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LISTA DE GRÁFICOS

3) ensaio clínico: é o desenho de estudo voltado para o teste de intervenções terapêuticas e preventivas, que serão testadas em ao menos dois grupos

3.4 Ciência e tecnologia

3.4.2 A doença em números

Apesar de amplamente disseminada e aparentemente auto-evidente, a abordagem de risco é um fenômeno recente na longa trajetória dos conceitos de doença e saúde das sociedades ocidentais: sua emergência remonta aos anos 1950 e 1960, coincidindo com os primeiros anos do Framingham Heart Study. De fato, é possível argumentar que uma das maiores inovações produzidas pelo estudo de Framingham foi exatamente sua contribuição para a criação da apreensão estatística e probabilística dos fatores de risco, ajudando a moldar, dessa forma, o caráter contemporâneo da disciplina epidemiológica. Ainda que o foco da epidemiologia tenha sido coletivo, desde seu início, foi nesse período que conhecimentos estatísticos e de probabilidades foram incorporados ao raciocínio epidemiológico de forma original, em busca de um modelo de análise que considerasse múltiplos fatores de causalidade e que tivesse poder preditivo.

Essa era uma perspectiva inédita. Como relembra William Kannel, a respeito dos métodos desenvolvidos em Framingham e com a ajuda dos computadores e técnicos do NIH:

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Para Latour (2000: 14), "a expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que dela entra e o que dela sai."

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Nosso problema gerou uma metodologia estatística necessária para o tipo de análise que todos fazem hoje em dia. Essa foi um aspecto muito importante da evolução da investigação epidemiológica, olhar para os efeitos em rede, conjuntos, de diferentes fatores de predisposição para doença (Kanel, 2007: s/p).

Em particular, as inovações metodológicas e conceituais visavam identificar os indivíduos inclinados às doenças cardiovasculares, “muitos anos antes da ocorrência de qualquer doença clinicamente identificável” (Dawber et al, 1961). Se em trabalhos pioneiros como o de John Snow,70 o objetivo da nascente disciplina da epidemiologia era identificar a causalidade ou origem das doenças, nos dias de hoje, ela trata sobretudo de um exercício de previsão, identificando os indivíduos em risco antes mesmo da doença efetivamente se manifestar. Essa perspectiva, até então inédita, só foi possível pela correlação estabelecida no cotidiano do FHS entre os conhecimentos e hipóteses médicas, por um lado, e técnicas e premissas estatísticas e probabilísticas, de outro.

Para compreender as origens dessas inovações e o salto qualitativo que elas representaram, é preciso retomar brevemente alguns aspectos da disciplina epidemiológica. A origem da Epidemiologia clássica ocorre, de fato, entre os séculos XVIII e XIX, tendo como pano de fundo a industrialização, o surgimento de grandes centros urbanos (como Londres, Paris ou Berlim) e a emergência de condições de doenças coletivas, muitas vezes relacionadas com as péssimas condições sanitárias que abatiam os moradores destas cidades. Adicionalmente, neste período consolidou-se a noção de Estado Moderno, que encontra na Estatística as bases para a “aritmética política”, ou seja, para a quantificação de sua população, riquezas e elementos produtivos. Esta perspectiva estatística foi central para a consolidação da intervenção estatal sobre a questão da saúde das

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Em meados da década de 1850, uma epidemia de cólera atingiu a cidade de Londres, vitimando milhares de pessoas e, curiosamente, contribuindo para o estabelecimento da disciplina epidemiológica. Foi essa epidemia que possibilitou a realização dos trabalhos de John Snow (1813-1858), considerado como um dos pais da Epidemiologia. Snow realizou um intenso trabalho epidemiológico, identificando o papel da água poluída na transmissão da doença em diversos bairros da cidade, e colocando à prova uma teoria sobre a etiologia das doenças contagiosas elaborada pelo próprio autor em 1853.

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populações. Almeida Filho (1986: 304) descreve alguns dos acontecimentos históricos que configuraram o contexto social e técnico que possibilitou o surgimento da Epidemiologia Clássica. Lentamente, foi sendo constituído um olhar diferenciado sobre as doenças: ao invés da análise de casos individuais, emerge lentamente a noção das enfermidades em um contexto coletivo, mensurável e passível de intervenção estatal.

Na Inglaterra, o “movimento hospitalista” e o assistencialismo antecedem uma medicina da força de trabalho já parcialmente sustentada pelo Estado em áreas urbanas. Na França, com a Revolução de 1789, implanta-se uma “medicina urbana” a fim de sanear os espaços das cidades, disciplinando a localização de cemitérios e hospitais, arejando as ruas e construções públicas e isolando áreas “miasmáticas”. Na Alemanha, Johann Peter Frank (1745- 1821) sistematiza as propostas de uma “Política Médica”, baseada na compulsoriedade de medidas de controle e vigilância de doenças, sob a responsabilidade do Estado, junto com a imposição de regras de higiene individual para o povo (Almeida Filho, 1986: 305).

