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Críticas e contra-críticas

ANÁLISE ECONÓMICA DO DIREITO

3.4 Críticas e contra-críticas

Várias críticas têm sido aduzidas à perspectiva da negligência como uma ponderação de custos-benefícios, associada ao utilitarismo e princípio da eficiência económica.

Num extenso artigo publicado em 2002, Richard Wright acusa esta perspectiva de desprezar a ideia de justiça, em favor de uma ideia de

103 eficiência183 que, para mais, não corresponderia à forma de o homem médio avaliar da negligência. Duas objecções podem ser levantadas contra a posição de Wright.

Primeiro, em ponto algum Wright demonstra que o homem médio – ou o “reasonable man”, que a jurisprudência anglo-saxónica erige como padrão, em lugar do “average man” – não raciocina segundo as regras do

homo economicus. Quanto a esta questão, central no presente trabalho, remeto

para o capítulo 3, onde se conclui, precisamente, que o modelo de raciocínio dito económico corresponde a um padrão que pode, em certo sentido, ser considerado universal.

Em segundo lugar, não se vê por que há-de a análise económica contrapor-se ao ideal de justiça, como se se tratasse de dois objectivos incompatíveis. Pelo contrário, parece evidente que o direito traz ínsita uma dimensão utilitarista, na medida em que se legitima como instrumento de defesa dos interesses da comunidade.

Transposta para este âmbito a construção da análise de custo- -benefício, pode-se considerar que, no caso do direito penal, uma das “pessoas” cujos interesses entram na ponderação é a comunidade. O que há a contrapor é o interesse do sujeito versus o interesse da comunidade em manter-se segura mas, simultaneamente, sem exigir demasiada segurança: quer porque não lhe interessa bloquear toda a actividade (v.g. nos casos de riscos industriais, químicos, etc.) quer porque, também aqui, deve imperar o princípio da subsidiariedade.

Desde cedo, a perspectiva economicista se afirmou como incontornável para muitos autores, embora a alguns deles repugne que a

183 WRIGHT (2002) centrou as suas críticas nesta vertente, numa comunicação apresentada em 2001 na Notre Dame Law School em Novembro de 2001, e publicada posteriormente no

104 ponderação dos factores relevantes seja feita em termos puramente matemáticos184.

Uma ponderação dos interesses em jogo será sempre necessária para aferir da medida de cuidado que situa o limite a partir do qual haverá negligência do agente. Considerando que o cuidado exigido não será, por certo, todo o cuidado possível (i.e. que o possível não coincide com o exigível) pois, como se sabe, o risco zero é uma abstracção e não seria, mesmo que acessível, desejável, terá de se traçar a fronteira a partir da qual o risco não é já legalmente tolerável185.

Se se entender que a medida do cuidado médio – em cada caso concreto – não pode ser obtida estatisticamente, será necessário estabelecer a fórmula que permita alcançar uma medida-padrão, mediante a introdução dos valores [do caso concreto] no espaço de cada variável186.

Klevorick defende que, se para a análise económica do direito o sujeito é alguém racional, que avalia os custos e benefícios das suas decisões e opta em consonância, de acordo com as probabilidades estimadas, o input de informação (sobre os custos e respectivas probabilidades) pode ser afectado pela presença notória da estrutura aplicadora das sanções (v.g. a polícia), pela experiência pessoal e social, pelas notícias veiculadas pelos órgãos de comunicação, etc.187. Para além deste factor perturbador, na opinião de Klevorick a análise económica do direito encontra outras

184 SEAVEY (1927) p. 7-8.

185 Como acentua Militello, a “concretização da possibilidade ofensiva de uma actividade” só pode ser fonte de responsabilidade penal a partir de um certo nível de risco – MILITELLO (1988) p. 14. A fixação desse nível depende de vários factores, tolerando-se graus de risco variáveis consoante o contexto da acção, o número de alternativas, o interesse social da actividade, etc. O risco é uma entidade complexa que só pode ser descrita e analisada como tal; não há um ponto linear de risco proibido.

