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ALEXANDER/KERZAN (2009) 42 Law and Philosophy, 29 (2010).

43 Compare-se, especificamente no campo da negligência, com uma perspectiva completamente diferente como a que Eduardo Correia expressava em 1961, apelando para a [falta de] preparação do agente, nomeadamente por não ter aperfeiçoado as suas capacidades de previsão – CORREIA (1961) p. 29.

37 controlo (embora pudesse haver) simplesmente porque o agente não tem consciência do perigo no momento em que ele se concretiza.

2 - Os riscos e a desatenção são uma realidade omnipresente e não existe um modo não arbitrário de determinar o ponto a partir do qual devem ser punidos44.

Embora se reconheça que esta delimitação será necessariamente normativa (não se trata, evidentemente, da identificação de um quid pré- existente) não deixa por isso de estar limitada por parâmetros que condicionam a eficácia e legitimidade do direito penal. Sem dúvida, qual a via escolhida depende de uma opção normativa. Mas, ao impor um modelo de gestão do risco, está-se a impor uma regra de convivência essencial à vida em sociedade: está-se a regular as relações intersubjectivas e entre o sujeito e a comunidade mantendo-as dentro de parâmetros considerados indispensáveis45.

3 – O resultado é irrelevante, na medida em que o agente descuidado tanto merece uma pena quando o resultado se produziu como quando, por sorte, tal não aconteceu. Por outro lado, se o agente produziu o resultado inadvertidamente (i.e. sem ter consciência dos factores de risco relevantes) não deve ser punido a qualquer título. As acções (do agente) são avaliadas consoante o resultado esperado (subjectivamente esperado), independentemente de o produzirem ou não46. No valor (negativo) desse resultado é contabilizada também a probabilidade estimada (subjectivamente estimada) de ele vir a verificar-se. Note-se que Alexander/Kerzan defendem

44 ALEXANDER/KERZAN (2009) p. 47 e 71 ss.

45 Referindo-se ao padrão de negligência (negligence standard), Andrew Leopold considera que este não requer do sujeito que detenha toda a informação sobre o que pode provocar riscos para terceiros e discorda, por isso, de Alexander/Kerzan quando estes afirmam que o cuidado exige um grau de atenção impossível de preencher e que está constantemente a ser violado – LEIPOLD (2010) p. 457. Numa perspectiva que considero correcta, Leipold coloca a tónica na escolha do risco por parte do agente, risco esse que vem posteriormente a projectar- se no resultado – Ibidem p. 459.

38 uma concepção radicalmente subjectiva de probabilidade – o que não suscitaria grandes problemas não fosse o caso de virem defender que o único valor relevante da probabilidade é o estimado pelo autor porque, na realidade, não existe outro: a probabilidade objectiva de um evento é puramente ilusória.

Reduzem assim a probabilidade a uma das suas concepções sem que haja qualquer possibilidade de cotejar a probabilidade subjectiva (mera convicção) com algum outro valor que possa servir de termo de comparação. Este subjectivismo radical leva os autores a defender que o agente seja punido pelo que pensa fazer e não pelo que faz (o que é coerente com outras afirmações no sentido de só atribuir relevância ao elemento subjectivo, desprezando inclusive, como já foi referido, a componente objectiva da verificação do resultado).

Mas será isto correcto? Refira-se, antes do mais, uma incongruência nas posições defendidas por Alexander/Kerzan: se o que releva é o controlo – e daí a não punibilidade das acções em que o indivíduo não tem consciência dos factores de risco – e se entre os factores de risco está, necessariamente, o valor da probabilidade, como conceber controlo e

consciência se não houver um objecto externo de que se tem consciência,

sendo essa consciência que permite o controlo (também este, controlo de um processo externo)?

Recuemos, entretanto, um pouco, a fim de analisarmos a afirmação dos autores de que as probabilidades objectivas são mera ilusão47.

Os autores afirmam que, na realidade, o valor da probabilidade só pode ser 0 ou 148. Isto é desvirtuar completamente o conceito de probabilidade, tornando-o inoperacional. Sem dúvida, relativamente a cada

47 No capítulo 7 desta dissertação veremos que esta concepção se insere num campo teórico muito mais vasto, onde se inscrevem outras abordagens do raciocínio probabilístico.

39 evento possível e incerto só há duas hipóteses: ou se verifica ou não. Esta é uma perspectiva “divina” do problema, pois não é possível a ninguém saber com antecipação se um acontecimento incerto vai verificar-se ou não. O cálculo de probabilidades insere-se numa outra perspectiva, que considera o evento não isoladamente mas como elemento de um conjunto. Um dos principais problemas do raciocínio de Alexander/Kerzan consiste na insistência em se reportarem sempre e apenas ao valor da probabilidade em cada exacta e concreta situação. Ora não é essa probabilidade que interessa para o cálculo do risco, mas a probabilidade numa situação genérica de incerteza, estimada ex ante e em geral49.