Todavia, foi apenas a partir do começo do século XX que a disciplina começou a construir sua identidade atual, com métodos de investigação cada vez mais específicos, a utilização de técnicas estatísticas voltadas para o estudo de variações na incidência e prevalência de doenças a partir de seus determinantes físicos e sociais, e por meio da expansão do alcance da disciplina para outros tipos de enfermidades e agravos de saúde, notadamente as doenças crônico- degenerativas, o câncer, as doenças cardiovasculares e até mesmo doenças mentais. De forma complementar a esses refinamentos conceituais, também se estabelecia a institucionalização da disciplina e suas especificidades em relação a outras áreas da ciência, sendo que a consolidação desses movimentos da expansão temática e metodológica, e de profissionalização da disciplina ocorreu de forma mais clara apenas após a Segunda Guerra Mundial (Susser, 1985; Amsterdamska, 2005).

Como parte da construção da identidade da disciplina, apresentou-se a necessidade de um método experimental que caracterizasse suas especificidades

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e a equiparasse, em termos de “cientificidade” em relação às demais disciplinas biomédicas, que normalmente apoiam-se em estudos laboratoriais. Em Epidemiologia, a noção de experimento (ou investigação) estabeleceu-se então em relação direta com a inferência estatística, ou seja, a investigação está diretamente subordinada ao estudo de populações humanas, consolidando-se em torno de estudos populacionais, de caráter observacional. De fato, a adoção de um repertório metodológico e conceitual de cunho estatístico foi influenciada pelo crescente investimento governamental em ensino, pesquisa e políticas públicas para redução dos impactos das doenças degenerativas:

as mudanças de políticas e o crescente papel do estado nos cuidados de saúde [health care], bem como na pesquisa médica, aumentaram a necessidade de informações estatísticas, monitoramento cada vez mais estrito de morbidade e mortalidade, e análise de dados de saúde populacional, fortalecendo a associação dos epidemiologistas com os métodos estatísticos e com a análise de estatísticas médicas. Em um sentido, a ideia de que a Epidemiologia estuda os aspectos coletivos da doença foi agora equiparada com a noção de que a Epidemiologia baseia-se em métodos estatísticos (Amsterdamska, 2005: 42).

Constituiu-se, assim, um traço distintivo importante da disciplina epidemiológica atual, os estudos populacionais. Tais estudos baseiam-se em uma série de postulados, resumidos por Barata (1997) da seguinte forma:

significância estatística, isto é, a eliminação do acaso; força dessa associação medida através do risco relativo, risco atribuível ou medida equivalente; seqüência temporal, determinada pelo desenho da investigação, na qual a causa deve obrigatoriamente preceder os efeitos; relação de dose- efeito, ou seja, função matemática que demonstra maior freqüência e intensidade dos efeitos associada à maior freqüência e intensidade de exposição; coerência ou plausibilidade biológica baseada no conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos através dos quais a exposição pode desencadear a doença; consistência dos resultados quando comparados aos obtidos em investigações semelhantes; especificidade do nexo causal, isto é, para

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cada causa um único efeito, e para cada efeito, uma única causa (Barata, 1997: 40)

Em outras palavras, trata-se de um modo de interpretação dos fenômenos que afasta e desacredita outras formas de explicação e relações causais que não estejam subordinados aos mesmos princípios conceituais e metodológicos, demarcando a especificidade da disciplina, ao mesmo tempo em que busca ampliar seu caráter científico e “demarcar” suas especificidades). O estabelecimento dessas “diretrizes” e pressupostos torna-se uma parte importante para a institucionalização da disciplina. Sobretudo, esse movimento de especialização é praticamente indissociável daquilo que Steven Shapin (1996: 13) chamou de “mecanização da produção de conhecimento”, isto é, o emprego de regras explicitamente formuladas para disciplinar a produção científica e, sobretudo, para reforçar a tendência da Ciência em colocar-se como uma atividade desinteressada, desvinculada dos interesses e paixões de seus praticantes. A construção da cientificidade da Epidemiologia por meio da adesão ao discurso estatístico é, portanto, uma maneira de explicar como se constitui a confiança em seus “sistemas abstratos”, técnicos e científicos (Giddens, 2002), e a centralidade dos estudos populacionais na determinação da experiência ocidental contemporânea sobre os processos de doença e saúde71.