186 Tais valores são parcialmente flexíveis, mas incluem um limite que é fixado pela própria lei. Esta ideia, que será alvo de posterior desenvolvimento, aflora com frequência nas decisões judiciais, nomeadamente nos países de tradição anglo-saxónica, como resulta claro quer no Restatement of Torts de 1934, quer no Second Restatement of Torts de 1965.

105 limitações quando tenta construir um modelo abstracto aplicável a todas as situações concretas, desprezando as particularidades individuais na avaliação dos benefícios e custos. Por outro lado, critica a posição de Posner na medida em que esta não dá resposta à questão (crucial) de saber qual o fundamento para rotular alguns actos como crime e não outros, ou seja, rejeita a perspectiva neutra da análise económica do direito, quer no que respeita à política criminal, quer na medida em que abstrai das motivações profundas do agente188.

Duas críticas, que surgem recorrentemente, merecem comentário: a incapacidade da análise económica do direito para explicar por que são alguns actos definidos como crime (esses, e não outros), e a subjectividade inerente às avaliações individuais do “estado do mundo” no momento de fazer opções.

No primeiro caso, pode-se afirmar que não é, nem nunca pretendeu ser, o objectivo principal da teoria económica do crime dar resposta a essa questão. Curiosamente, é no campo da negligência que encontramos o enquadramento mais claro do problema e, de alguma forma, aí a teoria económica pode contribuir para uma solução válida: em termos de risco, o Estado “contabiliza” a gravidade do resultado potencial e a probabilidade de, naquelas circunstâncias, ele se verificar; depois, de acordo com os valores computados, decide o quantum que a sociedade pode suportar. Tudo se passa como na administração de uma companhia de seguros, que estima qual o prémio a exigir e, em certos casos, considera que simplesmente não é “saudável” para a empresa proceder ao seguro. Naturalmente, isto aplica-se apenas à determinação do ilícito típico; a teoria económica não tem como

188 Coleman comenta a este respeito, opondo-se à tese de Klevorick, que não há necessidade de penetrar a teoria do crime com valorações de ordem moral, bastando a constatação do facto mais que evidente que “por uma ou outra razão – geralmente vantagem pessoal” as pessoas nem sempre respeitam as normas – COLEMAN (1985) p. 322.

106 alvo todas as categorias da dogmática penal, e nomeadamente não interfere com os juízos de culpa.

Quanto à segunda objecção de Klevorick, ela é objecto de intenso estudo multidisciplinar, e será abordada no capítulo sobre a bounded

rationality. Diga-se apenas, por enquanto, que o dilema entre a construção de

um modelo (objectivo) que se pretende aplicável a situações em que os valores operacionais são subjectivos, se resolve, na minha opinião, introduzindo a subjectividade no modelo abstracto, tornando-o maleável o bastante para ser funcional em cada caso a que o apliquemos.

Por seu turno, reportando-se ao problema do justo enquadramento da sanção no modelo da análise económica do direito, Coleman189 coloca a seguinte interrogação: se a lei penal é apenas um mecanismo para induzir determinada transacção (aquela que “interessa” ao Direito) por que atribuir um papel (como sabemos, fundamental) à culpa? E por que impor sanções como a privação de liberdade (aqui, como alguma ironia, Coleman coloca a hipótese de, em vez de uma pena de prisão, se impor ao criminoso a obrigação de frequentar um curso de economia)?

Estas são objecções que facilmente acorrem à mente de quem avalia a perspectiva económica do direito penal e requerem, porque oportunas e recorrentes, resposta.

O objecto deste trabalho não é a aplicação da análise económica do direito à dogmática do direito penal em geral, e da negligência em particular, mas tão-só a construção do dever de cuidado como um elemento do tipo, e, logo aí, desligado precisamente das valorações da culpa. Todavia, ao “coisificar” o dever de cuidado (mais exactamente, ao quantificar o cuidado

exigido a que a lei se refere) não pretendo fazer um malabarismo

esteticamente atraente. Algumas consequências práticas hão-de decorrer

107 dessa construção teórica, e não pretendo abstrair delas, muito pelo contrário. Como se verá, essas consequências repercutir-se-ão nas políticas criminais a seguir, pelo que não se pode aqui considerar despiciendas as observações de Coleman.

