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Um retrato da droga na imprensa escrita portuguesa

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Academic year: 2021

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UM RETRATO DA DROGA NA

IMPRENSA ESCRITA PORTUGUESA

Dissertação de Mestrado em Sociologia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Orientação do Professor Doutor António Teixeira Fernandes

FLUP

2003

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UM RETRATO DA DROGA NA

IMPRENSA ESCRITA PORTUGUESA

Dissertação de Mestrado em Sociologia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Orientação do Professor Doutor António Teixeira Fernandes

FLUP

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

A todos aqueles que ao longo da vida me souberam mostrar o caminho para a felicidade.

(4)

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltes, como estes pinheiros altos que em verde oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de todo num perpétuo movimenta. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base. fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventas. Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombia e Arlequim, passarela voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva alta-forno, geradora, cisão dû átomo, radar, uhra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

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Agradecimentos

Ao meu orientador Professor António Teixeira Fernandes pelo estímulo e parceria para a realização deste trabalho.

Aos meus colegas de trabalho, Dra. Sofia Almeida, Dra. Paula Paiva, Dra. Cristina Duarte e Dr. António Cavacas, a paciência e disponibilidade para comigo ao longo deste período que agora finda.

Aos meus pais, Adélia e Henrique, pela educação, atenção e carinho de todas as horas.

Ao Luís, meu marido, por todo o seu apoio, paciência e compreensão.

Às bibliotecas e outros organismos, que me concederam o acesso às suas fontes de informação bibliográfica e bases de dados, com especial relevo para as Bibliotecas Municipais do Porto e Ovar, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, da Universidade de Aveiro e do Instituto da Droga e Toxicodependência.

A todos os toxicodependentes, figuras anónimas, que comigo partilharam a sua história de vida, e que me deram parte da matéria prima exposta e concretizada ao longo deste trabalho.

A tese de mestrado agora concluída representa um sonho concretizado nesta etapa da minha vida. Segue-se a concretização de novos sonhos.

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Resumo

A presente tese de mestrado aborda a acção «pública» dos media sob um tema tão actual como é a droga. Observam-se diversas notícias da imprensa escrita portuguesa referente ao período compreendido entre Maio de 1999 e Maio de 2002. O objectivo principal prende-se com a necessidade de retratar a influência que este meio de comunicação de massa exerce na formação, difusão e transformação das representações sociais em torno do objecto social a «droga».

Com este propósito, desenvolveu-se uma grelha de suporte à constituição de uma base de dados, contendo os aspectos mais relevantes no campo médico, psicológico, social, cultural, económico, contextual e geográfico do fenómeno. O registo da informação recolhida desenvolve-se em torno de dois eixos: morfológico de imprensa (descrição física do texto nas suas linhas organizadoras) e de conteúdo (visa identificar os traços do texto passíveis de serem analisados). Houve ainda um contacto directo e real com os retratados da notícia - os toxicodependentes - de forma, a conhecer as representações sociais que estes fazem das leituras que empreendem acerca da sua condição.

Palavras-chave

Droga; Indivíduo; Desvio; Representações Sociais; Discurso social; Atitudes e Estereótipos; Construção Social; Comunicação Social; Imprensa.

(7)

ÍNDICE

Introdução 1

I Parte

A construção de uma problemática 5 Capítulo 1 -A «droga» como objecto de estudo 6

1.1 O sujeito e a «droga» 8 1.2 As drogas no mundo moderno 12

1.3 Terminologia relacionada com o uso das drogas 17

1.3.1 Tipos de drogas 17 1.3.2 Percurso do consumo 18 1.3.3 Tipos de consumidores 19

1.3.4 A dependência 19 1.3.5 Os modelos e tipos de prevenção da toxicodependência... 19

1.3.6 A nova política da droga 20 1.4 Breve apresentação do fenómeno da «droga» em Portugal 22

1.5 A construção - social da «droga» 25 1.6 O problema - social da «droga» e o desvio 30

Capítulo 2-A representação social 34 2.1 O discurso social e as suas componentes 40

2.2 As atitudes e os estereótipos 42 Capítulo 3 - A construção social da realidade 45

3.1 Os processos e os meios de comunicação 48 3.2 A comunicação de massas na sociedade moderna 53

(8)

