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LISTA DE GRÁFICOS

1.4 Considerações finais

As concepções contemporâneas sobre a alimentação e sua relação com a saúde humana são essencialmente distintas da perspectiva das sociedades tradicionais, não-industrializadas, podendo ser associadas com processos sociais mais amplos, como a secularização, biomedicalização e o nutricionismo, que gradativamente colocam o conhecimento técnico e científico como principal fator de definição de problemas, recomendações e ações para o tema da saúde humana. Nos últimos 150 anos, essa forma de conceitualizar e intervir no problema se disseminou

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significativamente, sendo adotada em diversas esferas sociais, em grande medida por sua incorporação em políticas públicas, isto é, por meio da intervenção de entes institucionais, governamentais ou ainda por ação de grupos e interesses profissionais associados ou dependentes de uma perspectiva científica sobre o tema. Com isso, as recomendações de caráter técnico passaram a ser incorporadas na vida cotidiana, como uma forma de consumidores e cidadãos tomarem decisões sobre a saúde pessoal, especialmente em relação à alimentação e saúde humana.

Todavia, as premissas, dados e resultados científicos que embasam as recomendações oficiais não são verdades e fatos imutáveis, inquestionáveis. Ao contrário, estão em constante redefinição, seja por avanços cumulativos no conhecimento e práticas científicas, seja por redefinições que envolvem interesses de atores e grupos específicos. O caso da constante redefinição da hipótese lipídica apresenta-se como um exemplo desse fenômeno: gradualmente construída por especialistas e adotada por instituições e pelo público no decorrer do século passado, foi submetida à redefinições importantes provenientes do próprio campo científico, estabelecendo uma situação de controvérsia ainda não resolvida. Isso ocorre, em parte, pelos diferentes ritmos da ciência e da política -- os avanços científicos nem sempre são prontamente adotados pelo grande público ou instituições (Collins e Evans, 2002) -- mas também pela impossibilidade de resolução imediata das controvérsias na própria comunidade científica e pela existência de diversas "versões" da hipótese lipídica, que são vivenciadas pelas pessoas sem que um consenso firme seja estabelecido.

O breve histórico apresentado neste capítulo sobre as concepções modernas da alimentação e sua relação com a saúde humana buscou familiarizar o leitor com algumas das dimensões e atores sociais envolvidos com o tema nos dias de hoje. De forma mais específica, o levantamento apresentado procurou situar o debate sobre a relação entre a dieta e as doenças crônicas cardiovasculares e, em especial, sobre a hipótese lipídica. Demonstrou que a apreensão científica sobre a alimentação, do ponto de vista da saúde humana, e a hipótese lipídica são fenômenos sociais relativamente recentes, que se iniciaram

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como discursos médico-científicos e que foram publicizadas por meio do estabelecimento de políticas e recomendações públicas, principalmente nos Estados Unidos e, posteriormente, no resto do mundo industrializado. Procurou ainda evidenciar o caráter "transversal" do fenômeno da alimentação no mundo moderno, que perpassa diferentes contextos sociais, ora modificando-os, ora sendo por esses contextos moldado. Muito mais do que esgotar o tema, trata-se de uma espécie de levantamento introdutório que busca fornecer os elementos analíticos para, em primeiro lugar, uma apreensão geral sobre o grande tema em questão (a relação alimentação e saúde nos dias de hoje); em segundo lugar, procura servir de introdução para o debate dos capítulos seguintes, que se focará em um estudo científico específico, frequentemente apontado como uma das origens da hipótese lipídica e dos fatores de risco, o Framingham Heart Study. Em resumo, o capítulo procura situar o leitor em relação a um debate muito amplo, fornecendo elementos pontuais para que ele se familiarize com as questões, atores sociais e interesses a serem abordados no restante do texto.

Governos, atores institucionais e a indústria de alimentos são elencados como parte dessa trajetória histórica. De fato, muitas narrativas sobre as recomendações oficiais sobre a alimentação são construídas levando-se em conta, de maneira quase exclusiva, os interesses dessas atores. É possivel argumentar, por exemplo, que as indústrias de alimentos e de produção de medicamentos tenham um papel considerável na trajetória histórica da condenação às gorduras e sua associação com as doenças cardíacas. Todavia, culpar as indústrias alimentícias em uma espécie de sociologia de denúncia é um reducionismo ou senso-comum sociológico. Sobretudo, é uma visão parcial sobre o tema. É fato que as indústrias interferiram fortemente nesse processo, mas mesmo a aceitação dessa hipótese deixa em aberto uma série de questões subjacentes: quais as condições que permitiram que isso ocorresse? Em que as indústrias se ancoram e como concedem legitimidade aos seus interesses? Qual a forma de autoridade que encontra-se no cerne das afirmações sobre saúde e nutrição?