Comecemos pela segunda.

A pena de prisão – o mesmo poderá ser dito em relação a qualquer outra pena – insere-se num modelo de transacção, impondo um custo acrescido e considerado necessário para contrabalançar valores de utilidade desproporcionados quando inseridos na matriz normativa. Não se pode esquecer que, sendo parte da matriz preenchida com valores impostos ao cidadão e calculados de acordo com os limites socialmente tolerados190, todos os “desvios” que venham a verificar-se corresponderão a valorações disfuncionais introduzidas na parte da matriz que é deixada “em aberto”. No caso, por exemplo, de um indivíduo que excede a velocidade permitida e atropela mortalmente a vítima, é seguro que:

a) ou o indivíduo tem um interesse desmesurado em exceder a velocidade (e vamos agora abstrair de motivações “aceitáveis” como as determinadas pela inimputabilidade, o erro não censurável ou qualquer causa de exculpação), ou

b) desconsidera a vida humana, ou

c) é incapaz de atribuir um valor razoável à probabilidade de

verificação do resultado lesivo, dentro da margem de variação permitida - considerando que, inevitavelmente, estamos sempre perante probabilidades subjectivas, mas que as variações destas, de indivíduo para indivíduo, não são infinitas.

Perante uma situação como esta, o legislador, dentro de uma lógica económica, se quiser concretizar a “transacção”, só tem duas hipóteses: ou

108 aumenta o custo de não obedecer aos preceitos legais, ou aumenta o incentivo para obedecer (oferecendo recompensas periódicas a quem não tenha cometido qualquer violação da lei).

Nada mais conforme com a análise económica do direito, portanto, do que impor sanções, sejam elas a prisão ou outras quaisquer. Pode defender-se que, de acordo com esta perspectiva, quanto mais dura fosse a sanção, maior o seu poder dissuasor, levando a um direito penal “terrorista”. Adiantando desde já que tal não se verifica, deixamos para mais adiante a explicação do porquê.

Quanto ao curso de economia ironicamente sugerido, porque não? Talvez em alguns casos fosse útil ensinar técnicas de decisão, incutir heurísticas que permitissem uma mais correcta “ressocialização”. Seria, no fundo, reforçar a aprendizagem empírica a que o indivíduo é sujeito, com as correspondentes ferramentas e enquadramento teórico191.

A análise económica do direito, como já vimos, tem como peça basilar a ideia de homo economicus, ou seja, um sujeito que actua de acordo com os seus interesses, no sentido de alcançar o máximo de benefícios (subjectivamente determinados) com o mínimo de custos. O indivíduo escolhe os seus objectivos, de acordo com uma hierarquia estabelecida por ele, e age de forma a maximizar as probabilidades de os alcançar com um aproveitamento óptimo dos recursos disponíveis. Esta concepção linear revelou-se, na prática, eivada de incongruências, que vieram demonstrar ou

a) que não corresponde à realidade dos indivíduos ou b) que o processo é

muito mais complexo, englobando condicionantes e desvios inicialmente não considerados.

191 Para alguns autores, é esta, primordialmente, a função das normas sociais, através das quais os indivíduos interiorizam respostas que se revelaram já socialmente adequadas; e este processo terá a vantagem de facilitar as decisões que os indivíduos são constantemente solicitados a tomar, ainda que tenha o perigo de induzir um exagerado conformismo – cf. BOYD/RICHERSON (2001) p. 283 ss.

109 Outra objecção levantada à concepção do homo economicus é a de que ignora as influências e condicionantes sociais a que o indivíduo está sujeito. Mas esta crítica não me parece ter fundamento, na medida em que o homo

economicus não é uma visão totalizante do indivíduo, não pretende “explicá-

lo” em todas as suas facetas, mas apenas descrever o seu intrínseco processo de decisão. Nomeadamente, ao afirmar que esse processo é orientado para a prossecução de preferências, não discute como são formadas as preferências – o que deixa terreno livre para o homo sociologicus, assim como para muitas outras hipóteses de explicação.

Por outro lado, não deve entender-se a ideia de custo de modo estritamente financeiro. O custo considerado na análise económica é o custo de oportunidade – aquilo de que se prescinde para obter o que se pretende – e, tal como os objectivos humanos não são necessariamente monetários, assim também o respectivo custo de oportunidade (o que não significa que não seja passível de expressão monetária).

Costuma referir-se, como um marco importante nas origens da análise económica do direito, a decisão do juiz Learned Hand no caso United

States v. Carroll Towing Co, em 1944, a que já fizemos referência.

Não se trata ainda de uma análise custo-benefício, característica da análise económica, mas alerta para elementos determinantes e atribui-lhes já uma ponderação relacionada com cálculos probabilísticos192.

A decisão do juiz Hand incidiu sobre um acidente entre dois navios –

Anna C. e Carrol - sendo que a carga do Anna C. era propriedade dos Estados

Unidos e se perdeu completamente. Com vista a atribuir as responsabilidades pelos prejuízos emergentes, o juiz Learned Hand considerou que:

192 Verifica-se ainda, como seria de esperar, um certo sincretismo entre a dimensão objectiva e os aspectos relacionados com a culpa, que só algumas décadas mais tarde seria clarificado.

110

Dado que em determinadas circunstâncias, qualquer navio pode soltar-se das amarras, e dado que, uma vez que tal aconteça, esse navio se torna uma ameaça para o meio envolvente, o dever do proprietário, tal como noutras situações semelhantes, de compensar os danos que daí possam resultar, é uma equação resultante de três variáveis: (1) a probabilidade de o navio se soltar; (2) a gravidade dos danos causados, se tal acontecer; (3) o custo das medidas de precaução adequadas. Talvez esta noção se torne mais evidente, se a colocarmos em termos algébricos: designando a probabilidade por P; os danos por D; e o custo por C; a responsabilidade depende de C ser ou não menor que D multiplicado por P: ou seja, quando C <PD193.

O problema era mais complexo do que a apreciação simples sobre deveres de cuidado, uma vez que envolvia questões de distribuição dos contributos causais para o resultado. Mas a decisão assumiu grande importância na medida em que introduziu critérios mensuráveis, matemáticos, na avaliação da responsabilidade e uma objectivação da mesma em ordem a quantificar a análise; é também importante por se tratar de um embrião da aplicação de um modelo objectivo para medir a “negligência”.

A Hand Rule, devido ao facto de se reportar apenas a custos monetários, não entra em linha de conta com o sujeito, nem mesmo como

homo economicus: a regra é-lhe imposta, sem exigir dele uma ponderação, uma

vez que os valores de B, L e P (designação original)194 são fixados e impostos pelo tribunal – como se existissem por si, coisas que se podem medir, meras quantidades.

193 Since there are occasions when every vessel will break from her moorings, and since, if she does, she

becomes a menace to those about her; the owner’s duty, as in other similar situations, to provide against resulting injuries is a function of three variables: (1) The probability that she will break away; (2) the gravity of the resulting injury, if she does; (3) the burden of adequate precautions. Possibly it serves to bring this notion into relief to state it in algebraic terms: if the probability be called P; the injury, L; and the burden, B; liability depends upon whether B is less than L multiplied by P: i.e., whether B < PL.

194 Sendo P = probability; L = loss; B = burden. Ou seja: P = probabilidade; L = dano; B = custo (das precauções).

111 Esta fórmula pode também ser representada graficamente do seguinte modo, como faz POSNER195, o que permitirá compreender melhor de que modo o legislador utiliza o conceito de “dever de cuidado” como fronteira entre o risco permitido e o risco não admitido pelo Direito196.

Voltaremos a esta questão mais adiante, analisando as potencialidades desta representação para a construção da negligência.