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Em busca de um código comum Como quantificar?

UTILIDADE (SUBJECTIVA) ESPERADA

5.1 Em busca de um código comum Como quantificar?

A transposição dos valores subjectivos para um código comum, que os torne acessíveis a todos e objecto de análise externa, é uma condição essencial para a construção de modelos de decisão.

Como veremos, na infracção do dever de cuidado o que está em causa é, geralmente, uma disfunção na valoração dos bens afectados no contexto de uma acção que comporta riscos. Sendo as valorações do foro pessoal, impõe-se encontrar modos de as tornar comparáveis, a fim de poderem ser inscritas numa matriz decisória que será alvo da análise crítica do julgador.

251 RESNIK (1987) p. 99. Para Resnik, esta perspectiva é normativa, não descritiva. O agente a que se refere é um agente ideal que pode servir como referência, como guia. Resnik admite, contudo, que o agente real possa ponderar as utilidades e preferências segundo regras semelhantes às do agente ideal, através de um sistema de tentativas e correcções.

141 Só através da quantificação dessas valorações será viável a comparação e trade-off entre os indivíduos ou entre estes e o Estado. Deverá, pois, encontrar-se um método adequado de as tornar mensuráveis. Todas as teorias que apresentam o processo decisório como ponderação de utilidades esperadas repousam na convicção de que esta tarefa é exequível.

Por valor de um bem deve entender-se o valor que esse bem tem

para o indivíduo, ou seja, a sua utilidade, pois é esta que é determinante

(conjugada com as probabilidades de verificação dos resultados possíveis) da opção entre várias alternativas. A utilidade de um bem não é um atributo desse bem, mas uma qualidade que lhe é aposta consoante a função e o destinatário.

Veremos, no capítulo 6, que as probabilidades, embora possam ser de natureza subjectiva e qualitativa, se expressam sempre em termos quantitativos; a sua subjectividade reside em consubstanciarem convicções do indivíduo, mas convicções sobre valores que têm expressão numérica. Não é assim no caso da utilidade. Por um lado, os sujeitos atribuem às alternativas valores que não são, na maior parte dos casos, expressos quantitativamente. Por outro lado, frequentemente, o determinante não é o valor em si mas a ordem de preferências252. Impõe-se, então, recorrer a uma

252 Actualmente muitos autores, quer em economia quer na teoria da decisão, avaliam a utilidade de um resultado na medida em que este determina as escolhas do sujeito, não pretendendo aceder directamente àquilo que podemos designar como a utilidade

experienciada. No entanto, autores como Kahneman e outros demonstram que a própria utilidade experienciada é mensurável e empiricamente distinta da chamada utilidade de decisão –

Kahneman et al (1997). A abstracção da utilidade reportada directamente ao indivíduo, por sua vez, cria o risco de o sistema se tornar autopoiético e não contribuir para explicar o que subjaz à realidade das decisões observáveis. Note-se, contudo, que é o valor da utilidade

decisória que serve de referente para o dever de cuidado: a negligência corresponde a uma utilidade decisória não admitida pelo Direito - e que, tal como qualquer outra, se infere a partir

das escolhas feitas em concreto. Read, partindo das experiências relatadas por Kahneman, conclui que a utilidade decisória (decicion utility) não só difere da utilidade experienciada como pode induzir o indivíduo em erro – READ (2004). Mas é possível abordar a questão de outro prisma: há, seguramente, um enviesamento que leva à distorção [subjectiva] da

142 escala que nos permita graduar as utilidades subjectivas dos diferentes resultados (outcomes).

Um dos modos mais fáceis de quantificar as utilidades consiste em atribuir-lhes valores monetários. Embora possa parecer que tal não é possível, dada a forma marcadamente qualitativa como o indivíduo atribui utilidades às alternativas que se lhe deparam, essa conversão tem sido conseguida com sucesso em inúmeras situações.

O método de valoração consiste, na sua versão mais simples, em perguntar às pessoas quanto estão dispostas a pagar pelo bem (ou quanto considerariam aceitável para abdicarem dele). Este processo permite obter valores quantitativos para os gostos e preferências dos indivíduos e, em geral, avaliar o valor de qualquer bem para o qual não há valor de mercado. Tem sido utilizado, por exemplo, para decidir sobre políticas de saúde ou para definir a importância atribuída por uma comunidade ao ambiente saudável.

Um outro processo, a que se recorre com frequência, consiste num sistema de apostas: estimando quanto o indivíduo estaria disposto a apostar em A1, A2… An, podemos encontrar os respectivos valores em forma de quantias monetárias.