No texto com que participa no número da Law and Philosophy dedicada ao tema, Eric Johnson critica justamente a posição de Alexander/Kerzan acerca da estimativa de probabilidades feita pelo agente, defendendo uma alternativa viável, com base em diferentes sentidos do conceito de probabilidade50. Johnson, na linha de Keynes, defende que, tomando por base os elementos conhecidos (e, neste caso, serão os elementos conhecidos pelo agente) é possível calcular probabilidades objectivas, cujo valor a partir daqueles pressupostos deixa de ser arbitrário51.

Resta, no entanto, ultrapassar a objecção de Alexander/Kerzan segundo a qual a) não haverá forma de seleccionar qual o conjunto de elementos de que se parte para esse cálculo52 e b) não poderemos basear-nos nos elementos “que o agente conhece” – como base para uma certa dose de objectividade - pois só releva o que “o agente acredita saber”.

49 Como é do conhecimento geral, as companhias de seguros calculam riscos e estes consubstanciam uma realidade bem concreta e objectiva: de acordo com esse cálculo, é estimado o valor do prémio a ser pago, de forma a garantir a solidez financeira da companhia.

50 Johnson (2010) p. 422 ss. 51 Ibidem p. 425.

40 Quanto a este último ponto, desde logo se pode argumentar que a referência ao que o indivíduo sabe (não ao que acredita saber) remete para uma base empírica que há-de ser correctamente identificada pelo agente, sob pena de se encontrar em erro sobre elementos indispensáveis ao cálculo do risco. Na posse dos mesmos elementos, o grau de variação subjectiva é diminuto: existe, mas não excede os limites de que depende a partilha de juízos comuns sobre a potencial perigosidade. É esta racionalidade partilhada que permite o juízo de culpa53.

Quanto ao primeiro argumento, embora suscite uma questão teoricamente válida, a verdade é que, como é do conhecimento geral, as estimativas de carácter frequencista são formuladas e podem ser apresentadas em termos apreensíveis por qualquer pessoa dotada de racionalidade. Mesmo que assim não fosse, no entanto, a dificuldade em calcular probabilidades de acordo com modelos homogéneos (e note-se que este objectivo não é incompatível com uma concepção epistémica de probabilidade) não implica só por si a negação de um risco objectivo – e é deste que se trata quando falamos de negligência.

Outra das limitações da teoria de Alexander/Kerzan consiste – como bem destaca Westen na sua crítica54 - na identificação entre probabilidade e risco, reduzindo este ao conceito de probabilidade. Já aqui foi dito – e voltaremos a este assunto por diversas vezes no presente trabalho – quão pernicioso pode ser este esvaziamento de um conceito fundamental para toda a problemática em análise. Não só porque expõe, indevidamente, a noção de risco às dificuldades próprias da probabilidade, mas também

53 Sobre o problema do erro, cf. o que é dito supra neste mesmo capítulo.

54 WESTEN (2010) p. 412-413. Também Westen revela algumas confusões sobre o conceito de risco, que acaba por definir em termos coincidentes com os de perigo; a crítica que faz a Alexander/Kerzan é, no entanto, inteiramente bem fundada.

41 porque elimina um dos eixos – talvez o principal – sobre os quais se constrói a ideia de negligência.

Do ponto de vista interno à construção de Alexander/Kerzan, no entanto, mesmo se admitirmos o que os autores rejeitam – a existência de uma referência objectiva passível de cotejo com as convicções do agente – o ponto essencial da sua teoria não é afectado. No que se reporta à culpa (e é disso que nos ocupamos agora), se esta pressupõe liberdade de opção e a indispensável consciência dos factores em que se baseia essa opção, a censura a dirigir ao agente estará sempre dependente do que ele sabe (e sabe de modo consciente no momento em que podia ter evitado o resultado, não o tendo feito: o momento de controlo de que falam os autores) ou seja, da forma como ele configura, subjectivamente, a realidade circundante.

O exacerbamento da consciência como requisito leva Alexander/Kerzan a darem importância apenas a esta, abstraindo de qualquer categoria objectiva. Nesta perspectiva, o direito penal contempla exclusivamente a dimensão subjectiva do facto, com as seguintes consequências, elencadas e analisadas por Westen55: o agente passaria a ser punido não pela criação efectiva de riscos (por mais evidente que estes riscos fossem) mas por imaginar que criava riscos (quer tal se verificasse ou não e mesmo que se tratasse de riscos impossíveis como consequência da acção executada). E a maioria dos chamados proxy crimes56 teriam de ser

eliminados.

Abstraindo da questão dos proxy crimes, centremo-nos no que constitui o cerne da posição defendida em Crime and Culpability: a

55 WESTEN (2010) p. 403.

56 A figura assemelha-se, em traços gerais, à ideia das infracções de perigo abstracto. Nem a produção de danos, nem a criação efectiva de perigo, são exigidas como elementos da descrição da „offence‟: nos proxy crimes, a proibição é fundada não num juízo de perigosidade intrínseca, mas num juízo de presunção de perigo associado ao tipo de comportamento em causa.

42 incompatibilidade entre as exigências do princípio da culpa (que passam pela opção consciente do sujeito) e a configuração do direito penal actual.

