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LISTA DE GRÁFICOS

3) ensaio clínico: é o desenho de estudo voltado para o teste de intervenções terapêuticas e preventivas, que serão testadas em ao menos dois grupos

3.2 Perfil epidemiológico

Sem dúvida, a primeira condição para o surgimento do estudo de Framingham e demais estudos epidemiológicos de caráter populacional foi o fenômeno da transição epidemiológica, ou seja, as mudanças nas características e distribuição das doenças que atingiram as populações no decorrer do século XX e, em particular, a emergência de novas doenças e enfermidades. A comparação entre perfil epidemiológico (ou "carga de doenças", burden of disease) do começo do século passado e dos anos 2010, tomando como exemplo os Estados Unidos (Gráfico 2, abaixo), permite compreender algumas das características da transição epidemiológica. Ao invés de falecer em decorrência de males como a gripe, infecções gastrointestinais ou tuberculose, as pessoas nas sociedades ocidentais contemporâneas passaram a sofrer (em grande medida e principalmente nos países desenvolvidos) de doenças cardiovasculares, cerebrovasculares ou diferentes tipos de câncer. Em resumo, trata-se da diminuição das mortes por doenças infectocontagiosas e o aumento das mortes decorrentes de males crônicos.

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Gráfico 2: Número de mortes a cada 100.000 habitantes (EUA), 1900 e 2010 Fonte: Jones et al. 2012

Mais particularmente, essa transição costuma ser relacionada com fenômenos demográficos, econômicos e técnicos ocorridos a partir do começo do século XX que são representados pelo contínuo incremento da produtividade econômica, que levou a um aumento da qualidade de vida, melhor nutrição, diminuição da mortalidade infantil, redução das taxas de natalidade e envelhecimento da população em geral, tendo como principal efeito um aumento da incidência das doenças crônico-degenerativas anteriormente associadas majoritariamente à velhice (Susser, 1985). Trata-se, portanto, da ideia de que mudanças ocorridas em diversas esferas da vida social contribuíram para

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alterações quantitativas e qualitativas das mortalidade e morbidade de diferentes doenças em populações humanas.49

Perfil epidemiológico: países subdesenvolvidos e em desenvolvimento

Em grande medida, a discussão sobre a transição epidemiológica, ou seja, o declínio das doenças infecto-contagiosas e emergência das doenças crônicas, baseia-se em um modelo idealizado, centrado nas características do fenômeno tal qual ele ocorreu nos países desenvolvidos. Dados da Organização Mundial de Saúde (2013) demonstram que o perfil epidemiológico, em países com baixo ou médio desenvolvimento econômico no ano de 2011, apresentava-se da seguinte forma: no caso de países com Produto Nacional Bruto de até US$ 1.026 per capita, as três principais causas de morte são infecções respiratórias do trato inferior, HIV/AIDS e infecções gastrointestinais (um quadro mais associado com o perfil pré-transição epidemiológica). Acidentes vasculares e doenças cardiovasculares isquêmicas aparecem no quarto e quinto lugar no quadro de maiores causas de morte, seguidos de doenças negligenciadas como tuberculose e malária, e problemas como mortalidade infantil e desnutrição.

Para os países com Produto Nacional Bruto de até US$ 4.036 per capita, o quadro de carga de doenças apresenta-se mais próximo do modelo tradicional de perfil epidemiológico pós-transição: nesses contextos, as três primeiras causas de morte são, respectivamente, as doenças cardiovasculares isquêmicas, acidentes vasculares e infecções respiratórias. Todavia, se o foco se voltar para as causas globais de mortalidade e em números absolutos, a ideia da transição

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É possível argumentar que atualmente, em muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento, essa transição se encontra entre duas novas fases: a primeira, da “instalação das doenças degenerativas” e a segunda da “multiplicação das doenças crônicas”. Para Poulain (2004: 128) o primeiro estágio seria caracterizado pelo desaparecimento (ou diminuição drástica) das doenças infecciosas; a segunda etapa seria marcada pelo gerenciamento das doenças crônicas, por meio de “processos de aprendizagem” para conviver com elas, tais como difusão de mensagens de prevenção e transformação nas práticas sociais cotidianas.