Relembrando: o sucesso do Framingham Heart Study (e outros subsequentes estudos similares) foi importante para a consolidação dos estudos populacionais como a principal fonte de dados para o estudo epidemiológico e para a disseminação e ampla aplicação de conceitos epidemiológicos como os fatores de risco. De fato, para além de fornecer elementos para desvendar a causalidade das doenças estudadas, os estudos epidemiológicos passaram a ser gradativamente adotados, por especialistas e leigos, como a base para generalizações indutivas sobre os efeitos da exposição aos fatores de risco nas populações humanas (Moreira e Palladino, 2011). Portanto, em oposição à

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Segundo Amsterdamska (2005), esse processo de especialização é importante para compreender o estabelecimento das fronteiras ("boundary work") entre a Epidemiologia e as demais disciplinas biomédicas.

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abordagem clínica, a Epidemiologia recente consolidou-se em torno do estudo de relações de causalidade eminentemente probabilísticas – isto é, através do estabelecimento de relações entre fatores causadores e as chances de adoecimento. Assim, de forma sintética, é possível afirmar que a adoção do conhecimento probabilístico pela Epidemiologia representa uma ruptura em relação aos seus estágios anteriores, marcados por métodos de investigação pouco sistematizados, ainda subordinados a outras áreas do conhecimento (por exemplo, biologia ou bacteriologia).

Mesmo a partir de uma revisão histórica simplificada, é possível perceber que a trajetória recente da Epidemiologia é resultante da interrelação de diversos elementos sociais e técnicos bastante variados. Como apresentado acima, o estilo de pensamento da Epidemiologia pode ser diretamente relacionado com a Estatística e essa, por sua vez, com o fenômeno duplo do amadurecimento das técnicas de coleta de dados numéricos e a operacionalização deles por meio de uma racionalidade probabilística, em um processo que Ian Hacking (1990) chamou de “domesticação do acaso”. Esse processo iniciou-se nos séculos XVIII e XIX, quando a sociedade ocidental foi “compulsivamente” produzindo dados estatísticos sobre os mais diversos fenômenos naturais e sociais, quantificando-os e mensurando-os como nunca antes na História.

Essa “compulsão” foi um fenômeno inicialmente incentivado pelos governos de jovens Estados-nação como Alemanha, Inglaterra e França, que enxergavam as “estatísticas administrativas” como uma medição e avaliação (ou uma “aritmética política”) de suas riquezas e recursos. Em pouco tempo, as práticas de coleta sistematizadas de dados expandiram-se para outras áreas, tais como os processos coletivos de saúde e adoecimento. Por exemplo, na Inglaterra, desde o início do século XVII, eram mantidos registros relativamente apurados sobre os batizados e enterros ocorridos em Londres, cuja análise permitiu que pensadores como John Graunt traçassem conclusões sobre as dimensões de epidemias ou a expectativa de vida da população (Hacking, 1975; Almeida Filho, 1986; Desrosières, 1998; Olsen et al, 2001).

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O acúmulo de contagens, quantificações, medições e classificações possibilitou o surgimento e o aprimoramento gradativo de uma “gramática” ou “vocabulário” específico para dar sentido aos dados acumulados (Espeland e Stevens, 2009: 404). Como indica Hacking (1995: 5), “nós treinamos as pessoas para usar numerais” e para manipular as categorias surgidas dessa nova forma de conhecimento. Para Alain Desrosières (1998), as ferramentas técnicas criadas para manipular os cada vez mais presentes números e métricas possibilitaram, em última instância, a relação entre a Ciência e a ação política, atuando como “um espaço de conexão” entre linguagens técnicas e sua aplicação em debates sociais. Conceitos como, por exemplo, média tornavam-se intrinsecamente acoplados aos dados estatísticos, representando simultaneamente uma padronização na apresentação dos dados e formas de intersubjetividade ou “fórmulas de concordância” para sua interpretação (Desrosières, 1998: 65).

No entanto, o estabelecimento e legitimidade dessas ferramentas não ocorreu automaticamente, e sua natureza e realismo são resultado de uma série de negociações sociotécnicas e de novas bases filosóficas que as acompanharam:

A História dessas técnicas é composta por uma longa série de destilações intelectuais, purificações que buscam produzir ferramentas-chave, livres das várias contingências que governavam seu nascimento. Os animados debates que ocorreram no século XIX acerca da ideia de média, seu status e interpretação, são instrutivos sob esse ponto de vista. Além da aparentemente trivialidade do modo de calcular essa ferramenta estatística, muito mais estava em jogo: esses debates diziam respeito ao novo objeto resultante desse tipo de cálculo, e também a possibilidade de atribuir a este objeto uma existência autônoma em relação aos elementos individuais (Desrosières, 1998: 67, grifo nosso)

Essa lógica se reforçou e se expandiu para outros campos como, por exemplo, a nascente Epidemiologia do século XIX, onde a noção de desvio da média era a base para o estudo e intervenção no caso das antigas epidemias: