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A ficção da negligência inconsciente

A ACÇÃO COMO OPÇÃO O mito da negligência inconsciente

6.3 A ficção da negligência inconsciente

Podemos concluir que, nos casos de negligência inconsciente, ao contrário do que geralmente se afirma, há um momento de ponderação da realidade e de decisão sobre a acção?

Num artigo publicado em 2006 na Newsletter of the European Working

Group,311, “Multicriterio Aid for Decisions”, Slovic estabelece um quadro comparativo dos sistemas analítico e experiencial do pensamento, que aqui se reproduz:

Sistema 1 Sistema experiencial

Sistema 2 Sistema analítico Afectivo: orientado pelo

prazer/dor

Lógico: orientado pela razão Conexões por associação Conexões por avaliação lógica Conhecimento mediado por

sensações provenientes de experiências anteriores

Conhecimento mediado por avaliação consciente dos eventos Representa a realidade através de

imagens, metáforas e narrativas

Representa a realidade através de símbolos abstractos, palavras e números Processamento mais rápido:

orientado para a acção imediata

Processamento mais lento:

orientado para a acção retardada Válido por auto-demonstração:

“experienciar é acreditar”

Requer justificação através da lógica e da comprovação

312

311 Série 3, n.º 13, Primavera de 2006, acessível em www.inescc.pt/~ewgmcda/op.slovic.pdf. 312

System 1

Experiential System

System 2 Analytic System Affective: pleasure-pain oriented Logical: reason oriented

(what is sensible)

Connections by association Connections by logical assessment Behavior mediated by feelings

from past experiences

Behavior mediated by conscious appraisal of events

181 Depois de demonstrar com alguns estudos efectuados a afirmação de que os dois sistemas são interactivos, Slovic, partindo da construção de Kahnemann segundo a qual é o sistema experiencial (Sistema 1) que controla as decisões a não ser quando modificado ou ultrapassado pelas operações do sistema analítico (Sistema 2) 313, conclui que os erros do julgamento intuitivo traduzem o fracasso de ambos os sistemas (na medida em que o Sistema 1 origina o erro e o Sistema 2 falha na detecção e correcção do mesmo).

Esta interdependência – que é concordante com a minha posição sobre a negligência inconsciente, ao recusar a sua a- -racionalidade – pode ter consequências profundas a nível de política criminal, pois leva a que seja possível influenciar o comportamento dos agentes, quer actuando sobre as bases do seu Sistema 1 quer através do reforço do seu Sistema 2.

Como referi, Slovic partiu das conclusões de Kahnemann; este último enunciou na sua Prize Lecture, em Dezembro de 2002, os traços essenciais da função cognitiva revelados por um estudo de décadas. Haverá duas formas de função cognitiva: a intuitiva – na qual os julgamentos e decisões são feitos de modo rápido e automático - e uma forma controlada, que é reflexiva e lenta. A intuição ocupa uma posição intermédia entre as operações automáticas da percepção e as operações deliberadas e racionais. Temos, portanto, dois sistemas operativos, o intuitivo e o racional, cujos contornos são actualmente mais ou menos consensuais entre os psicólogos,

Encodes reality in concrete images, metaphors and narratives

Encodes reality in abstract symbols, words, and numbers

More rapid processing: oriented toward immediate action

Slower processing: oriented toward delayed action

Self-evidently valid: “experiencing is believing”

Requires justification via logic and evidence

182 correspondendo, grosso modo, ao quadro que reproduzimos supra. O julgamento intuitivo utiliza conceitos e percepções e pode ser traduzido em palavras, sendo que este julgamento, desenvolvido no Sistema 1, é aprovado, pelo menos passivamente, pelo Sistema 2 – e aqui reside a principal inovação trazida por Kahnemann.

Se os pensamentos intuitivos surgem, inicialmente, de forma espontânea, por que são alguns acessíveis à consciência e outros não?

