem ser identificados desde trabalhos pioneiros como "A Vida de Laboratório" (Latour e Woolgar, 1997) ou "Éléments pour une sociologie de la traduction: la domestication des coquilles St-Jacques et des marins pêcheurs dans la baie de St. Brieuc" (Callon, 1986), e sistematizados em obras como "Ciência em Ação: Como Seguir Cientistas e Engenheiros Sociedade Afora" (Latour, 2000). Resumidamente, John Law (2009: 146) indica as seguintes premissas centrais para os trabalhos da Teoria Ator-Rede:

a) relacionismo semiótico: as redes sociotécnicas que constituem o conhecimento científico e as tecnologias e, em última instância, a sociedade, são compostas de elementos que se definem e moldam mutuamente, discursiva e materialmente. Assim, por exemplo, distinções entre natureza e cultura tornam- se menos importantes: da mesma forma que a natureza impõe condições objetivas à sociedade, os discursos e produtos culturais dão sentido e significado à realidade.

b) heterogeneidade e materialidade: estas redes são compostas por elementos diversos, de natureza humana e não-humana. Para compreender propriamente a ontologia das redes sociotécnicas, é necessário considerar simetricamente os aspectos materiais e discursivos dessas redes, sem priorizar os atores (ou actantes) humanos. Em outras palavras, em um arranjo sociotécnico um elemento não-humano (um objeto, artefato ou uma parte da natureza) é tão importante quanto

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c) rede como um processo: um fato científico, um artefato tecnológico e até mesmo os grupos sociais não são elementos estáveis, acabados. Ao contrário, eles são conjuntos que precisam ser constantemente reafirmados, através de ações coordenadas dos diversos atores sociais envolvidos;

Assim, a adesão à proposta teórico-analítica da Teoria Ator-Rede passa necessariamente, pela compreensão dessa dimensão muito específica deste conjunto de trabalhos: a perspectiva da Teoria Ator-Rede pressupõe um esforço analítico e descritivo voltado para a compreensão do “efeito continuamente criado pela teia de relações” nas quais os atores sociais estão inseridos (Law, 2009: 141). Muito mais do que uma descrição estática de “redes”, trata-se de dar atenção especial aos processos de ação, agenciamentos e fluxos discursivos e materiais, e como eles "performam" ou co-constróem o mundo natural e social (Callon, 2009). Mais recentemente, Bruno Latour (2005) têm chamado essa perspectiva de "sociologia das associações". Para o autor, a tarefa da sociologia contemporânea seria retraçar e descrever as associações entre os atores sociais, humanos e não-humanos, de forma a compreender o que torna possível a vida em sociedade.

O estudo populacional de Framingham é abordado neste capítulo sob essa mesma ótica. Partindo da premissa de que esse arranjo (o estudo e seus resultados) é um processo contínuo de alinhamento (e realinhamento) de uma série de elementos distintos, o texto procura descrever como interesses específicos, socialmente contextualizados e determinados, possibilitaram o surgimento e a condução do FHS, tal qual essas etapas aconteceram. Em particular, procura evidenciar os elementos sociotécnicos à disposição dos atores sociais envolvidos e como sua associação definiu o produto final que, por sua vez, ajudou a reconstruir o próprio contexto, isto é, as percepções sobre saúde, doença, fatores de risco e alimentação. Por meio das narrativas existentes sobre o

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estudo (em grande parte produzidas pelos próprios pesquisadores envolvidos), a análise procura identificar as associações, sociais e técnicas, que permitiram a criação do estudo de Framingham. Como resultado pretendido está a descrição das condições (refletidas na rede ou associações e que foram retraçadas por meio da pesquisa histórica) que possibilitaram a construção da percepção atual das doenças do coração e dos fatores de risco, como ocorridas no caso de Framingham.