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O dever de cuidado como modelo de gestão do risco

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Academic year: 2021

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O DEVER DE CUIDADO

COMO MODELO DE GESTÃO DO RISCO

CARLOTA PIZARRO DE ALMEIDA

TESE ORIENTADA POR:

PROFESSORA DOUTORA MARIA FERNANDA PALMA

DOUTORAMENTO EM DIREITO

RAMO: CIÊNCIAS JURÍDICAS

ESPECIALIDADE: DIREITO PENAL

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO……….5

1. O PROBLEMA E O SEU CONTEXTO………....13

1.1 Objectivismo, subjectivismo e a tentação omissiva……….14

1.2 A falácia objectivista e a falácia subjectivista………...29

2. O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO……….45

2.1 Perigo, risco, incerteza………45

2.2 Sociedade de risco: uma nova realidade?...50

2.3 Distribuição de vantagens e de custos – quem suporta os riscos?...55

2.4 Princípio da precaução………...57

2.5 O papel central da negligência………...63

3. ANÁLISE ECONÓMICA DO DIREITO...68

3.1 Nota prévia………...68

3.2 Arqueologia de Posner………..…….69

3.2.1 A fórmula de Learned Hand………..72

3.2.2 Henry Terry: “a negligência é uma conduta”……….75

3.2.3 Do homem médio ao homem razoável………...79

3.2.4 J. Bentham e o(s) utilitarismo(s)………..85

3.3 Para além de Posner………94

3.4 Críticas e contra-críticas………...102

3.5 A culpa e a justiça……….111

4. O SUJEITO COMO OPERADOR RACIONAL………...118

4.1 Homem real e homo economicus………...…….118

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4.3 Desvios e limites………...126

4.4 Compreender para influenciar………..…….134

4.5 Enviesamentos e desenviesamentos………..136

5. UTILIDADE (SUBJECTIVA) ESPERADA……….……...140

5.1 Em busca de um código comum. Como quantificar?...140

5.2 Valor subjectivo e escalas de utilidade……….149

5.3 Negligência, dever de cuidado e lotarias………..155

6. A ACÇÃO ENQUANTO ESCOLHA………....162

(O mito da negligência consciente) 6.1 A acção como opção………..162

6.2 A questão da culpa………..…..171

6.3 A ficção da negligência consciente………180

6.4 O processo intuitivo……….184

6.5 Automatismos e vontade……….186

7. PROBABILIDADES………...……….……….192

7.1 De Parménides a Pascal………...192

7.2 O mundo visto através da incerteza………..197

7.3 Decisão em contexto de incerteza………..199

7.4 De que falamos quando falamos de probabilidade?...202

7.5 O dever de cuidado num universo bayesiano………...207

7.6 Desvios no cálculo das probabilidades………....211

7.7 De como se formam as convicções………...214

8. O ALGORITMO DO CUIDADO……….………….218

8.1 Um modelo de gestão do risco………....218

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8.3 Construção de uma matriz. O algoritmo do cuidado……….229

8.4 Os custos e os benefícios, mais uma vez………..235

9. PARÂMETRO OBJECTIVO DE CUIDADO………..……….246

9.1 Tipo negligente: tipo aberto?...246

9.2 O elemento subjectivo. Capacidades e conhecimentos individuais………...260

9.3 O cuidado “a que está obrigado e de que é capaz”……….268

10. DESVALOR DA ACÇÃO NA NEGLIGÊNCIA………...………276

10.1 Relevância da acção final………...276

10.2 O que torna uma acção desvaliosa?...286

10.3 Tipo subjectivo: elementos psicológicos (internos) na negligência ………...291

10.4 Papel do resultado na negligência………...297

CONCLUSÕES………..309

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INTRODUÇÃO

A denominada sociedade de risco desencadeou profundas alterações no tratamento da negligência. Surgiu a necessidade de criar novas incriminações em áreas onde os erros e/ou os descuidos podem levar a consequências dramáticas pela sua dimensão – quer na gravidade dos danos produzidos quer no elevado número de pessoas atingidas. O aumento e diversificação exponenciais da criminalidade negligente evidenciaram que a dogmática da negligência, construída e adaptada a partir das categorias do dolo, não dava resposta adequada à maioria das questões emergentes e requeria uma profunda reconstrução.

Com efeito, ainda que a negligência compartilhe muito da estrutura do dolo, há elementos específicos que terão de ser considerados.

Muito esquematicamente, podemos descrever do seguinte modo as respectivas estruturas:

- Estrutura do crime doloso:

1. decisão de produzir um resultado proibido; 2. acção;

3. produção do resultado. - Estrutura do crime negligente:

1. decisão de agir (criando um risco acima do risco tolerado);

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6 2. acção;

3. produção do resultado.

Entende-se geralmente que, no dolo, a decisão de agir (a acção) é proibida porque visa um objectivo proibido. Na negligência, a decisão de agir (a acção) é proibida porque cria um (grau de) risco proibido.

Como veremos, tanto no dolo como na negligência, o agente cria (e intencionalmente) uma síndroma de risco; mas enquanto no dolo este é instrumental face ao objectivo (o resultado proibido), na negligência é uma “peça autónoma” cuja construção não pode ser desprezada.

Impõe-se, ASSIM, determinar o objecto da acção negligente - aquela entidade que se situa logicamente entre o agente e o resultado, sobre a qual incide a decisão e que condiciona o desencadear dos eventos negativamente valorados.

A construção de um algoritmo do cuidado, que englobe e relacione todos os factores relevantes, não só diminuirá o empirismo e aleatoriedade que têm marcado o tratamento da negligência, como permitirá clarificar muitos dos problemas recorrentes na dogmática do crime negligente.

Se é ainda o crime doloso que ocupa preferencialmente as preocupações e temores do cidadão comum, tal só se deve a um efeito de persistência das impressões. Uma observação atenta levará à constatação de que constatação de que, na sociedade actual, devemos temer principalmente a imprudência – seja relativa a produtos comercializados para consumo, a danos ambientais que se reflectem na saúde humana e comprometem a estabilidade do clima, a actos médicos, a acidentes (desde os grandes acidentes industriais aos quotidianos acidentes de viação), etc.

Há, por esta via, uma larga área de criminalidade em que as categorias tradicionais assumem novos contornos, quer no plano das vítimas, quer no dos agentes, quer na abordagem das relações de causalidade.

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7 O facto de toda esta problemática se ter desenvolvido principalmente no âmbito de situações que implicam pessoas colectivas tem contribuído para a análise dos problemas a uma luz nova, libertando-os do subjectivismo exacerbado que adulterava os conceitos e contribuía para a infiltração na tipicidade negligente de elementos que apenas têm lugar a nível da culpa.

Por outro lado, a constatação de que os riscos são omnipresentes nas relações sociais, e bem assim no plano intersubjectivo, lançou nova luz sobre o verdadeiro conteúdo do cuidado devido. Só porque essa omnipresença nem sempre se apresenta claramente à consciência se compreende que ainda hoje, em quadros teóricos que contrariam em absoluto tal perspectiva, seja recorrente afirmar que o sujeito é negligente quando “não teve o cuidado necessário para evitar o resultado”. É uma ironia que a negligência, que tem constituído um dos mais difíceis puzzles a resolver pelo finalismo, se revele, afinal, aquela área onde o conceito de desvalor da acção tem mais rendimento.

Sabemos hoje que o risco-zero não existe, o que desde logo afasta qualquer tentação de adoptar um conceito causalista de acção. E afasta também a identificação do comportamento negligente como um comportamento omissivo: não se trata, em primeira linha, de evitar um resultado, mas de criar riscos para além do permitido. Igualmente, o que está em causa não é a omissão de acções tendentes a diminuir riscos inerentes à interacção em sociedade – ou seja, de um dever de acção. O que importa é que o indivíduo aja mantendo os riscos criados dentro da fronteira do permitido – claramente, de um dever de omissão.