A própria percepção é selectiva, “o mestre de xadrez não vê o mesmo tabuleiro que o principiante”314. Este fenómeno alerta para o facto de que a acessibilidade do real é influenciada por factores afectivos e endógenos mas, se o indivíduo estiver motivado, pode alterar a acessibilidade, através de um acto de vontade. Segundo Kahnemann, a percepção é uma escolha - percepcionamos o que escolhemos, mesmo que não tenhamos disso consciência. Esta conclusão coincide com a perspectiva de Gerry Klein, cujos estudos demonstraram que os indivíduos com larga experiência em determinada actividade, e trabalhando sob pressão, raramente têm de escolher entre várias alternativas de opção porque, na maioria dos casos, apenas uma opção lhes ocorre – as restantes são rejeitadas antes mesmo de emergirem na consciência315.

O controlo exercido pelo Sistema 2 sobre o Sistema 1 é de molde a permitir a conclusão, avançada por Kahnemann, de que o Sistema 2 está envolvido em todas as acções voluntárias – incluindo aquelas que são evidentemente expressão de julgamentos intuitivos, originados no Sistema 1. Os estudos realizados nos últimos anos demonstram que a eficácia do

314 KAHNEMANN (2003) p. 700.

315 Trata-se do conhecido método Recognition Primed Decision Model (RPM.). Apresentado em 1989 por Gerry Klein, R. Calderwood e A. Clinton-Cirocco, e inspirado nos trabalhos precursores do primeiro, descreve o processo através do qual os decisores podem identificar uma opção correcta numa primeira abordagem, aparentemente sem reflexão e de modo intuitivo. Abordaremos o trabalho de Klein mais à frente. Sobre as origens do método, cf. ROSS et al (2004) p. 6 ss.

183 Sistema 2 é prejudicada pelo envolvimento simultâneo em outras tarefas cognitivas, pela hora do dia e pela disposição do indivíduo. Porém, o que varia é apenas o grau de controlo, sendo as “conclusões” do Sistema 1 sempre filtradas pelo Sistema 2, que nunca perde o poder de inibir a passagem à acção.

Temos, assim, que as decisões, no dia-a-dia, resultam da actividade do Sistema 1, surgindo rapidamente e apresentando-se como intuitivas. Contudo, podem sempre ser modificadas ou ponderadas pelo Sistema 2316, o que torna o indivíduo, para efeitos penais, plenamente responsável por todas as suas acções – mesmo por aquelas que, aparentemente, ele não controlou, mas que foram passíveis de controlo e alteração.

Aliás, mesmo no que toca ao dolo, poderemos questionar se estará sempre presente uma reflexão (consciente) prévia. Jakobs defende que não é clara a vinculação do dolo a um grau mínimo de consciência, v.g. no caso de factos cometidos “num arrebatamento” e nas acções de curto-circuito. O problema da falta de consciência (ou co-consciência) não seria assim específico da negligência inconsciente, pois se verifica também em muitas situações de dolo317. Segundo Jakobs, pode mesmo afirmar-se que “a

contrariedade ao cuidado de um comportamento é tão independente da cognoscibilidade da proibição como o dolo”318.

Para Stratenwerth, mesmo a acção orientada inconscientemente é, ainda assim, orientada (segundo um processo que podia ser consciente) e deve, portanto, ser tratada como acção final e penalmente relevante319.

316 Cf. KAHNEMANN (2003) p. 716. 317 KÖHLER (1982) p. 172 ss. e 324. 318 JAKOBS (1997) p. 189.

319 STRATENWERTH (2000) p. 100. Defendendo a existência de uma “finalidade inconsciente” (unbewusste Finalität) e afirmando que os automatismos não constituem dificuldade para o pensamento da acção final, STRATENWERTH (1974) p. 289, 294 e passim.

184 Outro aspecto a ter em conta será a longa lista de enviesamentos que podem influenciar os julgamentos feitos pelo indivíduo. Matéria de estudo nas últimas décadas, integrando a vasta área da racionalidade limitada, estes desvios, inerentes a todo o raciocínio humano, em nada afectam a conclusão exposta supra. Kahnemann chama a atenção para as várias formas de verificar o papel do Sistema 2 no controlo das ilusões cognitivas320 e de aferir dos factores que podem influenciar a eficácia desse controlo. O importante para a questão que aqui nos ocupa é o facto de o Sistema 2 actuar do mesmo modo em todos os indivíduos e, portanto, o efeito dos enviesamentos ser geral mas evitável – a permitir um padrão de exigência acessível, com maior ou menor esforço, a qualquer indivíduo.