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Qual a importância do Framingham Heart Study?

LISTA DE GRÁFICOS

2.1 Qual a importância do Framingham Heart Study?

Antes do Framingham Heart Study (FHS) e iniciativas similares, surgidas mais ou menos no mesmo período histórico (como o famoso Seven Countries Study, iniciado em 1958, entre outros),28 o conhecimento sobre as doenças cardiovasculares, suas causas e formas de tratamento era significativamente distinto. No campo da medicina, predominavam hipóteses constitucionais para as doenças cardíacas, ou seja, explicações que relacionavam as causas das doenças do coração com traços individuais, inerentes às pessoas acometidas por elas. Era comum que condições como a angina pectoris -- uma dor no peito, ocasionada pela isquemia do músculo do coração e relacionada com a

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As décadas de 1940 e 1950 foram o cenário para diversos estudos epidemiológicos similares ao estudo de Framingham, principalmente nos Estados Unidos. Dentre eles, é possível destacar:

Minnesota Business and Professional Men Study (liderado por Ancel Keys e iniciado em 1947), Los Angeles Civil Servants Study (iniciado em 1949), Albany Civil Servants Study (1953), Dupont Company Study (1956), Chicago Western Electric Study (1957) e o Chicago People's Gas Study

(1958). O Framingham Heart Study, porém, é um dos mais famosos estudos sobre as doenças do coração, especialmente por sua amostra populacional, tempo de seguimento e pelos resultados obtidos. Em particular, se destaca dos outros estudos por ser o único organizado e financiado com recursos públicos (Giroux, 2013).

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aterosclerose -- fossem raramente diagnosticadas ou relacionadas diretamente com problemas do coração, sendo frequentemente vinculadas à personalidade e estado emocional daqueles que apresentavam esse sintoma (Aronowitz, 1998; Rosenberg, 1997). Registros históricos mais antigos demonstram uma separação ainda maior das doenças cardiovasculares, como experienciadas em outros tempos, dos conceitos contemporâneos, técnicos e científicos: por exemplo, no ideário da Inglaterra vitoriana, representado por uma série de poesias coletadas por Blair (2003), o coração era visto como um órgão perigosamente dotado de personalidade e consciência, como um agente ativo na proliferação de doenças no corpo e na mente. As doenças do coração eram, sobretudo, atribuídas a poetas, políticos e pessoas envolvidas com atividades intelectuais e “cerebrais”, sendo que as paixões extremas e desilusões de tais pessoas influenciavam o coração, levando-o a se comportar com pesar, desolação ou excitação e, com isso, causando desarranjos na circulação sanguínea. Mesmo com o surgimento de conhecimentos médico-científicos sobre o tema, até pouco tempo ainda eram abundantes concepções diferentes daquelas que temos hoje em dia; durante a primeira metade do século XX, as doenças cardíacas, em geral, eram consideradas um reflexo do envelhecimento da população e, portanto, como um fenômeno natural, inerente ao curso da vida humana (Dawber e Kannel, 1966). Em resumo, os problemas do coração eram experienciados de formas distintas e por meio de hipóteses causais qualitativamente diversas, que de acordo com os padrões atuais, seriam incompletas ou incorretas.

O avanço dos conhecimentos científicos sobre o tema e o surgimento dos estudos epidemiológicos, de caráter populacional, são parte das mudanças relativamente recentes a respeito da percepção sobre as doenças cardiovasculares. Parte importante dessa nova percepção, o estudo de Framingham possui um histórico significativo de mais de seis décadas de investigação sobre as doenças do coração e sua distribuição em uma população "típica", bem como de busca pela identificação da causalidade ou fatores de risco para o adoecimento. Se pensarmos em uma trajetória de crescente cientificação dos discursos sobre saúde e doença (e, de forma relacionada sobre a

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alimentação), e de uma gradativa medicalização de vários aspectos da vida cotidiana relacionada com esses temas, perceberemos que os estudos epidemiológicos como o FHS estão diretamente relacionados com a decadência de concepções tradicionais e, portanto, com a emergência de novas formas de descrever, experienciar e intervir nos processos de adoecimento.

De forma mais específica, é possível argumentar que o legado e importância do FHS pode ser analisado por meio de quatro dimensões diferentes, porém relacionadas. Em primeiro lugar, destaca-se seu ineditismo temático. Até o início do FHS, em 1947, estudos conduzidos por epidemiologistas eram majoritariamente voltados para a compreensão das doenças infecto-contagiosas, sua distribuição e formas de contágio. Nessa época, o fenômeno da transição epidemiológica já se conformava nas sociedades ocidentais, mas a resposta institucional era ainda incipiente ou inexistente29 -- o financiamento público para pesquisas sobre as doenças crônicas não-transmissíveis entrou na agenda do governo estadunidense principalmente após o fim da Segunda Guerra e, portanto, o esforço de pesquisa médica sobre as doenças crônicas se consolidou apenas a partir desse período (Evans, 2010). Nesse aspecto, o estudo de Framingham representa uma das primeiras iniciativas organizadas para a compreensão das doenças crônicas.

Em segundo lugar, e de forma relacionada com a ênfase temática em relação às doenças crônicas, é possível ressaltar o papel do FHS e outros estudos de "primeira geração" para uma mudança do ponto de vista conceitual: com a mudança no perfil epidemiológico, se estabeleceu a necessidade de conceitualização sobre as doenças crônicas, suas causas e distribuição. Em outras palavras, saíam de cena ideias como as das doenças cardiovasculares como resultado dos processos de envelhecimento e hipóteses constitucionais, e se impunham noções (ainda em construção) de causalidade múltipla, de efeitos ambientais e comportamentais e do potencial emprego de biomarcadores

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A criação do CDC norte-americano é, talvez, um exemplo significativo da latência na resposta institucional: criado em 1946 com o nome de Comunicable Disease Center, adotou um foco temático e uma denominação mais ampla -- Center for Disease Control -- apenas nos anos 1970 (Mullan, 1989).

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específicos (como os níveis de colesterol no sangue). Tratava-se, afinal, da investigação cientificamente orientada para os múltiplos fatores que poderiam levar ao surgimento das doenças cardiovasculares e, consequentemente, da operacionalização de conceitos adequados para a compreensão desse fenômeno. Pesquisas como o FHS adotavam hipóteses geradas por outros campos do conhecimento médico e científico, testando-as de forma inédita por meio do acompanhamento de uma grande amostra populacional e, com isso, participando da construção dessa nova percepção: as doenças como resultado de vários fatores biomédicos, ambientais e comportamentais, em oposição ao paradigma anterior, onde a doença era normalmente vinculada a um agente causador único (como um vírus ou bactéria). Portanto, nesses dois aspectos, a contribuição do FHS se insere em um movimento mais amplo, relacionado com as respostas técnicas e institucionais para fenômenos sociais e epidemiológicos específicos, com as condições que ocasionaram essas mudanças e, em última instância, com as medidas de intervenção adotadas posteriormente.

Epidemiologia e os tipos de estudo epidemiológico

Em linhas gerais a epidemiologia pode ser definida como uma disciplina científica que tem como objeto "a distribuição e os determinantes dos processos de saúde e doença em populações humanas” (Czeresnia, 2008: 1113), e que emprega, na maior parte das vezes, modelos estatísticos e matemáticos para dimensionamento, controle e previsão de processos coletivos de adoecimento e mortalidade. Os indicadores e modelos epidemiológicos são constituídos e empregados com dois objetivos principais: por um lado, buscam descrever situações (passadas ou atuais) de ocorrência de doenças em dada população, principalmente através de estudos descritivos (muitas vezes baseados na sistematização de dados rotineiramente coletados por órgãos governamentais), buscando prover informações gerais sobre padrões de distribuição de doenças em populações, de acordo com características como idade, gênero, raça, classe

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social, ocupação, localização geográfica etc. (Kelsey et al, 1986; Rothman, 2002). Por outro lado, alguns estudos epidemiológicos visam testar relações causais entre o ambiente, hábitos comportamentais e as doenças, e construir prognósticos em relação à sua distribuição e prevenção. Tratam-se de estudos analíticos, que envolvem, especialmente, o desenvolvimento de experimentos científicos, que empregam técnicas estatísticas de amostragem, seleção de casos-controle e mesmo o acompanhamento de diversos indivíduos, doentes ou não, no decorrer de determinado período de tempo.

Os estudos epidemiológicos são divididos em diversos tipos, de acordo com seus objetivos e métodos empregados. Dentre as variedades de estudos analíticos, é possível destacar:

1) estudo de caso-controle: tratam-se de estudos onde dois grupos semelhantes