O máximo a que podemos aspirar é a um safe enough, que deverá ser normativamente delimitado. A negligência aparece assim como uma gestão deficiente do risco inerente a qualquer actividade, uma errada ponderação

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8 dos factores em jogo – errada porque desconforme com o padrão imposto pelo direito.

A gestão eficiente será então aquela que não ultrapassa uma probabilidade de lesão ainda socialmente suportável, pelo que se requer a construção de uma matriz de decisão que sirva de referente. Esta matriz põe termo ao critério do “homem médio” e não recorre sequer à figura do homem “fiel ao direito”, pois o que se pretende é um padrão funcionalmente adaptado às necessidades da sociedade actual, e este resultará de valorações e ponderações dos factores em jogo, as quais terão de corresponder a opções normativas e traduzir comandos claros. Não basta um vago dever de “agir com cuidado”.

A imposição de um modelo objectivo de cuidado, construído nestes termos, pressupõe – para ser legítima, por um lado, e eficaz, pelo outro – que as decisões dos agentes são determinadas racionalmente, isto é, correspondem a opções. De outro modo, não haveria um código comum que permitisse estabelecer regras gerais quantitativamente expressas, restando apenas uma avaliação casuística e baseada em critérios próximos dos da culpa.

Esta racionalidade parece inquestionável no que toca às pessoas colectivas, que sempre tomarão as suas decisões (nomeadamente em relação às precauções a ter no desenvolvimento da actividade a que se dediquem, que é o que nos importa em sede de negligência) de acordo com raciocínios de custo-benefício, como é próprio do seu modus operandi e faz parte da sua natureza. Mas o mesmo processo não é evidente relativamente às pessoas singulares, em especial no âmbito da divisão entre negligência consciente e inconsciente, em que esta última não depende, na perspectiva tradicional, de decisões racionalmente determinadas.

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9 Uma primeira tarefa se impõe, portanto: demonstrar que as opções de qualquer indivíduo são sempre determinadas por critérios de racionalidade, ao resultarem da ponderação de custos para alcançar objectivos (esta questão será abordada nos capítulos 3 e 5). O que varia (dificultando a compreensão deste processo) é a importância atribuída pelos indivíduos a cada factor em jogo. As variações podem, aliás, levar à total falta de elasticidade do leque de soluções admitido pelo indivíduo – situação em que já estaremos na fronteira da inimputabilidade.

Este processo decisório verifica-se relativamente a qualquer acção humana e, por isso, a acção corresponde sempre a uma opção livre e é punível enquanto tal. Como veremos, as operações mentais envolvidas são mais complexas do que se supunha há algumas décadas. O conhecimento actual neste domínio, ainda que muito incompleto, permite já determinar mecanismos de controlo antigamente insuspeitados e que demonstram que a negligência inconsciente não passa de uma ficção – aliás sem qualquer vantagem prática.

Na construção do tipo negligente, a dicotomia entre cuidado a que

está obrigado e de que é capaz orienta-nos, pelo menos aparentemente, para

uma objectivação do primeiro elemento (a que está obrigado), restando para o segundo todo e qualquer factor subjectivo que possa vir a ser considerado e que, em rigor, deve inserir-se no juízo de culpa.

Não é de estranhar que se encontre esta construção híbrida no artigo 15.º do Código Penal, se nos lembrarmos de que a disposição legal em causa resulta da redacção de Eduardo Correia, para quem a negligência era uma forma de culpa e não elemento da tipicidade, como hoje é considerada pela maioria dos autores. Encontrar o sentido útil do preceito (no segmento em que se refere ao “cuidado de que é capaz”) dentro do quadro dogmático actual é um dos desafios que se colocam e ao qual, como veremos, um

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10 modelo objectivo de cuidado permite dar resposta, do mesmo passo que clarifica o conteúdo da tipicidade subjectiva e do desvalor da acção.

O enquadramento da negligência como modelo de gestão do risco - fruto de uma opção racional do sujeito e, enquanto modelo proibido, em confronto com o modelo adoptado pelo direito - será o primeiro patamar que se pretende alcançar com o presente trabalho.

No plano prático, tenho em vista a elaboração de uma proposta de

algoritmo que se constitua como referente e, simultaneamente, seja dotado de

operacionalidade.

Não aspiro, no entanto, a ser exaustiva neste domínio, nem sequer atingir mais do que o apuramento técnico estritamente necessário para demonstrar que o projecto é viável. Sempre fui a favor de uma colaboração interdisciplinar que evite o confinamento – necessariamente empobrecedor - de cada profissão aos seus saberes específicos. Limitar-me-ei, portanto, a explanar o meu ponto de partida e a descrever, de forma breve, os instrumentos conceptuais utilizados para a construção do modelo proposto. Nas disciplinas convocadas – v.g. a teoria da decisão e o cálculo de utilidades, bem como as indispensáveis ferramentas actuariais e informáticas – haverá profissionais especializados que poderão contribuir com eficiência para a construção de um modelo sofisticado.

Recorri a conceitos e métodos da análise económica do direito por serem os que melhor se coadunam com a visão do indivíduo que entendo relevante para o direito penal: o homo economicus, dotado de racionalidade e decidindo de acordo com a melhor vantagem que pode obter em cada conjuntura. Este não é, no entanto, um trabalho centrado na abordagem que a análise económica do direito faz do direito penal. A utilização de métodos e saberes da análise económica do direito cingiu-se à medida em que estes poderiam ser úteis (e por vezes foram mesmo indispensáveis) para a

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11 construção do modelo que se tinha em vista, ou seja, foi puramente instrumental.

A ligação entre a economia e o direito, tendo já um longo percurso feito, abrange vastas áreas que não revestiam interesse directo para o objectivo do presente trabalho e foram, portanto, deixadas à margem. Cite-se, a título de exemplo, o contributo dado pela análise económica do direito na área da política criminal e que não foi aqui sequer abordado por se situar num plano completamente diverso daquele onde se situa a problemática do dever de cuidado enquanto categoria dogmática. Aquilo que me interessou foi um certo conceito de sujeito (o homo economicus) e uma perspectiva de análise centrada na contabilização de custos e benefícios. Qualquer destes pontos é fundante da análise económica do direito e tem-se mantido constante desde os primórdios da mesma. O conceito de homo economicus clarifica uma perspectiva do sujeito, destinatário do direito penal, como responsável pelos seus actos e permeável a estímulos de punição e reforço – na linha do pensamento que também a psicologia tem vindo a desenvolver Veja-se a colaboração estreita que encontramos entre economistas e psicólogos, expressa em trabalhos conjuntos de autores oriundos de ambas as áreas (os trabalhos de Kahneman e Tversky, distinguidos com o prémio Nobel em 2002, são um dos muitos exemplos dessa colaboração).

No que toca às concepções da acção como opção baseada numa análise de custo-benefício, pode-se encontrar ligações teóricas evidentes entre a abordagem da análise económica e a psicologia, bem assim como com a filosofia por intermédio do utilitarismo. Nenhuma ciência humana pode alicerçar-se numa perspectiva que não considere o indivíduo como um decisor movido pela satisfação dos seus interesses – sejam eles egoístas ou altruístas, mas constituindo sempre o alvo que define a direcção das acções.

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12 A análise económica do direito impôs-se então como uma ferramenta adequada – não como análise especificamente orientada para o fenómeno jurídico mas como súmula dos pressupostos de determinadas correntes da filosofia, da psicologia, da teoria da decisão e da análise actuarial do risco. Teve um [insubstituível] valor funcional enquanto método de análise das realidades em causa.

