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O SUJEITO COMO OPERADOR RACIONAL

4.3 Desvios e limites

Desde que, em 1956, Simon afirmou que a racionalidade ideal da teoria económica não corresponde ao modelo real do pensamento, foram já estudados e alvo de experiências inúmeros factores que distorcem o processo de decisão.

Refira-se, a título de exemplo – que pode ser considerado particularmente relevante no âmbito da negligência - o efeito de negação provocado pela imaginação de acontecimentos especialmente perturbadores. A partir de um dado limiar, a perspectiva de uma consequência

127 extremamente negativa não parece ter qualquer influência na estimativa da probabilidade da sua verificação223 - o que poderá explicar por que correm algumas pessoas riscos elevados que deveriam, face à probabilidade de concretização e gravidade do resultado previsível, ser evitados a todo o custo.

A valência do resultado previsível influencia também a estimativa das probabilidades: numerosos estudos têm demonstrado que os resultados positivos são geralmente considerados como mais prováveis do que os resultados negativos224. Este fenómeno poderá também influenciar a gestão de riscos, levando a subestimar a probabilidade de verificação de um dano em consequência da conduta adoptada.

São numerosos os enviesamentos (biases) identificados e estudados, não havendo necessidade de os descrever e analisar aqui exaustivamente225. Limitar-me-ei a referir alguns dos mais comuns e que são susceptíveis de afectar o julgamento que o indivíduo faz sobre os riscos corridos e eventuais consequências226. Alguns destes enviesamentos afectam particularmente a avaliação das probabilidades, outros o processamento dos dados reunidos, etc. Porque, em qualquer caso, o resultado pode ser uma incorrecta gestão da situação de risco, não estabelecerei uma distinção formal entre eles ao enumerar alguns dos que mais frequentemente se repercutem na atitude do sujeito face ao cuidado objectivamente devido.

223 PLOUS (1993) p. 125. 224 Cf. PLOUS (1993) p. 134 ss.

225 Uma questão que se pode colocar e que reveste enorme relevância para a problemática da negligência é a de saber se também as pessoas colectivas estão sujeitas aos mesmos desvios e limitações na apreciação e processamento da informação, que têm sido detectados a nível dos agentes individuais. Por agora, não há ainda elementos que nos permitam tirar conclusões definitivas, mas os estudos efectuados parecem indicar uma resposta afirmativa (pelo menos no que toca a alguns dos enviesamentos) – cf. sobre esta matéria, com referência a vários outros autores, GUTHRIE (2003).

226 Para uma análise centrada na perspectiva da psicologia cognitiva, v. NOLL/KRIER (1990) p. 749 ss.

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- Heurística da representatividade

Tversky e Kahnemann testaram a resposta das pessoas ao seguinte problema:

Houve um atropelamento e fuga, à noite, envolvendo um táxi. Na cidade, há duas companhias de táxis: a Verde e a Azul. Sabendo que:

- 85% dos táxis da cidade são verdes e 15% são azuis;

- uma testemunha identificou o táxi como sendo azul; o tribunal testou a fiabilidade da testemunha, em condições idênticas às do acidente, e concluiu que a testemunha identificava correctamente a cor dos táxis em 80% dos casos, falhando em 20%.

Qual a probabilidade de o táxi envolvido no acidente ser azul?

A maioria das pessoas questionadas estima que a probabilidade de o táxi ser azul é maior do que a de ser verde (desde > 50% a 80%) – quando, na realidade, acontece precisamente o contrário. Aplicando a fórmula de Bayes, conclui-se que a probabilidade de o táxi ser azul é de 0,41. Mas as pessoas tendem a desprezar os dados anteriores e a valorizar o facto de haver uma testemunha (dai a referência frequente a 80% - percentagem de casos em que a testemunha identifica correctamente a cor dos táxis à noite).

Esta heurística leva a que o sujeito insira os dados em categorias familiares, a que não correspondem exactamente mas com as quais têm similitudes consideradas relevantes, nomeadamente a nível do aspecto que mais se salienta (subjectivamente) na origem desses dados. A falácia original consiste em proceder como se a analogia existente em certos aspectos fosse extensível a todos os restantes.

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- Falácia do jogador

É sabido por todos que a probabilidade de uma moeda atirada ao ar cair cara ou coroa é de 50%. Muitas pessoas têm tendência para pensar que, se uma moeda foi atirada, por exemplo, 5 vezes e caiu cara em todas elas, ao ser lançada uma sexta vez a probabilidade de cair cara é superior à de cair coroa pela sexta vez consecutiva. Na realidade, a moeda não tem memória (como é evidente), e a probabilidade, nessa sexta vez, mantém-se exactamente nos 50%.