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como aquelas envolvidas na elaboração de recomendações alimentares. É possível argumentar que esses guias são resultado de processos políticos que aproximam a ação política e a realização de interesses, por exemplo, da indústria capitalista. No entanto, as indústrias apenas não são a fonte da legitimidade e autoridade das recomendações. Essas dimensões são garantidas pelos produtores de conhecimento que, por sua vez, são guiados por um conjunto próprio de interesses e valores. Não existe ciência sem cientistas, e esses profissionais atuam por meio de uma dinâmica própria, influenciados por fatores que extrapolam ou complementam a simples argumentação do interesse econômico. Em suma, a análise sociológica sobre o problema da alimentação e da hipótese lipídica não pode ser submetida (ironicamente) a uma espécie de reducionismo, dessa vez de natureza econômica. A investigação cada vez mais específica do inner core da atividade cientítica sobre o tema demonstra-se necessária e rica. É nesse contexto social, cuja ação dos atores tem reflexos em todas as fases da "vida social" do conhecimento -- elaboração, legitimação, divulgação -- que se encontrarão as respostas necessárias para uma apreensão mais qualificada (e relativamente inédita) sobre o problema em questão.

A pergunta que se coloca, então, é: como tais recomendações -- corretas ou incorretas -- se tornam duradouras? O que leva as pessoas a seguirem tais recomendações? Que tipo de autoridade? A primeira parte dessa resposta pode ser relacionada com a necessidade de previsão e antecipação na vida moderna, algo que proporcione a "segurança ontológica", ou a certeza sobre o estado das coisas para que possamos formular escolhas e planos individuais. Em parte, essa segurança é fornecida pelas instituições, que garantem a reprodução no espaço e no tempo de certas ideias, valores, formas de agir. Mas a autoridade reconhecida das recomendações é derivada da ciência como atividade social e, assim, dos cientistas como atores privilegiados, com legitimidade para a produção de certos conhecimentos e recomendações a eles associados. Por isso, uma das formas possíveis (existem outras) de investigação sociológica passa pela análise das atividades dos cientistas, e os resultados dos estudos que informaram, em primeiro lugar, os policy makers e profissionais da saúde. Os elementos em

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comum às diferentes versões da hipótese lipídica, aos discursos de seus críticos, e das recomendações oficiais que procuram traduzir esse debate para o público são essencialmente científicos. Assim, é possível concluir que esse é o objeto a ser estudado e analisado para construir uma compreensão mais ampla sobre o tema da alimentação contemporânea. Se ambas as posições, pró e contra a hipótese lipídica, se baseiam em estudos científicos, é preciso elaborar uma descrição sociológica sobre esses estudos, de forma a desvendar a origem de seu poder simbólico, sua colocação privilegiada como discurso legítimo e sua adoção pelos entes institucionais e, em última instância, pelo público.

Do ponto de vista do cidadão ou consumidor comum, o conhecimento cientifico é a origem distante das formas de alimentação contemporâneas, das quais ele vivencia apenas os efeitos mais "exteriores". Aqui, a metáfora das bonecas russas, das camadas de uma cebola ou de um mundo em diversos níveis, é pertinente: as recomendações alimentares que vivenciamos diariamente são resultado de uma série de constrangimentos, negociações e adaptações cumulativas, das quais vivenciamos apenas o estágio mais acabado, exterior, mas cuja origem última encontra-se nas pesquisas científicas idealizadas e conduzidas, muitas vezes, em contextos e condições desconhecidas ou que pouco tem a ver com a realidade vivenciada cotidianamente. Para a maior parte da população, as recomendações alimentares e os males de uma dieta incorreta são apreendidos por meio de veículos da mídia ou material publicitário que procura traduzir e simplificar as recomendações oficiais emitidas pelos governos das sociedades industriais contemporâneas; essas recomendações, por sua vez, já são uma espécie de "redução" ou simplificação de um consenso cientifico, que pode ou não ser sólido e estável; por fim, fatos científicos, são produzidos de acordo com uma dinâmica própria que, em muitos casos, elimina ou oculta opiniões contraditórias, dados inconsistentes ou incertezas surgidas durante o processo de pesquisa. Todas essas contingências são ocultas, deliberadamente ou por força dos contrangimentos práticos, de forma que seu público-alvo aceita a veracidade das informações por conta da autoridade dos atores sociais envolvidos no decorrer do processo. Sobretudo, prevalece a crença na ciência moderna e, por isso, ela se

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encontra no cerne do discurso contemporâneo sobre alimentação. Para estudar o sucesso de recomendações alimentares, de hipóteses etiológicas e concepções sobre saúde e doença, devemos nos voltar cada vez mais para seu contexto de produção e para sua fonte de legitimidade: o conhecimento científico.

No caso específico das doenças cardiovasculares, e do papel do colesterol e da gordura na saúde humana, existe uma variedade enorme de estudos científicos que originaram nossa concepção atual. Poucos deles, no entanto, possuem as características do Framingham Heart Study. Trata-se de um estudo pioneiro, de longa duração e que resultou em uma produção acadêmica significativa, influenciando de forma indubitável as concepções atuais sobre o tema. Se a experiência contemporânea sobre saúde e alimentação passa por diversas esferas sociais mas é definida, em última instância, pelo conhecimento médico e científico, é preciso investigar como esses conhecimentos se conformam. Ou, mais precisamente: é preciso compreender como interesses sociais se realizam e conformam na própria elaboração e condução de experimentos científicos sobre a alimentação e as doenças crônicas. A escolha metodológica e temática em se investigar a criação e condução de um estudo epidemiológico específico é, dessa maneira, um recurso para examinar ainda mais detalhadamente as condicionantes sociais que moldaram as formas contemporâneas de perceber as doenças crônicas e sua relação com a alimentação.

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CAPÍTULO 2

O Framingham Heart Study, sua importância e trajetória histórica

No capítulo anterior, foram abordados alguns aspectos da percepção das sociedades industriais contemporâneas acerca da relação entre alimentação, saúde e doença. A racionalização e o crescente papel do conhecimento científico foram apontados como elementos centrais para as respostas sociais e institucionais sobre o tema e para sua consolidação em torno de políticas públicas (por exemplo, os guias e recomendações alimentares governamentais, surgidos no decorrer do século XX). Essa mudança pode ser relacionada com descobertas e avanços em várias áreas do conhecimento médico, que se complexificaram e se influenciaram mutuamente. Dentre essas diversas inovações, os estudos epidemiológicos proporcionaram as ferramentas conceituais e os dados necessários para abordar e intervir em problemas como o aumento das doenças crônicas relacionadas com a alimentação.

No caso específico dos riscos do colesterol no sangue e da ingestão de gorduras na alimentação, iniciativas como o Framingham Heart Study foram empregadas para a elaboração (ou ainda, para a legitimação) de políticas públicas de saúde, que advogam restrições alimentares, alterando diretamente nossos estilos de vida e escolhas de consumo. Em um contexto racional, moderno, é necessário que essas políticas sejam condizentes com as formas legítimas de produção de conhecimento, ou seja, a ciência. Assim, é possível afirmar que os estudos epidemiológicos encontram-se na base da experiência pública e privada sobre as doenças do coração e seus fatores de risco. Ainda que esses conhecimentos estejam socialmente apartados do cidadão normal em termos de sua produção, seus efeitos são experienciados diariamente, a cada refeição, ida ao supermercado ou consulta médica.

As análises sociológicas ou de caráter histórico sobre esse fenômeno se apresentam, consequentemente, como formas para compreensão dos mecanismos pelos quais essas ideias e conhecimentos se disseminam. No centro

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desse fenômeno de difusão encontram-se, sem dúvida, os processos de construção da validade interna e da legitimidade externa dos conhecimentos científicos. Por exemplo, para compreendermos o papel do estudo de Framingham nas políticas de alimentação atuais, precisamos realizar um movimento de análise duplo: por um lado, é preciso verificar como ele se constituiu, nas comunidades médica e científica, como uma referência válida, com capacidade de produzir dados certificados; por outro, é preciso entender como ele se apresentou para a sociedade em geral, como um arranjo dotado de legitimidade e capaz de influenciar a elaboração de políticas públicas e decisões individuais. Em ambos os casos, antes de mais nada, é necessário conhecer sua trajetória histórica. Muito mais do que um relato acrítico, meramente descritivo, esse movimento é necessário para elencar, relacionar e qualificar os atores e processos sociais, as contingências e obstáculos, e as diferentes estratégias empregadas pelos pesquisadores e entidades envolvidas para garantir a validade e legitimidade do estudo de Framingham. Com isso, é possível escapar de um relato histórico possivelmente inócuo e, ao contrário, compreender como esses fatos científicos tornam-se estáveis, duráveis e socialmente aceitos.

O Framingham Heart Study é frequentemente descrito como uma espécie de "laboratório populacional", com mais de seis décadas de execução, voltado para a compreensão das doenças cardiovasculares e seus fatores de risco. É normalmente relatado como um marco na pesquisa epidemiológica e como o berço do conceito de fatores de risco. Obviamente, esse tipo de descrição geral não é capaz de explicitar as nuances e detalhes de sua origem e de sua condução. As pesquisas históricas e sociológicas se apresentam, assim, como formas possíveis para qualificar essa visão ampla, não-problematizada. Para tanto, neste capítulo será apresentada a primeira parte de uma descrição que procura relatar o surgimento e a trajetória histórica do estudo.

Em um primeiro momento, serão apresentados discursos "nativos" produzidos por cientistas e especialistas, que ajudem a substanciar a importância percebida do estudo dentro do paradigma biomédico atual. Em outras palavras, trata-se de evidenciar os motivos pelos quais o estudo é respeitado e celebrado

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por cientistas e profissionais da saúde. Em seguida, sua trajetória histórica será analisada mais detalhadamente, procurando compor um quadro geral, que ajude o leitor a compreender o estudo como uma atividade socialmente contextualizada. Trata-se, portanto, de um tipo de descrição ou representação social que procura complementar os discursos oficiais e que sugira possíveis linhas de questionamento e análise sociológica. Essa digressão torna-se necessária, à medida que o texto e a análise tornam-se gradativamente mais específicas e técnicas. Sobretudo, a contextualização serve como um prelúdio para o modelo de antecedentes sociotécnicos a ser explorado no capítulo 3. Nesse sentido, apresenta ao leitor um quadro geral, que será então aprofundado e sociologicamente analisado em momentos futuros.