A construção de uma matriz como a que proponho permitirá apurar o cuidado devido em cada situação da vida e estabelecer directrizes para a decisão correcta perante o complexo de risco inerente a qualquer acção.

Objectivar a medida do cuidado, além de contribuir para minorar a incerteza jurídica numa área onde esta tem ocupado um lugar excessivamente amplo, poderá fornecer valiosas indicações a nível de política criminal.

Se transportarmos para o direito os ensinamentos da teoria dos jogos, podemos equacionar as relações dos indivíduos entre si e com a sociedade como jogos de estratégia. Na medida em que o payoff de cada jogada depende do comportamento dos outros participantes, a descodificação dos critérios de decisão é de importância crucial. Se o direito penal constitui, do ponto de vista do criminoso, um jogo de soma zero, é como tal que deve ser assumido e jogado pelo legislador, que actua como representante dos interesses colectivos.

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O PROBLEMA E O SEU CONTEXTO

Gössel: Saber em que consiste um crime negligente, quais os seus elementos constitutivos e como se encontra construído, são coisas acerca

das quais se verifica uma total falta de consenso e de clareza.

Este capítulo destina-se a explicitar de forma sucinta os pressupostos dogmáticos em que assenta a presente dissertação. Persegue simultaneamente três objectivos. Por um lado, situa o tema do dever de cuidado no contexto mais geral das múltiplas discussões que, no direito penal contemporâneo, têm por objecto a estrutura das infracções negligentes. Por outro lado, indica as posições que neste trabalho se adoptam como ponto de partida, e as razões que justificam esse posicionamento teórico. Em terceiro lugar, e consequentemente, contribui para uma delimitação do escopo exacto da dissertação.

Abordarei, em particular, as seguintes questões: a relação entre os crimes negligentes e os crimes omissivos; a distinção, fundamental, entre perigo e risco; o problema do conteúdo do juízo de tipicidade subjectiva na negligência; as dificuldades teóricas suscitadas pela figura da negligência

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14 inconsciente, especialmente no plano do juízo de culpa. A exposição integra, a cada passo, a discussão crítica de posições e argumentos, representativos quer das orientações de que discordo, quer das que entendo serem de acompanhar.

1.1 Objectivismo, subjectivismo e a tentação omissiva

Para uma adequada compreensão da dogmática da negligência, duas questões têm de ser clarificadas.

A primeira prende-se com a recorrente imprecisão que leva a tratar o ilícito negligente como se estivéssemos perante um crime por omissão. Uma observação minimamente atenta, no entanto, revela que o dever de cuidado não é o dever de evitar o resultado. O ilícito negligente não se concretiza porque o agente não agiu de forma a evitá-lo, mas porque o agente agiu criando um risco proibido que se materializou no resultado.

A segunda questão – a qual, embora aparentemente de pormenor, acaba por se revelar seminal de vários problemas – consiste em estabelecer uma clara definição dos conceitos de perigo e risco, frequentemente confundidos e impropriamente utilizados.

Como teremos oportunidade de constatar, a divisão entre posições objectivistas e subjectivistas coincide com a posição tomada sobre cada uma destas duas questões: da parte dos subjectivistas há uma tentação (quase diríamos irresistível) para identificar a negligência com um dever de agir que não foi cumprido e, simultaneamente, uma tendência para não prestar grande atenção à precisão terminológica, na medida em que a separação dos conceitos de perigo e de risco se revela pouco relevante nesta linha de pensamento. Inversamente, os autores que se inscrevem na posição

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15 objectivista, vêem a negligência como uma violação de um dever de omitir e consideram de suma importância a distinção entre perigo (noção que não está mais ligada à negligência como conceito do que estará ao dolo) e risco, consistindo este no complexo jogo implicado nas decisões em situação de incerteza (que estão na origem dos comportamentos negligentes). A linha de divisão (a vexata quaestio) que separa estas duas correntes prende-se com o lugar a atribuir a uma incontornável realidade: as capacidades individuais são infinitamente variáveis (desde o conhecimento à habilidade). Como conciliar esta variedade com a fixidez do bem jurídico protegido? Pode o cuidado exigido ter sempre o mesmo nível (desrespeitando as variações individuais e, por esta via, o princípio da igualdade)? Ou deve adaptar-se a cada agente (desprotegendo ocasionalmente o bem jurídico em questão)?

Na construção que proponho, os elementos subjectivos são atendidos na medida em que interferem com a probabilidade de se verificar o resultado lesivo caso o agente actue. Se forem de molde a diminuir a probabilidade, permitirão acções que não seriam permitidas a agentes menos capazes – mas então terão de ser utilizadas essas capacidades especiais, sob pena de se falsear os valores da matriz.

Para Paula Ribeiro Faria, o determinante, neste cálculo, será a probabilidade do resultado e a gravidade deste. Admite, no entanto – apoiando aqui Prittwitz - que “por vezes” releve igualmente a “utilidade social” do risco1. Mas Paula Ribeiro Faria tende a preferir a esta lógica que apelida de “matemática” um juízo de “irrelevância social da conduta naquelas circunstâncias concretas”2. Ora este juízo carece de determinação suficiente para poder servir de critério decisivo da aplicabilidade da norma penal. Por esta via, facilmente cairíamos no problema das normas penais

1 FARIA (2005) p. 978. 2 Ibidem p. 981.

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abertas que tem atormentado a dogmática da negligência e que é vital

ultrapassar. Não é de estranhar, assim, que Paula Ribeiro Faria acabe, neste contexto, por ter de regressar ao homem médio (uma versão normativa de homem médio, ligada ao conceito de adequação social).

A lógica “matemática” que propugno, alicerçada em princípios e teorias já sobejamente testados, permite encontrar uma esfera de risco de contornos bem definidos, perceptível a todos, desde o destinatário da norma ao julgador.

Quanto ao conteúdo do dever de cuidado

No que concerne ao dever de cuidado e à sua posição no crime negligente, várias posições são possíveis e têm sido subscritas - desde a que prescinde de tal elemento, por encarar o crime negligente de uma perspectiva puramente causalista (esta, pode-se dizer, hoje ultrapassada) – até à posição de autores que vêem a negligência apenas como infracção de um dever [de cuidado] prescindindo do próprio resultado como componente do ilícito. Pelo meio fica a maior parte da doutrina actual, que tenta estabelecer critérios para a delimitação do conteúdo de um cuidado mais ou menos interligado com as características individuais do agente.

No âmbito de uma concepção puramente causalista e que situe a violação do dever de cuidado ao nível da culpa, não se colocam especiais dificuldades na definição daquele. Ao recusar um modelo em que à acção bastava ser causal (e voluntária) para poder integrar a tipicidade e a ilicitude – só depois se avaliando se haveria dolo, negligência ou nem tanto – o finalismo vem alterar as respostas aos problemas tradicionais e criar novos problemas.

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17 Partindo do princípio de que ao direito penal só interessam – só podem interessar, melhor dizendo – as acções finais, uma vez que só estas podem ser alvo da sua função dissuasora, o finalismo propõe que o dolo e a negligência, enquanto consubstanciando finalidades desaprovadas, sejam avaliados logo no tipo de ilícito. A delimitação do cuidado devido, enquanto objecto da acção negligente, passa assim a constituir um problema logo no momento inicial da análise do crime; e é possível, não obstante as suas múltiplas divergências, agrupar os autores em duas grandes correntes (a objectivista e a subjectivista) consoante a ênfase que atribuem aos factores individuais.

O padrão objectivista, com raízes já no pensamento de Engisch, é continuado e desenvolvido por Welzel, que, para além do recurso ao cuidado que empregaria um homem prudente, com os conhecimentos do autor, introduz a ideia de adequação social e de risco permitido (caso em que não haverá violação de dever de cuidado), incorrendo assim no que considero uma dupla tautologia. Por um lado, se se trata de um homem prudente – se essa é a referência padrão – o critério não poderá contrariar a adequação social (que já está contemplada no “prudente” enquanto juízo valorativo); por outro lado, se a fronteira entre risco permitido e proibido só existir normativamente (i.e. se não se lhe atribuir qualquer conteúdo decorrente de um ponto de partida exterior e independente destas categorias), não se compreende o que possa acrescentar ou aclarar como critério delimitador.

O recurso à figura do homem médio, como referência objectiva, tem sido uma tentação sempre presente para os objectivistas, por permitir um padrão de comportamento passível de ser imposto a todos e a todos acessível. Mas, como veremos, esta construção encerra um vício inultrapassável por incluir – em maior ou menor grau – o que se pretende evitar naquilo que se propõe em substituição: os elementos subjectivos

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18 (contidos no factor “com os conhecimentos do autor”) interpenetram o padrão [que se pretende] objectivo. Esta miscigenação leva a que o cuidado (a medida do cuidado) que constitui o objecto da acção proibida seja condicionado pelas características inerentes ao autor, a quem devia ser oponível. Falha-se assim o propósito de definir o alvo proibido da acção nos crimes negligentes3.

Não obstante este erro lógico e a decorrente dificuldade em enquadrar a negligência dentro da teoria finalista, muitos são os autores que defendem a necessidade de não abstrair dos factores individuais na delimitação do cuidado exigido (apesar de não rejeitarem a localização dogmática da negligência ao nível da tipicidade).

Roxin aborda o problema a partir de um ângulo diferente, retomando o tema do risco proibido e construindo a partir daí a sua concepção do conteúdo do cuidado. Este é um passo importante na objectivação do cuidado devido, mas falta definir como se traça a fronteira entre risco permitido e risco proibido. As normas técnicas – a que Roxin dá especial relevo – ajudam nesta tarefa, mas não são suficientes: a) porque não abrangem todas as actividades e b) porque, mesmo quando uma dada actividade é contemplada, as normas técnicas não esgotam a definição do cuidado devido (pode haver negligência mesmo sem desrespeito das normas técnicas aplicáveis).

Ao centrar-se na criação de um risco proibido, Roxin afasta-se da consideração das capacidades individuais – pelo menos a nível do tipo de ilícito. E fá-lo coerentemente, pois a medida do risco proibido há-de ser algo

3 Também no sentido de que a inclusão de elementos subjectivos no “cuidado devido” contraria a função do tipo como norma de determinação, permitindo a arbitrariedade e abuso do poder estatal, v. MURILLO (1991) p. 176. Este autor considera mesmo que essa indeterminação prejudica a função de prevenção geral do direito penal e a própria interiorização dos modos de conduta esperados, ao não fornecer um padrão de referência suficientemente preciso.

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19 a fixar objectivamente, não podendo depender das capacidades de cada indivíduo, antes se prendendo com a intolerabilidade do risco criado, consoante o bem jurídico em causa e o valor social da actividade.

Numa posição muito diversa, Jakobs é um firme defensor da consideração das capacidades individuais na delimitação do dever de cuidado4, a partir da consideração de que o direito penal não apoia a expectativa de que todos os indivíduos sejam igualmente capazes, apenas espera de todos uma igual motivação fiel ao direito. Naturalmente, vê-se assim confrontado com inúmeras situações da vida em que o agente não está à altura das dificuldades que se lhe deparam e que teria de ultrapassar para evitar o resultado danoso – casos que são resolvidos pela maioria dos autores através do recurso à culpa na assunção da tarefa. Mas, para Jakobs, a negligência na assunção da tarefa só pode afirmar-se quando haja uma posição de garante, estabelecendo um paralelo entre este aspecto da negligência e os crimes de comissão por omissão – “quando o agente está obrigado a evitar as consequências”5. Mais uma vez se reafirma que o paralelo é incorrecto6. Veja-se o exemplo dado por Jakobs de um indivíduo que empreende uma viagem de automóvel quando está manifestamente muito cansado. Na condução automóvel, não é correcto afirmar que o indivíduo está, à partida, obrigado a evitar quaisquer possíveis consequências negativas. Dado que a condução envolve riscos que são social e juridicamente aceites, o agente não estará obrigado a evitar as consequências (que são a concretização desse risco) mas tão só a evitar exceder o grau de risco permitido.

4 JAKOBS (1991) p. 385 ss.9; JAKOBS (1972) p. 67 ss. 5 JAKOBS (1991) p. 389.

6 Referindo-se a esta posição de Jakobs, Schmidhäuser contrapõe a perspectiva de que o agente fez algo que não devia ter feito à perspectiva de que o agente não respeitou o cuidado devido, referindo a afirmação (quanto a mim correctíssima) de Nowakowski segundo a qual “a negligência não reside na omissão do cuidado, mas na criação do risco proibido” - cf. SCHMIDHÄUSER (1975) p. 149 ss.

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20 E não se pretenda que a questão se resolve num momento posterior, a nível da imputação objectiva. Há que evitar a confusão entre o risco permitido e o cuidado objectivo, pois nem os conceitos se sobrepõem nem a respectiva medida coincide. O que basta para se verificar a imputação objectiva pode não ser suficiente para afirmar a negligência. Considere-se o seguinte exemplo: uma mãe que muda a fralda ao seu bebé, com dois meses de idade, apercebe-se, já depois de ter retirado a fralda suja, de que se esqueceu dos toalhetes de limpeza. Deixando o bebé em cima da cama, desloca-se rapidamente até à prateleira onde os toalhetes se encontram, na mesma divisão da casa; nestes breves segundos, com um movimento brusco das pernas, a criança cai ao chão, fazendo um grave hematoma. É sabido que mesmo crianças muito pequenas, ainda desprovidas de locomoção, não devem ser deixadas em lugares de onde podem cair, pois acontece deslocarem-se, em consequência de movimentos repentinos, o suficiente para haver graves acidentes. A mãe estava em posição de garante; podia e devia ter evitado o resultado, que, embora improvável, era previsível, inscrevendo-se num quadro de normalidade (qualquer manual de puericultura recomenda que as crianças, mesmo de tenra idade, não sejam deixadas sem vigilância em lugares de onde possam cair). Segundo critérios de adequação, podemos concluir que há imputação objectiva da lesão ao comportamento da mãe. O risco criado pelo comportamento da mãe é um risco proibido, tendo-se concretizado no resultado dentro da esfera de protecção da norma. Mas poderá formar-se um juízo de negligência? Se considerarmos o incómodo de transportar o bebé consigo enquanto vai buscar os toalhetes, a rapidez com que a mãe se deslocou até à prateleira, a escassa probabilidade de, por uma

vez em que o deixe em cima da cama, o bebé cair, devemos concluir que não

foram atingidos os parâmetros que fundamentariam a negligência: o risco corrido não terá sido irrazoável.

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21 Abordando a questão por outro prisma, pode-se afirmar, aliás, que se considerarmos a negligência como uma ultrapassagem do risco ponderado de acordo com determinadas variáveis7 (segundo a matriz de cuidado de que falaremos adiante e que constitui o cerne deste trabalho) um juízo positivo de negligência só é possível quando haja uma dada probabilidade (e previsibilidade) de o resultado se verificar; se o valor da probabilidade for igual a zero, não há lugar à ponderação imposta pela matriz.

Stratenwerth situa-se também entre os autores que defendem uma penetração dos factores subjectivos no conceito de cuidado, o qual não poderá abstrair das diferenças entre capacidades individuais presentes em cada agente e cada caso.