A conversão em valores monetários por esta via é, em teoria, sempre possível. Para quem se questione sobre como atribuir um valor monetário à integridade física253 convém recordar que as companhias de seguros dispõem de tabelas com os valores a atribuir a cada lesão susceptível de indemnização e a cada grau de incapacidade: perder um dedo, uma mão, um braço, etc. Também os danos morais, como se sabe, são convertíveis em dinheiro para

assumidamente, ela coincide com a decision utility. É uma questão de conteúdo substancial dos nomes.

253 Pode-se mesmo equacionar opções complexas, como por exemplo: I tem de optar entre submeter-se a uma operação que, com probabilidade de 90% o curará e com probabilidade de 10% poderá causar-lhe a morte; ou, em alternativa, ficará sem ambas as pernas.

143 efeitos de indemnização. Aliás, parafraseando Resnik254, se podemos atribuir valor monetário ao tempo, à força de trabalho, etc., não se vê por que seja impossível fazê-lo relativamente a qualquer vantagem ou preferência que o indivíduo deva considerar nas suas decisões.

A principal dificuldade consistirá no valor do bem vida, que constitui, de certo modo, um caso particular. Pode a vida ser avaliada em termos monetários? Como calcular quanto vale uma vida?

Se perguntarmos a alguém quanto está disposto a pagar para evitar a morte certa e imediata, seguramente que responderá que entregará todos os seus bens em troco da possibilidade de sobreviver. Significa isto que a vida, pelo menos para o próprio, tem um valor infinito, insusceptível de quantificação? Como afirma David Friedman, “o problema não consiste em multiplicar pelo infinito, mas em dividir por zero”255. Perante a hipótese de morrer, de nada aproveita ao indivíduo conservar qualquer parcela do seu património, pois, morrendo, não terá oportunidade de desfrutar dele. Ou seja, nessa eventualidade a utilidade do dinheiro será igual a zero – logo, a disponibilização de “todos os seus bens” não tem qualquer significado em termos de quantificação do valor em troca.

Que o valor da vida não é, para o próprio, infinito, revela-o claramente o facto de o próprio indivíduo aceitar trocá-la, em certas circunstâncias, por outros interesses que ele considera superiores: num acto de heroísmo e abnegação no campo de batalha, por uma causa em que acredita, sacrificando-se para salvar os filhos, etc.

Aliás, também para o direito o valor da vida não é absoluto, ao contrário do que muitas vezes se afirma. Se o fosse, não poderia ser sacrificado em legítima defesa (e, como se sabe, a nossa lei permite causar a

254 RESNIK (1987) p. 85. 255 FRIEDMAN (2000) p. 95.

144 morte ao agressor mesmo em casos em que não está em perigo a vida do defendente), nem poderia sequer o Estado enviar tropas para qualquer cenário de guerra.

Considera-se, geralmente, que o modo correcto de calcular o valor subjectivo (monetariamente expresso) da vida será averiguar quanto está o sujeito disposto a pagar para evitar um risco x, ou, inversamente, quanto exigirá para correr determinados riscos na sua profissão256. Suponhamos que, por exemplo, na construção de uma estrada em condições adversas, é necessário que alguns operários trabalhem suspensos por uma corda sobre o abismo. Sabe-se, por experiências anteriores semelhantes, que uma pequena percentagem desses operários acaba por cair e morrer. Quanto é preciso pagar a mais para que haja voluntários para essa tarefa? Multiplicada essa quantia pela probabilidade de queda, obteremos o valor que o trabalhador em questão atribui à sua vida257.

Este método tem, contudo, uma consequência absurda: teríamos de concluir que a vida de um pobre vale – para o próprio! – menos do que a vida de um rico258. Ora não parece legítimo tirar esta conclusão, que, além do

256 Não é indiferente colocar a questão de um ou outro modo, como se sabe, e os valores obtidos não serão os mesmos.

257 Refira-se, de passagem, que este cálculo, realizado em inúmeras situações de assunção de risco, leva a valores entre 1 e 10 milhões de dólares – valor elevado, mas, como se vê, não infinito; cf. FRIEDMAN (2000) p. 97.

