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ANÁLISE ECONÓMICA DO DIREITO

3.5 A culpa e a justiça

Coleman, na sua crítica à abordagem económica do direito, defende que a análise económica é plausível no que toca a responsabilidade por indemnização – à semelhança do que sucede na precursora decisão do juiz Hand – mas já não no direito penal, pois que, neste, há uma vertente moral,

195 POSNER (2003) p. 149.

196 Em SILVA M.(1997) p. 20, podemos ver a representação gráfica da fórmula marginalizada de Hand.

112 que legitima a aplicação de sanções e é incomportável pela análise estritamente económica197. É um facto que a aplicação das sanções penais pressupõe a culpa, e poderíamos mesmo acrescentar que não só do ponto de vista da legitimidade como também, até certo ponto, do ponto de vista da eficiência: os efeitos dissuasores da pena só fazem sentido se o indivíduo for responsável pelos seus actos, caso contrário (se eles não dependeram da sua vontade nem podia evitá-los) é irrelevante se se comina ou não uma pena198. Mas, ao contrário do que Coleman afirma, os aspectos morais não são o essencial da responsabilidade criminal - a não ser num sistema de pura retribuição, há muito abandonado na maior parte dos sistemas penais. Do mesmo modo, não basta ao Estado, que o indivíduo mereça a pena, embora (estaremos provavelmente todos de acordo) essa seja condição sine qua non.

O que Coleman não faz é distinguir radicalmente entre dois momentos: a função do direito penal, enquanto mecanismo de aplicação de penas, e a legitimidade do mesmo para impor sanções (distintas do carácter restaurador de uma indemnização). No primeiro destes momentos, não se compreende por que não teria a análise económica aplicação – e nenhum dos argumentos de Coleman a inviabiliza. No segundo momento, se considerarmos que estão englobadas, por seu turno, duas vertentes (a eficácia no cumprimento da função – preventiva – e a culpa do sujeito), ainda podemos aplicar o método da análise económica, com carácter descritivo, para aferir da eficácia e da proporcionalidade em termos utilitaristas)199. Apenas no plano da culpa não há, obviamente, lugar à aplicação das teorias económicas (v.g. se entendermos a culpa a partir de uma perspectiva kantiana). Mas, dado que a culpa não é todo o direito penal (em termos extensivos) não pode assim rejeitar-se a aplicação da análise económica do

197 COLEMAN (1985) p. 326.

198 Sobre os limites desta tese, cf. ALMEIDA (2000) p. 27 ss. 199 Cf. SCHULHOFER (1985) p. 330.

113 direito – não com uma ambição totalizante, é certo, mas com grande vantagem de clarificação em certos domínios. É o próprio Coleman, aliás, que cita aprovadoramente a notável frase de Terry: “negligence is a conduct,

not a state of mind”200. Se os estados de espírito são rebeldes à análise económica (mas não incompatíveis, como a psicologia recente vem demonstrando), as condutas são perfeitamente recondutíveis aos modelos do

homo economicus.

Esta distinção suscita outra reflexão importante. A ideia muito vulgarizada entre os defensores da análise económica do direito (a começar por BECKER) de que uma pessoa comete um crime se a utilidade esperada assim obtida excede o custo alternativo é, quanto a mim, absolutamente correcta. Mas daqui não pode retirar-se a conclusão (também muito vulgarizada) de que assim fica explicado por que certas pessoas cometem crimes. Trata-se de um erro de perspectiva, pois a questão, a que se julgava dar assim resposta, subsiste infiltrada nos próprios termos. Os mesmos actos não têm a mesma utilidade esperada para toda e qualquer pessoa, e é isso que provoca o desequilíbrio – pois a utilidade de não cometer o crime (o não- custo) mantém-se idêntico pelo menos no plano da não-sujeição à sanção. Também esta, aliás, terá desutilidade diferente de indivíduo para indivíduo – ser condenado a um ano de prisão não significa o mesmo valor negativo para

A (sem família e com larga experiência criminosa e numerosos amigos na

prisão) que para B (com filhos menores, emprego, uma vida alheia ao mundo da delinquência). Quando os defensores mais extremistas da análise económica do direito pretendem que esta possa substituir – tornar desnecessárias – outras abordagens explicativas do fenómeno criminal, incorrem no erro de tomar a descrição pela explicação. O modelo económico permite plasmar e relacionar os factores de decisão do indivíduo no

114 momento de agir. Mas não descreve o percurso que conduziu aos valores determinantes para a opção economicamente ajustada. Com razão afirma Schullofer que, ao dizerem que o homem é “um maximizador racional de utilidade”201 Becker, Posner e os seus seguidores estão ao lado do problema, ainda que a afirmação seja verdadeira.

A toda esta polémica, e sem a desvirtuar, há ainda que acrescentar o seguinte: a) poderá a análise económica englobar os apports das outras ciências interligadas com o direito penal (psicologia, sociologia, etc.) por forma a densificar (de modo mais compreensivo) o critério de utilidade? b) mesmo admitindo que se trata de um método incompleto, até que ponto é a análise económica um método funcional? Tem utilidade prática? E essa utilidade, a havê-la, inscreve-se no plano descritivo, no plano normativo, ou em ambos?