Para este autor, o ponto de referência do cuidado devido é estabelecido com carácter geral, na medida em que se fixa os limites do risco permitido e do risco proibido; mas a questão da “conduta que se exige para excluir o risco proibido depende das capacidades individuais”8. No entanto, o facto de todos os exemplos dados por Stratenwerth para ilustrar a medida do exigível estarem relacionados com comportamentos omissivos em que há posição de garante (nadador-salvador, cirurgião, etc.)9, não contribui para aclarar qual o método a ser utilizado para fixar o alcance do cuidado devido10. Pois, como é evidente, tratando-se de sujeitos que estão obrigados a fazer tudo o que esteja ao seu alcance para evitar o resultado, o limite desse dever coincide com as capacidades individuais; como Stratenwerth afirma,

7 Basicamente: o desvalor do resultado lesivo, a probabilidade de este se verificar e o custo inerente à acção apta a evitá-lo.

8 STRATENWERTH (2000) p. 421. E, no mesmo sentido STRATENWERTH (1985) p. 285 ss. . 9 Esta aproximação entre negligência e crime omissivo é, aliás, por diversas vezes, assumida expressamente – v. STRATENWERTH (2000) p. 421, 422 e passim.

10 Schmidhäuser comenta, criticamente, a ligação feita por Stratenwerth entre negligência e omissão, contestando alguns dos exemplos referidos por este autor. Para Schmidhäuser, o delito negligente em nada se distingue, estruturalmente, do delito doloso, não comportando, como alguns autores pretendem, necessariamente um momento omissivo.– SCHMIDHÄUSER (1975) p. 154 ss.

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22 “o direito só pode exigir o que é possível”11, asserção que ninguém contestará. Mas daqui nada pode retirar-se quanto à medida do perigo que é permitido criar num mundo onde, crescentemente, o quotidiano se inscreve num quadro de incertezas e ponderação de riscos.

A tentação de ver a negligência como um fenómeno omissivo é recorrente e compreende-se porquê: em todos os factos negligentes se poderá afirmar que “se o agente tivesse tido o cuidado a que estava obrigado” o resultado não se teria verificado – ou seja, pode-se tentar uma abordagem centrada na omissão do cuidado devido. Mas esta é uma perspectiva errada que alimenta muitas das confusões e dificuldades da dogmática da negligência. O direito não impõe à generalidade das pessoas um dever genérico de agir de determinado modo; à semelhança do dolo, na negligência o que se proíbe é a criação de um risco irrazoável; trata-se de um comando de

non facere. O problema do cuidado devido não se coloca no plano da omissão,

mas no da acção criadora ou potenciadora de riscos.

Esta perspectiva é potenciadora de uma concepção objectivista, segundo a qual o dever de cuidado tem parâmetros que podem (e devem) ser fixados sem recurso às características especiais de cada agente. Não se pretende com isto negar que cada sujeito tem capacidades próprias, que podem exceder ou ficar aquém da média, e que tal facto tem de relevar, de algum modo, para o direito penal. Trata-se, antes, de situar dogmaticamente cada um dos elementos do comportamento negligente.

Para Jescheck, o cuidado objectivo é avaliado na ilicitude e as capacidades individuais são consideradas posteriormente, ao nível da culpa. Jescheck perfilha, portanto, a teoria do duplo escalão, à semelhança de muitos autores que assim tentam conciliar a concepção objectivista com a evidência inegável das variações de capacidade individuais. Entre nós,

(23)

23 Figueiredo Dias tem vindo a defender esta posição, subscrevendo, aliás, muitos dos pressupostos de que parte Jescheck12. E também Taipa de Carvalho se pronuncia no mesmo sentido13.

Paula Ribeiro Faria, na medida em que centra a definição do cuidado num juízo “acerca da adequação social ou inadequação social da acção”14, aproxima-se da posição objectivista; os poderes do agente só têm relevância enquanto permitam uma leitura do poder médio ou da exigibilidade social. Não obstante, a autora acaba por concordar com Stratenwerth e Jakobs quando estes afirmam que a determinação do que é uma violação do dever de cuidado terá de tomar em conta as circunstâncias do caso concreto15. A fim de conseguir esta conciliação de opostos, Paula Ribeiro Faria não consegue evitar o recurso à equiparação com situações de omissão e posição de garante (o médico com especiais conhecimentos, por exemplo), por um lado, e por outro à figura do recorrente homem médio com as adaptações necessárias para preencher o espaço entre a regra abstracta (que responde à aspiração objectivista) e a situação concreta (que é a medida da cedência ao subjectivismo).

Sobre esta questão, na doutrina portuguesa, Faria Costa tem uma posição algo diferente, na medida em que enfatiza a importância de uma definição rigorosa do cuidado enquanto “manifestação do princípio da segurança” exigida, desde logo, pelo princípio da tipicidade16. Faria Costa chama a atenção para a importância crescente da negligência nas sociedades actuais, considerando indispensável a identificação de um critério material

12 DIAS (2007) p. 865 ss. E já também em DIAS (2001) p. 355. No entanto, Figueiredo Dias considera que, ao contrário do que sucede com as capacidades inferiores à média – que apenas relevarão a nível da culpa – as capacidades superiores, onde existam, devem ser tidas em conta no sentido de “poderem fundar o tipo de ilícito na negligência” – DIAS (2007) p. 873.

13 CARVALHO (2008) p. 527 ss. 14 FARIA (2005) p. 926.

15 Ibidem p. 933.

(24)

24 que permita definir o cuidado objectivo, sem o qual não se poderá proceder legitimamente ao controlo jurídico-penal das “consequências atinentes às condutas negligentes”17. A “actualização” do problema a que procede leva Faria Costa a proceder a uma – sempre necessária, mas esquecida por muitos autores – distinção entre perigo e risco e a salientar a importância do conceito de risco para a compreensão da negligência numa sociedade em que, mais do que nunca, se torna inevitável a aceitação de que as condutas implicam riscos e que muitos desses riscos são indispensáveis ao correcto funcionamento de actividades socialmente úteis. Embora apoiando a tese do duplo escalão, Faria Costa expressa uma inusual preocupação com a definição do segmento objectivo que pertence ao ilícito-típico. Vai mesmo ao ponto de o questionar aí onde existem regras profissionais que regulam a actividade em causa, consciente de que estas não esgotam o problema – logo, a solução terá de ser encontrada num outro ponto, que constitui o verdadeiro cerne da questão. Para tal, interroga-se sobre o alcance da expressão “segundo as circunstâncias” que lemos no artigo 13.º do Código Penal, entendendo que esta se reporta não apenas à dimensão subjectiva do dever de cuidado mas também na própria “dimensão objectiva implícita no ilícito típico”18, e concluindo que as circunstâncias são indispensáveis como contextualização que permite alcançar o sentido normativo (“o ilícito inerente à regra de cuidado”) face ao caso concreto19.

Esta é a perspectiva que considero correcta, e que neste trabalho se toma como ponto de partida para uma clara apreensão da estrutura do ilícito negligente e do conteúdo do dever de cuidado. Falta, contudo, identificar as coordenadas que permitirão integrar as circunstâncias concretas no comando

17Ibidem p. 486. 18Ibidem p. 519.

19 (…) “é a concreta determinação dos parâmetros em que a situação em apreço se solidifica que permite uma clara apreciação sobre o ilícito negligente”- p. 521.

(25)

25 abstracto sem prejuízo da segurança jurídica. Ou seja, falta uma matriz que seja operatória e inclua nas varáveis a considerar aquelas capacidades individuais relevantes para o universo contextualizante. Falta, afinal, um modelo cibernético como o que proponho, um algoritmo que permita processar os dados de forma objectiva e controlável.

No caso do controlador aéreo que Faria Costa utiliza como leading

case para a sua argumentação20 podemos concluir que o juízo sobre a actuação do controlador depende (mais uma vez) da ponderação do risco. Esta ponderação deverá ter em conta a probabilidade de tal acidente se verificar, os custos do acidente (no caso, centenas de vidas humanas) e o custo alternativo de seguir escrupulosamente as regras profissionais (as quais teriam evitado a verificação do acidente). Em termos que veremos adiante, é deste jogo de factores que depende o juízo sobre a negligência21.

Os benefícios obtidos através de uma construção rigorosa do cuidado objectivo são inúmeros e de vária ordem e têm sido destacados por autores que não enfatizam por igual os diversos aspectos nem concordam sobre a

20 Trata-se de uma hipótese construída na qual (resumidamente) um controlador aéreo leva a cabo uma rotina de tratamento de dados muito mais rápida do que aquela que resultaria do cumprimento minucioso das regras vigentes, rotina essa que é, aliás, praticada por todo o serviço, que a considera indispensável para não provocar o bloqueamento do tráfego aéreo; um dia, verifica-se um choque entre aviões, do qual resultam centenas de mortes, vindo a provar-se que o acidente teria sido evitado se as regras de cuidado normativamente previstas tivessem sido respeitadas – mais pormenorizadamente, COSTA (1992 ) p. 484 ss. 21 Uma observação adicional: parece-me evidente que as regras técnicas devem ser adequadas ao correcto funcionamento da actividade que pretendem disciplinar. O que significa não deverem exceder aquele grau de exigência que é ainda compatível com o bom senso e a experiência (dito de outro modo, da racionalidade em sentido próprio). Isto sob pena de se tornarem prejudiciais e, assim, desencadearem um fenómeno de “convite à desobediência” – com o duplo efeito negativo de a) descredibilizar o direito, que as produziu e/ou manteve em vigor quando já desactualizadas face à evolução tecnológica, comprometendo a eficácia preventiva do mesmo; e b) deixarem materialmente sem qualquer regra uma actividade que se pretendia regular. Não significa isto que uma norma técnica, só por si, sirva em qualquer caso para traçar a fronteira entre o comportamento diligente (quando cumprida) e o comportamento descuidado (quando desprezada). O seu valor formal é, para esse efeito, meramente indiciário. Em última análise, valerá sempre a a avaliação do cuidado exigido pela situação concreta. Sobre esta última questão, v. CORCOY BIDASOLO (1989) p. 101 ss.

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26 abrangência dos factores a englobar mas partilham o reconhecimento da necessidade de um núcleo que sirva de referente claro a todos os destinatários da norma.

Jescheck defende as vantagens de uma concepção objectivista com os seguintes argumentos: a) a valoração autónoma da acção negligente a nível de ilicitude contribui para afastar o perigo de uma responsabilidade pelo resultado; b) permite a aplicação de medidas de segurança, nos casos em que o autor seja declarado inimputável; c) fortalece a função de garantia da lei penal; d) implica o reconhecimento de um limite máximo de exigência, o que preserva o princípio da igualdade22. Mesmo que não se concorde com todas estas vantagens (os defensores do subjectivismo facilmente dirão que, precisamente, um dos efeitos perversos do objectivismo é não exigir mais de quem mais pode), penso que a certeza jurídica é inequivocamente reforçada havendo um referente objectivo23 e que, no outro lado da relação, a potencial vítima é mais eficazmente protegida.

Também Schünemann chama a atenção para a necessidade de estabelecer um parâmetro objectivo na negligência, sob pena de se perder o efeito preventivo da norma. E destaca que o efeito preventivo tem de se basear numa perspectiva ex ante, discordando das posições subjectivistas que, ao requererem a avaliação da situação concreta, remetem inevitavelmente para um juízo ex post24.

Mais recentemente Duttge veio introduzir uma perspectiva que podemos considerar híbrida, embora de pendor subjectivista. Este autor

22 JESCHECK (1988 [1993]) p. 513.

23 Muito crítico acerca da imprecisão dos comandos a que conduz o critério subjectivista, Schünemann manifesta a sua profunda discordância com a indiferenciação entre culpa e ilicitude - SCHÜNEMANN (1975) p. 160. Também Hirsch, partidário da concepção objectivista, destaca a necessidade de manter a separação entre culpa e ilicitude, de modo a diferenciar claramente o dever e o poder individual (“Sollen und individuellem Können”) – HIRSCH (1982) p. 267.

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27 recusa um conceito-padrão de cuidado, uma vez que no direito penal os conceitos e respectivos conteúdos devem ser sempre o mais concretos possível. Deste modo, também o recurso à figura do homem médio é de rejeitar, pois será sempre necessária uma verificação autónoma do risco criado25. Mesmo as normas técnicas corresponderão apenas a uma avaliação provisória, tendo apenas um valor indiciário.

Embora sublinhe que a violação do dever de cuidado não pode ser, no direito penal, puramente objectiva, Duttge reconhece que há necessidade de encontrar referências para fixar uma medida que não seja puramente casuística. E considera que, para responder a questões da vida real, se terá de partir exactamente daí, nomeadamente através da análise de numerosos casos de jurisprudência, tentando encontrar, na respectiva ratio decidendi , o conceito de negligência. Antecipando a crítica que este método (indutivo) inevitavelmente suscitará, Duttge argumenta que mesmo a dedução mais não alcança do que uma verdade relativa, sempre dependente das premissas de que parte o raciocínio, e, assim sendo, o método que defende não trará particulares problemas de incerteza e insegurança jurídica.

Na mesma linha de pensamento, o autor tenta estabelecer uma ponte entre o ser e o dever ser, ou seja, entre as circunstâncias da vida e condicionalismos inerentes à realidade do indivíduo, por um lado, e os preceitos do direito, pelo outro. Tendo em vista este objectivo, pretende, com recurso a outras ciências (v.g. a psicologia cognitiva) compreender o processo humano de conhecimento e decisão e até que ponto os indivíduos são capazes de se aperceber dos perigos inerentes às usas acções. Para concluir que há oito categorias de sinais de perigo relacionados com a previsibilidade [do resultado danoso] e o momento em que o perigo se torna perceptível26. A

25 DUTTGE (2001) p. 491. 26 DUTTGE (2001) p. 494 ss.

(28)

28 possibilidade de percepção, a probabilidade do dano e o tempo de reacção disponível são elementos indispensáveis, sendo que é irrenunciável a verificação de pelo menos o tempo necessário para uma reacção rápida. O juízo de negligência dependerá do grau desses sinais no caso sub judice, sendo que, por exemplo, quanto mais directa for a perceptibilidade do perigo tanto maior será o juízo de negligência a não ser que a probabilidade seja muito diminuta. Deverá também atender-se à gravidade do dano previsto, à necessidade de o indivíduo recorrer à sua memória pessoal, aos seus conhecimentos específicos27, etc.

A grande vantagem da construção de Duttge é o reconhecimento de que é necessário recorrer a uma multiplicidade de factores que devem ser balanceados entre si para se chegar a uma conclusão sobre a verificação da negligência, de tal modo que uns podem compensar outros e, assim, o juízo final não se situa num ponto imóvel, antes resultando da conjugação dinâmica de todos os factores28.

Mas a dificuldade encontrada em manter o equilíbrio entre elementos subjectivos e objectivos dentro de um conceito complexo de negligência condu-lo, a final, para a conclusão de que num direito que se pretende justo e respeitador do princípio da culpa, ninguém “pode ser obrigado àquilo de que não é capaz”, pelo que o juízo de negligência dependerá sempre das capacidades individuais29.