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epidemiológica se sustenta. Em 2011, as principais causas de morte no mundo foram as doenças cardiovasculares isquêmicas (aproximadamente 7 milhões de mortes ao ano), acidentes vasculares (6,2 milhões) e infecções respiratórias do trato inferior (3,2 milhões).

Dentre as principais mudanças no perfil epidemiológico, durante a primeira metade do século XX, encontra-se o aumento gradativo das doenças cardiovasculares. Se anteriormente essas enfermidades eram consideradas basicamente uma consequência do envelhecimento humano, as doenças cardiovasculares passaram a atingir um número cada vez maior de pessoas e, ao mesmo tempo, pessoas cada vez mais jovens. A mudança no perfil epidemiológico causava perdas em vidas humanas e recursos, demandando respostas políticas e técnicas. Em outras palavras, tornava-se um fato problemático. Essa perspectiva -- de uma realidade epidemiológica objetiva pressionando por respostas técnicas e sociais -- é frequentemente adotada nas narrativas históricas e médicas sobre o tema. Por exemplo, a abrangente narrativa sobre o estudo de Framingham, A Change of Heart (Levy e Brink, 2005) inicia-se com um capítulo sobre a gravidade da epidemia de doenças do coração que assolava os Estados Unidos na primeira metade do século:

A doença coronária era uma epidemia. Ela ceifava vidas com tal regularidade metodológica que a maioria dos americanos em 1948 considerava uma morte prematura por problemas no coração como um inevitável ato do destino. A epidemia não respeitava dinheiro ou poder. Uma vez que ela tivesse atingido, a medicina não podia oferecer tratamento ou esperança. Os médicos estavam tão desconcertados pelo sistema cardiovascular que frequentemente não sabiam o que estava matando seus pacientes (Levy e Brink, 2005: 4).

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Em particular, a incapacidade dos profissionais médicos e seus conhecimentos em salvar a vida do presidente Franklin D. Roosevelt50 é frequentemente apontada como um dos fatores que mobilizaram o poder público e a população norte-americanos em torno da questão das doenças do sistema circulatório e do coração. Apesar dos problemas de saúde de Roosevelt serem noticiados desde sua primeira eleição, pouco se sabia para ajudar o político. Em parte por ignorância em relação à doença, em parte pela necessidade de não demonstrar fraqueza em um período de guerra, a verdade sobre a péssima saúde de Roosevelt era ocultada do grande público, mas percebida e reconhecida pelas pessoas próximas do presidente ou envolvidas nos bastidores do poder.

Em 1944, sua pressão arterial era extremamente elevada e, apesar de eletrocardiogramas e exames de raio-X demonstrarem que ele tinha um coração anormalmente dilatado e um avançado estágio de aterosclerose, nenhuma medida de tratamento mais enfática foi tomada (Bruenn, 1970). Ao contrário, seu médico pessoal frequentemente insistia que a saúde e a pressão do presidente eram normais para um homem da sua idade (Bumgarner, 1994), apesar dos frequentes ataques de angina (alguns durante cerimônias públicas) que Roosevelt sofria. Para o médico pessoal de Winston Churchill, que havia observado Roosevelt durante a conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, o presidente pareceu extremamente doente, possivelmente a alguns poucos meses de sua morte (Goodwin, 1994). Roosevelt faleceu pouco tempo depois, em abril de 1945, em decorrência de um acidente vascular cerebral, causado por sua pressão extremamente alta. O caso chocou o povo norte-americano e, talvez pela primeira vez, tornou pública a discussão sobre a relação entre o estilo de vida (Roosevelt era fumante e consumidor de álcool contumaz) e as doenças vasculares e do coração. Contudo, as informações e conhecimento existentes sobre o tema eram

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Franklin Delano Roosevelt foi Presidente dos Estados Unidos por quatro mandatos (1933 – 1945).

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ainda esparsos e incompletos. O problema se apresentava à sociedade, mas a capacidade de enfrentar o problema era ainda baixa ou inexistente.51

Por isso, o National Heart Act de 1948, a criação do NHI e a elaboração do estudo de Framingham são exemplos de iniciativas para construir a compreensão do problema epidemiológico que se apresentava em um período histórico específico, e que demandava respostas técnicas, especializadas. De acordo com essa perspectiva, é possível afirmar que a realidade da nova dinâmica epidemiológica criou novos problemas técnicos e sociais que, por sua vez, impuseram soluções técnicas por parte das esferas socias e de atores normalmente associados com o fênomeno de saúde e doença -- cientistas e profissionais biomédicos, policy makers e instituições. Em resumo, as proporções epidêmicas do avanço das doenças do coração (e os casos mais notórios, como o de Franklin D. Roosevelt), a ausência de conhecimentos específicos e a incapacidade técnica de lidar com o problema seriam a origem da necessidade de produção de conhecimento sobre o tema. Trata-se, portanto, da premissa ou hipótese de que a realidade objetiva forçou a resposta técnica e social ao problema.