- Heurística da disponibilidade

Como afirma Baron, “quando alguma coisa não está representada na nossa análise, tendemos a não pensar nela”227. O contrário é igualmente verdade: aquilo que está representado impor-se-á ao nosso pensamento, com tanta mais insistência quanto mais vívida for a representação. Temos, assim, que situações cuja presença é acessível e recorrente influenciarão o indivíduo levando-o a sobrestimar (ou subestimar) os riscos inerentes a dada situação. Naturalmente, os casos análogos que o indivíduo desconhece (ou que se apagaram da sua memória) não serão tidos em consideração. A disponibilidade depende, assim, da experiência de vida do sujeito. Mas não só: estudos efectuados demonstram que a disposição do sujeito pode afectar a disponibilidade dos exemplos a que este recorre - levando-o a evocar uns e “esquecer” outros. A consideração desta heurística pode ter grande relevância a nível de política criminal: a difusão de certos exemplos (acidentes, por exemplo) pode repercutir-se na disponibilidade dos elementos considerados pelo sujeito na análise que faz do risco de determinada situação. A prática seguida em alguns países de deixar em evidência, na berma das estradas, automóveis violentamente danificados em

130 acidentes de viação insere-se na convicção de que estes provoquem nos automobilistas um impacto visual que os leve a moderar a velocidade e respeitar as regras de condução. Como referem Slovic, Kunreuther e White, qualquer factor que torne um evento intensamente memorável ou imaginável contribui consideravelmente para aumentar a percepção do risco de verificação desse evento228.

- Lei dos pequenos números

Verifica-se uma tendência generalizada (observada mesmo entre cientistas229) para extrair conclusões de uma amostra muito reduzida, sem considerar que uma tal amostra não é representativa da “população” em causa. A partir de constatações (retiradas da sua experiência pessoal ou de relatos ouvidos) as pessoas generalizam para todos os elementos pertencentes a determinada categoria (como é evidente, a formação das categorias é também ela uma construção). Assim, por exemplo, se A, lisboeta, tem um litígio de longa data com um vizinho e este é croata, não será improvável ouvirmos A afirmar convictamente que “todos os croatas são rudes e antipáticos”. Do mesmo modo, se, em cinco crianças numa sala, quatro preferem o brinquedo A ao brinquedo B, o observador pode ser tentado a concluir que as crianças (em geral) preferem o brinquedo A, numa percentagem de 80% - o que não corresponderá necessariamente à realidade230.

Kahneman identifica 4 características básicas que acompanham este enviesamento231:

228 SLOVIC/ KUNREUTHER/ WHITE (2000) p. 15. 229 Cf. COHEN (1969).

230 Exemplo adaptado de KAHNEMAN/SLOVIC/TVERSKY (1982). 231 KAHNEMAN/SLOVIC/TVERSKY (1982) p. 29.

131 1 - o indivíduo baseia-se numa pequena amostra sem ter em conta que as probabilidades contra a sua conclusão são (irrazoavelmente) altas;

2 - o indivíduo confia incorrectamente nas observações e na estabilidade do padrão observado;

3 - perante repetições, o indivíduo tem expectativas irrazoavelmente elevadas de que elas confirmarão as conclusões anteriores;

4 - o indivíduo raramente considera os desvios observados, pois tende a encontrar uma “explicação” para todas as discrepâncias.

É fácil compreender que poucos enviesamentos estarão tão ligados à violação do dever de cuidado como a lei dos pequenos números. As características enunciadas supra correspondem, por exemplo, ao retrato típico do “condutor fora de mão na auto-estrada” ou a qualquer pessoa que, baseada na experiência anterior, reitera comportamentos negligentes, confiante de que, mais uma vez, eles não terão consequências desastrosas.

- Ancoragem

Kahneman e Tversky realizaram a seguinte experiência: pediram aos estudantes para calcular qual a percentagem de países africanos que faziam parte das Nações Unidas; à data (1972) eram 35%. Antes de responderem, era pedido aos sujeitos, divididos em dois grupos, para dizer se essa percentagem seria superior ou inferior a 10% (grupo A, por ex.) ou superior ou inferior a 65% (grupo B). Estes valores foram escolhidos aleatoriamente.