Não obstante, Duttge tenta encontrar referências objectivas (inclusive partindo do particular para o geral) que permitam minorar a insegurança jurídica. Neste esforço, como vimos, identifica alguns dos aspectos cruciais para a construção de um modelo objectivo do dever de cuidado. Contudo, o

27 Sobre a questão dos conhecimentos específicos, v. ibidem p. 434. Para uma análise detalhada de sinais de perigo a ter em conta, cf. p. 411 ss.

28 Duttge defende que, excepto o tempo de reacção, todos os indicadores se compensam mutuamente – v. Ibidem p. 437.

(29)

29 que poderia ser o ponto de partida para a construção de um parâmetro objectivo, acaba por se deter perante a dificuldade em fixar limites quantitativos mínimos, bem como em identificar um elenco fechado de elementos relevantes. Duttge acaba assim por concluir que não se pode encerrar esta construção numa fórmula final, e fica refém desta insuficiência que não lhe permite progredir para um modelo oponível a toda e qualquer situação e indivíduo.

A dificuldade em determinar os contornos do cuidado objectivo exigido, especialmente se se quiser evitar o recurso à figura do homem médio (com todas as dificuldades e insuficiências que essa figura apresenta e que serão alvo de análise detalhada mais adiante neste trabalho) tem estado na origem de muitas das cedências feitas ao modelo subjectivista. De certo modo, pode afirmar-se que os autores se sentem divididos entre a vontade de instituir um parâmetro objectivo e a incapacidade de identificar o critério que permita manter esse parâmetro mesmo quando são evidentes as variações individuais.

As vantagens da concepção objectivista - das quais se destacam a garantia da generalidade do comando, a clareza e segurança e a maior protecção do bem jurídico – são, no entanto, de molde a justificar um esforço no sentido de encontrar solução adequada para o problema.

1.2 A falácia objectivista e a falácia subjectivista

Nos crimes dolosos, tanto o tipo objectivo como o tipo subjectivo têm um objecto claramente identificável, pois a “passagem ao acto” do agente é orientada para o mesmo resultado que será alvo da imputação objectiva.

(30)

30 Não assim na negligência. Coloca-se então a questão: qual o objecto [do desvalor] da acção na negligência? Como determinar o tipo subjectivo?

Para muitos autores, não haverá, simplesmente, lugar para um tipo subjectivo, na negligência30. A maior parte das críticas formuladas por esta corrente são bem fundadas, mas tal não significa que o ilícito negligente se reduza a uma dimensão puramente objectiva – transformando-se, a nível do ilícito, numa responsabilidade pelo azar, que só poderia ser excluída em momento posterior, mediante a avaliação da culpa. O que se passa é que o tipo subjectivo do ilícito negligente não compreende, à partida, características ou elementos psicológicos específicos do agente, nos termos verificados no dolo, mas apenas a direcção da vontade orientada para um objecto proibido pelo direito – a saber, a síndrome de risco que, potencialmente, desencadeará o resultado lesivo. É por esta via que o ilícito negligente suporta um elemento volitivo desaprovado, o qual, à semelhança do que sucede nos tipos dolosos, não se confunde com a culpa.

Na negligência, o tipo subjectivo basta-se com a previsibilidade, por parte do agente, das consequências potenciadas pela sua acção31. Mas como determinar essa previsibilidade?

Gössel afirma que, uma vez que a norma se dirige a todos, tem de consagrar um padrão comum, o que parece uma evidência. Mas em seguida

30 Na doutrina portuguesa, Paula Ribeiro Faria afirma expressamente que afirma que “o ilícito negligente não integra tipo subjectivo de ilícito algum“ - FARIA (2005) p. 901. Numa posição menos radical, mas ainda assim desvalorizando a discussão sobre a existência de um tipo subjectivo negligente, cf. DIAS (2007) p. 886 ss. Na doutrina brasileira, toma posição também contra a existência de um tipo subjectivo nos crimes negligentes TAVARES (2009) p. 296 ss. Referindo-se ao tipo subjectivo nos tipos negligentes, Zaffaroni destaca a diferença relativamente ao que sucede nos tipos dolosos, na medida em que não há um conhecimento efectivo mas apenas potencial, no entanto considera que é conveniente manter uma construção comum – ZAFFARONI (xxxx) p. 432 ss.

31 Esta é uma posição moderada; numa formulação mais exigente, não bastará a previsibilidade, exigindo-se a previsibilidade individual ou, mais ainda, a previsão. Em suma, as posições variam num largo espectro que vai da negação da tipicidade quando falte o conhecimento efectivo (a previsão) à aceitação da culpa mesmo quando não haja previsibilidade, por bastar a componente objectiva.

(31)

31 depara-se com a dificuldade de resolver os casos em que, reconhecidamente, não há previsibilidade individual32. Trata-se de um problema recorrente para quem pretende encontrar na previsibilidade do resultado a base para o tipo subjectivo negligente. Esta perspectiva terá, aliás, de concluir pelo não preenchimento do tipo de ilícito nas hipóteses de negligência inconsciente (que já suscitam sérias dificuldades de teorização a nível de culpa).

É neste contexto que a posição de Struensee se revela profundamente inovadora, ao basear-se o conceito de síndrome de risco – conjugação de circunstâncias que propiciam a lesão do bem jurídico a um ponto considerado intolerável e que existem independentemente do conhecimento que o agente tenha delas, estão no mundo externo, objectivas e apreensíveis. Esta construção permite identificar o resultado finalisticamente buscado pela acção na negligência e que determina o seu desvalor.

Que o objecto da acção [final] não seja o dano, ainda que o agente seja punido por este, é questão que tem suscitado severas críticas a esta construção do tipo negligente.

Na negligência, porém, a potencialidade de lesão é de tal forma intrínseca ao complexo de risco carregar de tal forma que, ao assumi-lo, o agente tem de levar em conta essa possibilidade. É como se o “dolo” directo relativamente ao complexo de risco implicasse um “dolo” eventual relativamente à possibilidade (a potencialidade) de verificação do resultado. Só é possível conceber um risco enquanto tal se se considerar como possível a verificação do resultado – quando não, o risco não existiria. Aqui, mais uma vez, se evidencia a importância da distinção entre perigo e risco: o agente pode não aceitar sequer o perigo (enquanto situação que existe no mundo externo) mas aceita o risco enquanto construção lógica. E, ao querer assumi--lo, aceita essa mesma possibilidade – que depois vem a projectar-se

(32)

32 efectivamente no resultado proibido33. Como veremos adiante, é por esta via que, na negligência, desvalor da acção e desvalor do resultado (aqui o resultado final, isto é, a lesão do bem jurídico) se encontram inextricavelmente ligados e mesmo interdependentes.

Segundo González Murillo, na negligência o que se exige não é a previsão (consciente) do resultado mas a das “circunstâncias típicas arriscadas” e a medida deste risco é fixada pelo legislador; basta, portanto, que o indivíduo conheça as circunstâncias que produzem o grau de risco alvo de proibição (o risco proibido)34. González Murillo deixa, porém, vários problemas por resolver: a) não explica como o indivíduo acede a esse conhecimento das circunstâncias (o que pode conduzir ao mesmo impasse, já várias vezes referido: uns terão consciência das circunstâncias de risco e outros não); b) não refere o problema do erro sobre o tipo, que pode verificar-se; c) não discute a questão de como adquire o indivíduo o conhecimento sobre o grau de risco proibido (onde passa a fronteira, v.g. quando não existam normas técnicas sobre aquela concreta actividade?).

Ao analisar a posição de autores como Graven e Weideman, González Murillo defende que este conhecimento das circunstâncias (conhecimento efectivo, não conhecimento pressuposto por ser de esperar do

homem médio) há-de existir como base imprescindível de um tipo subjectivo.