258 Na mesma linha de pensamento, veja-se o exemplo descrito por Adams: o Kakadu Park, na Austrália, é uma vasta área (cerca de 20000 km2), habitada desde há cerca de 40 000 anos e considerada sagrada pelos aborígenes. Nos anos 70 do século passado, uma grande empresa internacional manifestou interesse em explorar as jazidas de urânio existentes no parque. Os aborígenes opuseram-se, considerando um sacrilégio a invasão deste espaço até então preservado. Como decidir? Que valor atribuir aos interesses em confronto? E qual o valor que deve ter para o governo australiano a opinião pública da população em geral, que não via com bons olhos o desrespeito pela cultura aborígene? Não se pode comparar a disponibilidade para pagar [pela conservação do parque] dos aborígenes, que quase não dispõem de dinheiro, com a disponibilidade de uma grande empresa interessada na exploração mineira da região. Uma análise baseada nas atitudes de uma amostragem da população australiana, indagando quanto estariam dispostos a despender para que a licença fosse recusada (as respostas variavam entre 52 e 128 dólares por ano, o que, no conjunto, excedia os lucros previsíveis da exploração de minério), foi considerada base insuficiente

145 mais, repugna à intuição e ao bom senso; o que está em causa, e originará a diferença, é antes um problema de utilidade marginal do dinheiro. Será mais correcto concluir que vale menos se avaliada directamente em termos monetários mas, se utilizado outro critério de avaliação, valerá provavelmente o mesmo. Além disso, é sabido que, em circunstâncias extremas, se a própria sobrevivência de um indivíduo e da sua família próxima depender daquele emprego, ele aceitará o risco a troco de bem pouco – o valor da vida será aqui determinado pelas leis do mercado e não reflectirá mais do que a dependência total relativamente ao empregador. Não seria, por exemplo, aceitável que, com base em situações de facto como essa, os tribunais impusessem o pagamento de uma indemnização menor a quem atropela mortalmente um sem-abrigo do que a quem atropela um próspero homem de negócios259. Da mesma forma, não é porque, em alguns países extremamente pobres, há pessoas dispostas a vender um rim que a integridade física dessas mesmas pessoas tem menos valor, abstractamente, do que a da restante população260.

Fazer depender a estimativa do valor da vida do “preço” exigido para correr riscos leva ainda a outras distorções de raciocínio: devemos concluir que as pessoas que têm alta apetência por desportos arriscados valorizam menos a vida do que o cidadão cauteloso que faz um check-up anual, se preocupa com a alimentação, não bebe nem fuma? Há uma componente qualitativa que não pode ser desprezada na quantificação da

para decidir, tendo o governo acabado por encomendar um estudo que levou dois anos a concluir e que utilizou métodos muito variados, incluindo entrevistas, estudos de peritos em várias áreas, etc. Para um desenvolvimento crítico dos problemas suscitados por este caso, cf. ADAMS (1995) p. 108 ss. Pode encontrar-se uma descrição pormenorizada da polémica no Outside Magazine de Março de 1999.

259 Estou a referir-me a indemnização atribuída pelo dano morte, directamente, e não a compensações devidas à família – essas, como se sabe, estão sujeitas a inúmeros factores de variação.

260 Sobre o valor operativo da compensating variation, num quadro de maximização de riqueza, v. KORNAUSER (1998) p. 679 ss.

146 utilidade. Muitas pessoas, se confrontadas com a hipótese de pagar x por dez anos de vida sem qualidade ou a mesma quantia por oito anos de vida plena, optariam pela segunda hipótese261.

A extrapolação e uniformização de valores atribuídos despreza erroneamente as variações individuais. Também a atribuição rígida de valores monetários às lesões da integridade física padece do mesmo defeito. Ficar sem uma perna não significa o mesmo para um contabilista casado sem filhos que para uma mãe solteira com um filho de seis meses que dela depende integralmente262.

Apesar de todas estas limitações, a expressão da utilidade (do bem vida) em valores monetários pode ter relevância em certos casos.

Como todos sabemos, os recursos estatais são escassos, não sendo possível acorrer a todas as necessidades. Daqui decorre que, por vezes, o Estado tem de fazer opções entre adoptar medidas que poderiam salvar um certo número de vidas ou, em alternativa, empregar o dinheiro para melhorar a qualidade de vida de um número muito mais elevado. Mais uma vez, não é correcto afirmar que o valor vida se sobrepõe sempre a todos os outros; se assim fosse, não suscitaria hesitações a opção entre gastar vinte milhões de euros para salvar, através de intervenções médicas muito dispendiosas, a vida de dez pessoas padecendo de uma doença rara, ou aplicar esses vinte milhões num programa de investigação que levaria com forte probabilidade à descoberta da cura para grande parte dos casos de cegueira (ou, por exemplo, em assistência pré-natal que reduziria para menos

261 Este método de avaliação de utilidade, chamado time-tradeoff, tem revelado que os indivíduos, quando a duração da vida prevista é muito curta, são insensíveis ao factor qualidade; mas resulta desde que se trate de prazos alargados.