Os elementos do grupo que designámos por A calcularam, em média, uma percentagem de 25%; a média dos valores finais calculados pelos sujeitos pertencentes ao grupo B foi 45%. Ou seja, os indivíduos foram influenciados no seu cálculo pelo valor que lhes foi referido inicialmente, no qual a sua atenção permaneceu “ancorada”. Experiências posteriores

132 demonstram que este valor inicial não só serve como ponto de partida para a estimativa como influencia a apreciação de toda a informação posterior232.

A ancoragem é um enviesamento extremamente difícil de ultrapassar. A “primeira impressão” torna-se incontornável, condicionando todo o subsequente processo de raciocínio e de escolha (por isso pode-se entender aqui impressão no sentido gráfico do termo; há, aliás, quem defenda que este fenómeno está relacionado com modelos computacionais inscritos a nível neuronal233). Anulá-la torna-se, assim, uma tarefa semelhante à de desformatar e voltar a formatar. Este é o enviesamento mais próximo daquilo a que correntemente designamos por preconceito – na verdade, pode tornar-se mesmo uma predisposição.

No plano do direito, tem-se confirmado que, por exemplo, o valor da indemnização pedida inicialmente influencia o valor atribuído a final; do mesmo modo, a pena pedida pelo Ministério Público funciona frequentemente como ancoramento para a pena fixada pelo juiz.

- Endowement effect

Instadas a atribuir valores monetários a objectos, as pessoas valorizam mais aqueles que lhes pertencem – ou seja, o valor atribuído ao objecto [para prescindir dele] não é igual ao valor atribuído ao mesmo objecto [para o adquirir]. O primeiro autor a identificar este enviesamento foi Richard Thaler234. Muitos exemplos podem ser dados para comprovar este enviesamento, resultando de numerosas experiências, das quais a mais conhecida será talvez a das canecas de café235: os intervenientes na experiência foram divididos em três grupos – Buyers, Choosers e Sellers. A este

232 HASTIE/DAWES (2001) p.102.

233 HASTIE/DAWES (2001) p. 58 ss., v.g. p. 62. 234 THALER (1980).

133 último grupo foi atribuída uma caneca (cujo preço, na loja em frente, era de 6 dólares). Foi então testado:

i) por quanto estavam os Sellers dispostos a vender a caneca aos

Buyers;

ii) quanto estavam os Buyers dispostos a pagar pela caneca;

iii) aos Choosers foi dado a escolher receberem uma caneca igual ou

uma soma em dinheiro.

Os valores (médios) atribuídos à caneca por cada um dos grupos foram os seguintes: Buyers: 2,87; Choosers: 3,12; Sellers: 7,12236. O elevado valor atribuído pelos Sellers justifica-se pelo endowment effect. Este mesmo fenómeno é referido por Kahneman e Tversky como resultando do que designam por “loss aversion” e foi também referenciado por Samuelson e Zeckhauser com a designação de “status quo bias”237.

Ao contrário dos enviesamentos ligados ao cálculo de probabilidades, o endowment não está directamente relacionado com o (in)cumprimento do dever de cuidado. Se o referimos aqui, é porque ilustra de forma clara um dos pontos-chave de toda a Prospect Theory: as avaliações que os indivíduos fazem dependem do seu Ponto de Referência (reference

point), e nisso residirá a explicação para muitas das aparentes inconsistências

dos seus raciocínios.

O fenómeno do reference point pode apresentar uma amplitude surpreendente. Baron refere alguns exemplos ilustrativos de como as reacções podem ser afectadas por este enviesamento. Vejamos dois deles:

a) “Paul detém acções da Companhia A. No ano passado considerou a hipótese de as trocar por acções da Companhia B, mas desistiu da ideia; conclui agora que teria ganho 1200 dólares se o tivesse feito. George tinha

236 KAHNEMAN et al (1991) p. 196. 237 SAMUELSON/ZECKHAUSER (1988).

134 acções da Companhia B. No ano passado, trocou-as por acções da Companhia A; conclui agora que teria ganho 1200 dólares se tivesse mantido o seu stock na Companhia B”. Face a esta situação, a maioria das pessoas considera que George estará mais descontente do que Paul. A reacção difere por a comparação se estabelecer entre acções e omissões238.

b) “O Sr. C e o Sr. D deviam sair do mesmo aeroporto à mesma hora, em diferentes voos. Apanhados pelo trânsito, chegam ao aeroporto meia hora depois da hora prevista para o voo. O Sr. D é informado de que o seu avião partiu à hora marcada; o Sr. C é informado de que o seu voo se atrasou e partiu há apenas 5 minutos”. A maior parte das pessoas considera que o Sr. C terá ficado muito mais exasperado239. Aqui o factor determinante para a reacção das pessoas é o ponto de comparação (o que podia ter-se verificado).