Em linhas gerais, nas sociedades ocidentais modernas, as mudanças no perfil epidemiológico são frequentemente acompanhadas por formulações técnicas e científicas sobre o fenômeno de saúde e doença. A percepção técnica, racional, é uma das principais formas de dar sentido para a emergência de novas doenças e de estabelecer a percepção e políticas públicas sobre elas. No entanto, vale lembrar que a percepção e as respostas sociais, políticas e técnicas a um novo perfil epidemiológico são resultado de um processo de definição mútua, entre ciência, sociedade e natureza (ou ainda, entre técnica e cultura). O levantamento de Jones et al (2012) sobre as mudanças temáticas e de doenças abordadas nos artigos do famoso New England Journal of Medicine nos últimos duzentos anos é, nesse aspecto, bastante esclarecedor. Para os autores,

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Ainda que as doenças cardiovasculares já afetassem uma grande parte da população estadunidense, foi preciso que um presidente morresse para que a opinião pública se dedicasse ao problema. Ironicamente, a frase atribuída a Stálin parece ser apropriada para o caso do presidente Roosevelt: "Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística."

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Novas causas (por exemplo, síndrome respiratória aguda, acidentes automobilísticos, envenenamento por radiação), novos comportamentos (tabagismo, uso de drogas intravenosas) e até mesmo consequências de novas terapias (transformações no curso e manifestações da diabetes causadas pela insulina) podem produzir novas doenças. Alterações nas condições ambientais e sociais podem aumentar a prevalência de males uma vez considerados obscuros (infarto do miocárdio, câncer de pulmão, kuru52 e doença da "vaca louca"). Novas tecnologias e capacidades terapêuticas podem revelar condições previamente desconhecidas. Novos critérios diagnósticos podem expandir as fronteiras de uma doença (hipercolesterolemia, depressão). Mudanças nos mores sociais podem redefinir o que é e o que não é uma doença (homossexualidade, alcoolismo, masturbação). Novas doenças podem emergir como o resultado da atuação consciente de partes interessadas (síndrome da fadiga crônica, plaque building syndrome). O HIV–AIDS, por si, só demonstra muitos desses modos de emergência. A emergência, reconhecimento e impacto das doenças nunca é apenas um processo biocientífico; o advento de novas doenças sempre envolvem processos sociais, econômicos e políticos que moldam sua epidemiologia e influenciam nosso entendimento e resposta (Jones et al, 2012: 2336).

Nesse sentido, não é possível afirmar que os conhecimentos sobre as doenças são determinados apenas pela realidade objetiva. Em primeiro lugar, muitas doenças são causadas pela própria dinâmica social. Práticas e costumes podem expor os indivíduos a agentes ou fatores causadores de doença, como no caso do consumo de derivados de tabaco e sua relação com diferentes tipos de câncer, ou a relação entre mudanças em padrões alimentares e as doenças "da civilização". Em segundo lugar, e assumindo uma perspectiva mais construtivista, os discursos tradicionais, políticos e técnicos produzem sentidos e significados sobre as doenças, suas causas e as formas apropriadas para prevenção e tratamento. Essa perspectiva abre margem para uma interpretação em que o perfil epidemiológico, em suas diversas facetas, é resultado de um processo de

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Kuru é um nome empregado pelos papua de Nova Guiné para descrever a doença de Creutzfeldt-Jakob. A doença atingiu proporções epidêmicas naquela região nos anos 1950 e 1960, por causa de rituais de antropofagia que disseminavam os príons causadores da doença.