262 Rowe destaca esta diferença entre a importância que o mesmo resultado pode assumir para diferentes pessoas, considerando-a determinante para a resposta que os indivíduos apresentam perante o risco. Para o autor, a estimativa do risco é constituída por cinco passos, sendo o valor da consequência para a pessoa afectada o quinto passo – esse valor, conjugado com a probabilidade da ocorrência, é, segundo o autor, o que determina a resposta. ROWE (1988) p. 30-31.

147 de metade o nascimento de crianças com deficiências): sempre prevaleceria o salvamento das dez vidas. No entanto, parece-me que, nessa hipótese, seria racional que o Estado, não podendo satisfazer todas as necessidades, investisse na assistência pré-natal, ou na investigação sobre a cegueira, com prejuízo das dez vidas. Todos sabemos, aliás, que muitas opções de investimento do dinheiro público são feitas de acordo com raciocínios deste tipo.

Pode ter interesse reproduzir aqui um exercício mental proposto por Baron263:

“Considere-se a pretensão de que a vida deve ser colocada à frente de tudo o

resto. Suponha-se que uma companhia de seguros de saúde (para decidir quais os tratamentos que deve cobrir) tem de escolher entre salvar a vida do Sr. Smith pagando uma operação que custará milhões de dólares ou, em alternativa, pagar o tratamento da artrite a um milhão de segurados (escolho a artrite porque é uma doença dolorosa mas que geralmente não constitui ameaça para a vida). Se quisermos colocar a vida acima de tudo o resto, poderíamos decidir pagar a operação do Sr. Smith. Mas agora suponhamos que o sucesso da operação não é certo, mas apenas uma probabilidade (P). Suponhamos que P é 0,001. Continuaríamos a preferir a operação? E se P fosse 0,000001? Parece que haverá um valor de P suficientemente reduzido para alterar a nossa preferência. Se esse valor de P existe (superior a 0) então estamos, de facto, a negociar entre os dois atributos em questão – a vida e a dor”.

Na realidade, é possível escalonar o valor quantitativo de qualquer utilidade264. O que não significa que não haja um limiar a partir do qual outras considerações se sobreponham ao referencial numérico alcançado. Voltaremos a esta matéria mais adiante, para referir não só os problemas que

263 BARON (2000) p. 352 ss.

264 As principais dificuldades residem em encontrar o método adequado para o fazer; mas, tratando-se de dificuldades, não impossibilidades, não invalidam a proposta.

148 suscita mas também, e principalmente, as potencialidades que desencadeia. Aliás, casos há que, logo à partida, estão vocacionados para uma avaliação segundo outros parâmetros, como por exemplo, o desempenho dos serviços de emergência, ou a resposta a uma epidemia mortal265.

Ao estabelecer o valor em termos monetários, convém não nos deixarmos confundir pelo facto de, regra geral, ninguém trocar uma mão, voluntariamente, pelo dinheiro da correspondente indemnização266. Do que se trata é de um cômputo entre valores abstractos, não de decisões que afectam seres individualizados. Mesmo no caso da morte, é uma morte estatística que pretendemos avaliar, não uma morte individual.

Aceitamos que o Estado estabeleça relações de custo-benefício entre a despesa necessária para implementar determinadas medidas de segurança e o número de potenciais vítimas na ausência de tais medidas267, mas seria impensável que o Estado negasse o auxílio necessário para salvar, por exemplo, a vida dos mineiros João e Aníbal, aprisionados por um aluimento, com o argumento de que o custo do salvamento era superior ao valor daquelas duas vidas268.

265 Exemplos referidos por KEENEY/RAIFFA (1976) p. 138 ss. Penso, no entanto, que os parâmetros aí equacionados (tempo de resposta; número de mortes causadas pela epidemia) podem ser posteriormente convertidos em referências monetárias. Tomemos o caso da epidemia: se a questão fosse apenas evitar mortes, a opção seria, com certeza, o mínimo de mortes possível, de preferência zero. Mas qual o preço a pagar para alcançar esse objectivo? Se este último problema não se colocasse, não estaríamos a debater realmente uma escolha, uma decisão entre várias alternativas.

266 Embora haja casos em que o indivíduo se lesiona propositadamente para receber da companhia de seguros a compensação acordada, estes casos são raros e a todos os títulos excepcionais.

267 Linnerooth-Bayer analisa a relação entre a estimativa do risco pelos cidadãos e pelas entidades públicas de uma perspectiva crítica, questionando as eventuais cedências determinadas pela visão catastrófica que a população tem acerca de certas actividades susceptíveis de provocar danos elevados, ainda que a probabilidade de tal se verificar seja muito reduzida– LINNEROOTH-BAYER (1996) p. 133 ss.

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