Esta posição, que corresponde a uma corrente da doutrina fortemente motivada pelo princípio da culpa35, tem sido acusada de não resolver satisfatoriamente muitos dos casos práticos que diariamente se nos deparam. Haveria, segundo os críticos, lugar a uma impunidade inaceitável em inúmeras situações em que o agente nem sequer configurou os factores de

33 Evidentemente, o agente não representa apenas a possibilidade de um resultado, mas de vários resultados possíveis – embora a posteriori só nos interesse aquele(s) desses resultados que a) tenham efectivamente ocorrido e b) realizem a descrição de um tipo penal.

34 GONZALEZ DE MURILLO (1991) p. 204.

(33)

33 risco, como nos exemplos, citados por Herzberg e discutidos também por Struensee36, da mãe que dá ao seu filho comida envenenada sem o saber ou da enfermeira que esquece as instruções do médico sobre os alimentos que não devem ser dados a uma determinada criança.

Struensee defende aqui o recurso à figura do erro sobre o tipo, concluindo pela impunidade uma vez que não há previsibilidade do resultado por parte do agente. Herzberg, numa posição mais objectivista, considera que só há lugar a tipicidade subjectiva nos crimes dolosos. E discorda do critério do erro sobre o tipo sugerido por Struensee, argumentando que este resultaria insatisfatório na medida em que levaria à isenção de responsabilidade do agente simplesmente por este se ter enganado, por não ter tido uma noção correcta do risco, sobrepondo a ignorância subjectiva à conformidade com o cuidado exigido pelas circunstâncias37. Para Hezberg, a tónica há-de ser colocada nos riscos criados e não na percepção que deles tem o sujeito. Ao que Struensee contrapõe que, a seguir-se a posição de Herzberg, a enfermeira que (apesar de avisada mais do que uma vez) deu à criança o alimento prejudicial agiria sempre de forma objectivamente negligente, mesmo que nada lhe tivesse sido dito 38.

Face às conclusões de Struensee, as críticas que dirige a Herzberg são, até certo ponto, justas. Mas a verdade é que a construção daquele autor não conduz inevitavelmente às conclusões que defende. Embora se questione sobre o critério a adoptar para avaliar o conhecimento – ou cognoscibilidade – necessário para o juízo sobre a negligência, Struensee não desenvolve os pressupostos de que parte (exigência de um tipo subjectivo, consciência de um complexo de riscos, eventual erro sobre a tipicidade) e a sua construção

36 HERZBERG (1987) p. 537 ss.; STRUENSEE (1987) p. 541. 37 Herzberg (1987) p. 538.

38 “würde die Krankenschwester auch dann objectiv fahrlässig handeln” – STRUENSEE (1987) p. 41.

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34 fica, por isso, incompleta e exposta a críticas como as formuladas por Hezberg.

Para se enquadrar correctamente o problema, temos de ter presente que ser negligente não é criar perigos no mundo exterior. Ser negligente é agir optando por um risco superior ao normativamente admissível.

Logo, no exemplo da enfermeira, é incorrecto dizer que ela foi “objectivamente” negligente só porque o seu comportamento criou um perigo que se concretizou no resultado. Compare-se com casos semelhantes no âmbito do dolo para melhor se compreender. Pelo facto de Abílio ter disparado sobre Bento, julgando erradamente que estava a disparar contra uma peça de caça, não pode dizer-se que Abílio agiu dolosamente, ainda que

objectivamente Abílio tenha visado Bento e lhe tenha acertado porque assim

pretendeu. Neste caso, de acordo com o regime do artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, o dolo é excluído, subsistindo apenas a possibilidade de punir o agente a título de negligência. Mas note-se que o juízo de negligência não tem directamente por objecto a acção de apontar e disparar: esta, na sua configuração externa (objectiva) é uma acção intencional relativamente à qual não cabe discutir o cuidado no desempenho. O juízo de negligência, nestes casos, toma antes em consideração o modo como o agente avaliou a realidade, em termos de aferir se, segundo as circunstâncias, o erro era ou não evitável.

Do mesmo modo, na negligência, quando o indivíduo desconhece os

factores de risco cuja ponderação era indispensável para tomar uma decisão sobre a acção praticada, não pode falar-se em falta de cuidado relativamente à acção em si (administrar o medicamento ao doente, servir o alimento à criança, etc.). Não há, da parte do agente, uma opção pela síndrome de risco proibida, pois ele não chega a configurá-la.

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35 A conclusão sobre o dever de cuidado desloca-se então para o desconhecimento das circunstâncias relevantes – exactamente como sucede na exclusão do dolo por erro sobre elementos do tipo.

Não é, portanto, necessário recorrer a construções específicas (e controversas) do tipo negligente para resolver estes casos, bastando aplicar analogicamente o regime geral do erro. A censura recua então até ao momento em que o indivíduo podia ter configurado correctamente a realidade (obtendo a necessária informação ou actualizando conhecimentos existentes) e todavia não o fez, estando essa ignorância na base do seu actuar descuidado.

Pode afirmar-se estarem deste modo ultrapassados todos os problemas suscitados pela negligência inconsciente?

Na negligência consciente o agente conhece os factores de risco e a possibilidade de o resultado se verificar; a existência desta possibilidade, decorrente dos factores de risco, consubstancia o objecto de uma previsibilidade – quando não mesmo de uma previsão – considerada indispensável para a realização do tipo negligente, integrando a tipicidade subjectiva39.

Mas se o indivíduo age sem reconhecer sequer os factores de risco, não podendo, portanto, prever as consequências (juridicamente proibidas) da sua acção, pode esta ser considerada culposa sem violação do princípio da culpa nos termos em que o direito penal actual o acolhe?

Mesmo admitindo que, de facto, todas as acções resultam de uma opção, ou seja, da escolha entre alternativas40 (ainda que nem sempre a ponderação das alternativas e a escolha pela acção arriscada se processe ao

39 Para Gössel, a previsão individual (individuelle Voraussicht) integraria a negligência consciente, enquanto à negligência inconsciente corresponderia a mera previsibilidade individual (individuelle Voraussehbarkeit) – GÖSSEL (1978) p. 52.

(36)

36 nível da consciência reflexiva) será isto suficiente para suportar um juízo de culpa?

Sem esquecer autores que desde há muito têm debatido esta questão – e a que voltaremos mais adiante – analisemos o problema a partir de uma posição radical defendida por dois autores anglo-saxónicos41 numa obra recente, tomando também em conta o conjunto dos comentários publicados no número do periódico Law and Philosophy Review que lhe foi dedicado42.

A escolha justifica-se por a teoria defendida por Alexander/Kerzan e a polémica a que deu origem tocar os principais pontos sobre que assenta a construção do algoritmo proposto na presente dissertação.

Em traços gerais, pode-se dizer que Crime and Cupability, a monografia de Alexander e Kerzan converge para duas conclusões: (1) punir a negligência inconsciente viola o princípio da culpa e (2) a verificação de resultados deve ser irrelevante para efeitos de punição. É principalmente a primeira destas afirmações – e a discussão em redor do seu suporte teórico - que nos interessa.

Alexander/Kerzan baseiam-se nas seguintes premissas, que desenvolvem ao longo da obra:

1 – Não há culpa sem controlo, isto é, sem que o agente tenha tido a possibilidade de optar. Esta é uma ideia cara também ao pensamento finalista, como se sabe: a de opção como base de censura penal43. No campo da negligência, Alexander/Ferzan levam este ponto de partida às suas últimas consequências, negando a culpa em situações em que não há

41 ALEXANDER/KERZAN (2009). 42Law and Philosophy, 29 (2010).

43 Compare-se, especificamente no campo da negligência, com uma perspectiva completamente diferente como a que Eduardo Correia expressava em 1961, apelando para a [falta de] preparação do agente, nomeadamente por não ter aperfeiçoado as suas capacidades de previsão – CORREIA (1961) p. 29.

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