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determinação mútua entre dois domínios: por um lado, as condições de distribuição das doenças observadas em determinado contexto sociohistórico, impõe condições reais (ou percebidas como tal) que demandam certas respostas culturais, políticas e, sobretudo, técnicas. Por outro, os discursos dão sentido a esses fenômenos, mas carregam em si concepções culturais que permitem diferentes interpretações sobre eles. Em suma, não é possível pensar apenas em termos de um quadro epidemiológico que tenha moldado o contexto social; ao contrário, é preciso pensar que as próprias escolhas técnicas, valores e interesses sociais são também implicados na construção dos discursos sobre a transição epidemiológica e, em particular, sobre as doenças cardiovasculares.

É verdade que essa postura pode abrir caminho para uma relativização do fenômeno como um todo, para argumentos sobre sua determinação social e até mesmo para o questionamento de seu realismo. Nesse aspecto, tanto os estudos construtivistas sobre saúde e doença, quanto os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, podem levar a discussões de cunho filosófico, mas possivelmente tautológico -- o que veio antes, a doença ou a percepção social e técnica sobre a doença? As doenças continuam fatos reais, se removidas de seu contexto social? Ainda que de um ponto de vista mais amplo essas sejam questões válidas e intelectualmente desafiadoras, nesse estágio da análise optamos por uma perspectiva mais pragmática: tendo em vista o surgimento histórico de mecanismos voltados para a interpretação, prevenção e tratamento das doenças crônicas, assume-se que a transição epidemiológica foi real, ou melhor, que ela possui consequências sociais percebidas como reais, e que as pessoas e instituições se mobilizaram de acordo com esse fato.53

Ao partirmos de um fato gerador (possivelmente arbitrário, como o National Heart Act) delimitamos a análise, focando no objeto em questão e suspendendo,

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Essa postura é diretamente influenciada pelo "Teorema de Thomas", elaborado pelo sociólogo norte-americano W. I. Thomas em 1928 -- "se as pessoas definem uma situação como sendo real, elas são reais em suas consequências". Em outras palavras, se queremos descobrir por quê as pessoas fazem o que fazem ou tomam certas decisões, precisamos compreender não apenas a "'realidade" do fenômeno em questão, mas principalmente o que as pessoas envolvidas pensam e

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temporariamente, as questões sobre o realismo ou o papel causal de um fator para um quadro social mais amplo. Se sabemos que National Heart Act iniciou a resposta institucional à emergência das doenças do coração, partimos desse fato social e analisamos seus desdobramentos. Assim, o foco é a transição epidemiológica e a emergência das doenças cardíacas como um fato social, com consequências percebidas como reais, entre elas a necessidade e efetiva construção de conhecimentos técnicos sobre o assunto. Em tese, sem a percepção (ainda que incompleta ou circunscrita às esferas técnicas e científicas) sobre o surgimento de novos fenômenos de doença, não haveriam os esforços que levaram ao surgimento do estudo de Framingham. O estudo é, dessa forma, diretamente relacionado à existência social do fenômeno da transição epidemiológica, por ser uma tentativa de entender o contexto social e epidemiológico da época, como ele era percebido pela atores sociais e pelas instituições. Havia a percepção de que as pessoas estavam morrendo de formas diferentes, desconhecidas, e isso gerou uma mobilização de diferentes atores sociais.

3.3 Instituições

O processsamento sociotécnico desse novo perfil epidemiológico deve ser também relacionado com um aparato institucional, característico das sociedades ocidentais e do contexto pós-Guerra, particularmente nos Estados Unidos. A existência e atuação de instituições, em um sentido amplo (o governo e a Nação estadunidense) e, mais especificamente, as instituições governamentais, órgãos públicos e de cunho profissional, como o National Institutes of Health, ou o National Heart Institute, representavam uma espécie de estrutura, tanto em termos de recursos, quanto em termos de regras e mecanismos de reprodução, que organizam várias dimensões da vida social. De forma resumida, o panorama institucional dos Estados Unidos da época representa o primeiro conjunto de

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elementos heterogêneos, ou de pré-condições cumulativas que permitem pensar na emergência do FHS. A história do estudo é, portanto, indissociável de certas instituições que o mantinham, apoiavam ou garantiam sua legitimidade. Nesse aspecto torna-se imperativo analisar o papel dessas instituições naquele contexto histórico.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o termo “instituição” tem diversas acepções possíveis: ele pode tratar tanto de organizações oficiais e entidades administrativas quanto de formas menos formalizadas de relações sociais como, por exemplo, “família” ou “linguagem”. Tipicamente, no âmbito das Ciências Sociais, o termo se refere a formas de organização complexas, que reproduzem a si mesmas e que influenciam as ações dos indvíduos. De acordo com Jonathan Turner, instituições são:

um complexo de posições, papéis, normas e valores abrigado em tipos de estruturas sociais particulares, e padrões organizacionais relativamente estáveis da atividade humana em relação aos problemas fundamentais de produção de recursos para a manutenção da vida, reprodução de indivíduos e manutenção de estruturas sociais viáveis, em um dado ambiente (Turner, 1997: 6). De forma semelhante, para Anthony Giddens, as “instituições são por definição as mais duráveis características da vida social” (Giddens, 1984: 24). Ou seja, compreendidas de forma ampla, instituições são estruturas que regulam algum aspecto da vida social, constrangendo, direcionando, estabelecendo regras e padrões comportamentais, mas também possibilitando a vida em sociedade. De forma mais específica, para os objetivos deste trabalho, podem ser compreendidas como organizações formais, voltadas para a realização coordenada de objetivos e finalidades de um ou mais grupos de indivíduos. Nesse aspecto, o termo pode se referir tanto aos elementos do sistema político e legal de uma sociedade (“democracia”, poder legislativo, etc), quanto a ordenações sociais menos abrangentes, voltadas para objetivos mais demarcados (hospitais, escolas, empresas, etc). Esses elementos estruturais proporcionariam, por meio de uma

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presença constante no tempo/espaço vivenciado pelos atores, a base para a constituição (por meio do estabelecimento de rotinas) da segurança ontológica necessária para a vida cotidiana (Giddens, idem).5455

Como ressalva, vale lembrar que ainda que as instituições proporcionem elementos estruturais para a ação coletiva, elas não determinam completamente a vida individual, por uma série de razões. As instituições -- ou, mais propriamente, suas regras e finalidades -- não contemplam todas as possibilidades da vida humana. Certos comportamentos, decisões ou padrões culturais podem escapar do alcance das instituições. Além disso, as regras e padrões institucionais requerem dos indivíduos interpretações contingenciais e reavaliações constantes de seu funcionamento. Nesse sentido, a análise institucional deve considerar também o componente reflexivo, característico da ação individual. Em muitos casos, situações inéditas e rearranjos sociais explicitam o poder refletivo dos indivíduos, por um lado, e o investimento de poder discricionário de certos indivíduos dentro das instituições, por outro. Em resumo, não é possível pensar nas estruturas e instituições apenas como elementos exteriores aos indivíduos, que determinam diretamente sua conduta. A tensão entre escolhas individuais e elementos estruturais/institucionais, portanto, encontra-se no cerne desse debate. Giddens aprofundou essa percepção (1976; 1984), tentando reconciliar, conceitualmente, a agência individual e a aparente necessidade das sociedades humanas por certas formas de estruturas institucionais, que transcendam a ação individual e que possibilitam a reprodução do próprio arranjo social. De acordo com o autor, as estruturas são simultaneamente constituídas pela agência humana e são o meio pelo qual as ações acontecem (Giddens, 1976). Isso significa que as estruturas se manifestam pela repetição, de forma coordenada,

54 “A vida cotidiana ordinária -- em maior ou menor grau, de acordo com o contexto e os caprichos da personalidade individual -- envolve uma segurança ontológica expressando autonomia do

controle corporal dentro de rotinas previsíveis. (...) A segurança ontológica é protegida por esses

mecanismos, mas mantida de uma forma mais fundamental pela própria previsibilidade da rotina, algo que é radicalmente interrompido em situações críticas" (Giddens, 1984: 50; grifo do autor). 55

Como mencionado anteriormente, para Mary Douglas e Aaron Wildavski (1982: 80), as instituições são como “dispositivos de simplificação de problemas,” que fornecem os meios para a decisão individual, por exemplo, diante de situações de risco.

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de certas ações por parte dos atores sociais. Em outras palavras, a “estrutura social” é compreendida como a soma das ações individuais, realizadas em um contexto de interdependência. É justamente nesse sentido que as estruturas podem limitar a agência individual. A influência da estrutura não se apresenta apenas por meio de coerções externas, mas pela constante coordenação de ações individuais dos atores. Essa linha de argumento permite compreender as mudanças dentro das próprias instituições e as variações históricas em suas