A teoria de Alexander/Kerzan enferma de duas espécies diferentes de fragilidades. Uma de ordem prática (não constituindo, portanto, uma objecção suficiente para invalidar a teoria em si, mas não deixando por isso de ter alguma relevância) e outra de ordem empírica e teórica.

Punir as pessoas com base apenas nos riscos que elas imaginam criar e abstraindo dos riscos objectivos (que os autores recusam ter existência objectiva) e do resultado provocado (ou não), comprometeria seriamente o efeito preventivo do direito penal. Se tomarmos como um obstáculo inultrapassável o facto de o agente não se ter apercebido do perigo – sem atribuir relevância ao facto de que ele poderia ter-se prevenido, antecipadamente, contra distracções ou esquecimentos - acabaremos por ter de admitir que, em cada situação, o agente actuou como actuou porque… não poderia ter actuado de outro modo. Sem efeito dissuasor, restará ao direito penal exclusivamente a via da retribuição – o que não corresponde, como se sabe, ao paradigma vigente no nosso país nem na maior parte dos Estados de direito. Independentemente do pendor mais ou menos retributivo que se queira atribuir ao sistema penal, é hoje reconhecido que o direito penal tem (como função principal ou pelo menos concomitante) uma vocação de actuar, cuja efectividade condiciona a sua legitimidade.

Westen chama a atenção para outra consequência negativa da abordagem proposta por Alexander/Kerzan. Punir apenas com base no que o agente pensa ter feito levaria a um direito penal extraordinariamente “invasivo”, no âmbito do qual a comunidade veria serem punidos actos

43 reconhecidamente inócuos, enquanto, por outro lado, o direito não daria relevância a resultados lesivos57.

Uma outra dificuldade prática que pode ser suscitada refere-se à possibilidade de determinar a extensão e conteúdo do conhecimento do agente. Se a responsabilidade deste se baseia na sua perspectiva pessoal, inteiramente subjectiva, como aceder a essa vivência interior? É sabido por todos, sendo quase ocioso repeti-lo: o nosso conhecimento do Outro é sempre – necessariamente – mediatizado. Não temos acesso directo ao real, só o assimilamos através de modelos e símbolos adquiridos que servem de descodificadores dos “sinais” apercebidos. Logo, para aferir do conhecimento e atitude do agente, teremos de captar esses sinais e interpretá- los através de um filtro que sirva de termo de comparação e lhes confira um sentido. Que esse “filtro” não seja o homem médio não implica que possamos dispensar um outro em substituição. Questiona-se então como será possível, na óptica de Alexander/Kerzan, conhecer a perspectiva do agente que precedeu (e determinou) a sua acção. Embora este seja um problema recorrente em direito penal, assume na construção proposta pelos autores uma importância acrescida, na medida em que os aspectos subjectivos são extremados ao ponto de relegarem tudo o resto para segundo plano.

Por fim – e esta crítica será talvez a que mais compromete a tese defendida em Crime and Cupability – constata-se que Alexander/Kerzan centram a sua concepção de culpa numa distinção entre estados psicológicos formulada com base em categorias tradicionais que a ciência tem vindo progressivamente a infirmar. Veja-se, por exemplo, a bipartição entre agir “acidentalmente” e agir “propositadamente”58 que contrapõem à abordagem

57WESTEN (2010) p. 404. Westen desenvolve em seguida uma demonstração da relevância normativa do resultado, com base naquilo que podemos considerar argumentos de prevenção geral positiva – Ibidem p. 405-410.

44 feita por Susan Bandes: o mecanismo de decisão descrito por esta autora inscreve-se, todavia, num registo completamente diferente que passa ao lado daquela bipartição e teria, portanto, de ser contraditado com outra ordem de argumentos.

Bandes refere os conhecimentos científicos recentes para concluir que não é correcto contrapor consciência a inconsciência, como realidades estanques, uma vez que a consciência consiste num espectro e não numa série de estados delineados com exactidão59.

Pode hoje dizer-se que há um consenso a nível científico no sentido de pôr em causa a dicotomia tradicional. Pelo contrário, é cada vez mais evidente que os vários níveis de consciência interagem entre si e consistem numa gradação60.

E pode mesmo afirmar-se que a maior parte das decisões são tomadas com a participação de níveis fora da consciência reflexiva, quando não totalmente fora dela61.

O dilema com que se debatem Alexander/Kerzan (e que tem atormentado muitos outros autores) estará assim em vias de ser ultrapassado pelos contributos da neurologia e da psicologia.

Será esta visão do ser humano redutora da nossa concepção de liberdade? Remeterá as nossas opções para níveis inacessíveis à consciência reflexiva e, portanto, fora do controlo consciente? Como veremos, o processo de decisão é bem mais complexo.

59 BANDES (2010)p. 438.

60 Uma “escala de intensidade”, nas palavras de Damásio – cf. DAMÁSIO (2010) p. 211 ss. 61 Sobre este ponto, cf. o Capítulo 6 da presente dissertação.

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