A questão a), porque crucial para o desenvolvimento do presente trabalho, será discutida detalhadamente mais adiante. Quanto à questão b), adiantaremos desde já o seguinte: o modelo de homo economicus e as teorias de decisão podem ser encaradas do ponto de vista normativo ou descritivo; mas o crivo da realidade empírica será sempre importante. É (pelo menos) questionável se se deve defender um modelo normativo que a realidade empírica contradiz constantemente.

Pode também considerar-se que o modelo de homo economicus e o respectivo processo de decisão são descritivos e normativos, como faz Savage. Shafer questiona a posição de Savage, argumentando que ela é constantemente contrariada pela realidade empírica, v.g. no que respeita à separação entre valores e convicções. Mas isto já se sabia através de Tversky/Kahneman e muitos outros. A questão é: há outra alternativa? Pode-se construir um modelo de homo que não seja racional? Mesmo as

115 tentativas mais conseguidas, como as da fuzzy logic, não logram apresentar um indivíduo passível de ser sujeito de direito penal.

As pessoas fazem escolhas a todo o momento, desde as grandes escolhas que se projectam no futuro, condicionando-o profunda e duradouramente, até às pequenas escolhas do quotidiano (ligar ou não ligar a TV, se a liga qual o canal que vê, descer pelas escadas ou pelo elevador, comer carne ou peixe no restaurante, etc. etc.). Como são feitas estas escolhas? Certamente que não através de uma decisão tomada após longa ponderação de todos os elementos relevantes. Mas são feitas ao acaso, aleatoriamente? Que se passa no nosso cérebro antes – e até dar a ordem aos músculos e articulações para atravessar a rua aqui e não dez metros à frente? Retomando o famoso exemplo de Savage, como decide uma pessoa – qualquer pessoa – se vai partir o ovo directamente na frigideira ou primeiro numa taça para ver se não está estragado? Que leva A a decidir de um modo e B a decidir diferentemente? Mais uma vez: será o acaso? Ou A e B processam informação e tiram conclusões de acordo com valorações e preferências?

Tome-se outro exemplo de Savage202 discutido por Shafer203: Jones hesita entre comprar um sedan por 1000 dólares, um descapotável igualmente por 1000 dólares, ou não comprar nenhum deles, continuando sem carro. A análise mais simples leva-nos à conclusão de que Jones hesita entre três prazeres: o do sedan, o do descapotável e o dos 1000 dólares. O acaso e a incerteza parecem nada ter a ver com a situação. Mas podemos imaginar vários factores (futuros e incertos) que teriam influência na decisão de Jones: ele decidir-se-ia pelo descapotável se se concretizasse a sua esperança de umas férias num local quente; não compraria nenhum dos carros se

202 SAVAGE (1954) p. 83. 203 SHAFER (1988) p. 224.

116 considerasse provável ver-se confrontado com uma emergência financeira devida a uma súbita doença; de bom grado compraria um carro se temesse uma elevada taxa de inflação.

Shafer considera, com alguma razão, que é uma quimera pretender uma descrição suficientemente pormenorizada de todas as hipóteses que, a serem consideradas, permitiriam a Jones decidir de acordo com uma ponderação das respectivas utilidades e probabilidades. Shafer conclui que Jones decidiu comprar o descapotável porque ele e a mulher planeiam fazer férias no Novo México e não quer analisar todos os desfechos que tal viagem pode vir a ter, por um lado porque se sente incapaz de os seriar de acordo com as respectivas probabilidades, e por outro porque esses cenários alternativos não são “o objecto do seu desejo”. Assim, Shafer defende que o modelo de decisão racional não se aplica, pois que a decisão é anterior à eventual consideração das variáveis envolvidas. Mas como foi essa decisão tomada? Foi-o, seguramente, considerando factores que não estão contemplados na matriz de decisão apresentada, mas em uma outra que o indivíduo utilizou. O argumento de Shafer nada prova contra o homo

economicus.

Sendo consensual que nenhuma matriz inclui todas as variáveis possíveis, o problema está em escolher quais as que terão obrigatoriamente de constar da matriz adoptada pelo direito. Não será útil – porque completamente desfasada da realidade empírica – uma matriz que ignore variáveis que os indivíduos, sistematicamente, incluem e consideram para analisar os problemas. Mas, porque o normativo é sempre orientado para um objectivo – é sempre funcional – a escolha também não é completamente livre, estando vinculada a variáveis relevantes para esse fim.

117 O problema consiste em estabelecer uma ponte entre o descritivo e o normativo204. Pois que o normativo não pode abstrair da realidade empírica, mas também não pode corresponder-lhe 100% porque, nesse caso, deixava de ter carácter normativo. Ou seja, no plano normativo temos um modelo idealizado de análise e decisão, que corresponde ao modelo ideal. Não é, portanto, idêntico ao modelo real de decisão da pessoa real, mas sim uma construção que deve servir-lhe como referência. Mas para que seja funcional – efectivo – tem de obedecer a um parâmetro de compatibilidade com o modelo real. Não é normativo aquilo que prescreve o impossível.

Na prática, trata-se de englobar os desvios (enviesamentos) no modelo de decisão racional, mas deixando ainda um espaço de tensão, que é a margem de normatividade do modelo.

204 Sobre a tensão entre as dimensões descritiva, normativa e prescritiva da análise do processo decisório, cf. BELL/RAIFFA/TVERSKY (1988) p. 9-30.

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