3.4 A linguagem e cultura dos media na sociedade 65 3.5 As mensagens mediáticas e a produção de notícias 71

3.5.1 A estrutura da notícia: o «lead» e o corpo 77

3.5.2 Os tipos de notícias 77 3.5.3 A análise das notícias 78

II Parte

A investigação Empírica 82 Capítulo 4 - Metodologia 83 4.1 As hipóteses 83 4.2 Questões do método 84 4.3 As técnicas utilizadas 85 4.4 O procedimento -definição do corpus 88

4.5 Tratamento dos dados 91

III Parte

Os resultados 92 Capítulo 5 - A análise e interpretação dos resultados 93

5.1 Caracterização dos artigos analisados 93 5.2 Elementos de destaque informativo 97 5.3 Primeira abordagem empírica 103 5.4 As dimensões da droga 108 5.5 Um enfoque particular às notícias de cariz criminal e judicial 114

5.6 As variáveis e a sua importância 126

Capítulo 6 - A análise temática 132 6.1 Diferentes representações sociais do objecto «droga» segundo a

(9)

6.2 As representações sociais da «droga» segundo os consumidores de

substâncias ilícitas 138 6.2.1 Elementos de caracterização dos entrevistados 139

6.2.2 Perfis psicológicos dos entrevistados 144 6.2.3 A relação dos entrevistados com a imprensa escrita

nacional 153 6.2.4 Síntese analítica 160

Conclusão 168 Bibliografia 175 Anexos

Anexo 1 - Anexo metodológico

Anexo 2 - índice de quadros, gráficos e histogramas Anexo 3 - Anexo jurídico

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Anexo 1 Anexo Metodológico

• Quadro I. Tipologia dos comportamentos desviantes

• Quadro II. Constituição da amostra dos jornais pesquisados

• Quadro III. Grelha de observação da análise de conteúdo das diversas dimensões do fenómeno «droga»

• Quadro IV. Grelha de observação da análise de conteúdo da dimensão criminal e jurídica do fenómeno da «droga»

• Quadro V. Tratamento das notícias - variáveis introduzidas no programa estatístico SPSS 11.0

• Guião de Entrevista

• Figura 1.1 - Mapa do distrito de Aveiro, zona de residência dos entrevistados

• Quadro VI. Grelha de tratamento estatístico das entrevistas - variáveis introduzidas no programa estatístico SPSS 11.0

• Três textos jornalísticos que põem em evidência o muito ou pouco destaque informativo, relativo às drogas

• Análise temática de algumas noticias retiradas da imprensa escrita nacional

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Anexo 2

Quadros, Gráficos e Histogramas

1.1 - Número de artigos analisados no ano de 1999 nos diferentes jornais (%)

1.2 - Número de artigos analisados no ano de 2000 nos diferentes jornais (%)

1.3 - Número de artigos analisados no ano de 2001 nos diferentes jornais (%)

1.4 - Número de artigos analisados no primeiro semestre de 2002 nos diferentes jornais (%)

1.5 - Total de artigos analisados nos diferentes jornais (%) 11.1 - Área de título nos diferentes jornais (%)

11.2 - Dimensão dos caracteres do título nos diferentes jornais (%) 11.3 - Os elementos gráficos nos diferentes jornais (%)

11.4 - A dimensão do título nos diferentes jornais (%) 11.5 - A dimensão do artigo nos diferentes jornais (%) 11.6 - A primeira página nos diferentes jornais (%)

11.7 - O género jornalístico utilizado nos diferentes jornais (%) II 1.1 - As substâncias psicotrópicas mencionadas nos artigos analisados nos diferentes jornais (%)

111.2 - As dimensões do artigo consoante os jornais (%)

111.3 - A s instâncias abordadas nos artigos consoante o jornal (%) 111.4 - O teor da notícia nos artigos consoante o jornal (%)

111.5 - O conteúdo da notícia nos artigos consoante o jornal (%) 111.6 - Drogas agrupadas consoante o jornal (%)

(12)

111.8 - A dimensão médico / sanitária consoante o jornal, segundo a dimensão da título

111.9 - A dimensão criminal consoante o jornal, segundo a dimensão da título

111.10 - A dimensão jurídica consoante o jornal, segundo a dimensão da título

111.11 - A dimensão sócio - política consoante o jornal, segundo a dimensão da título

111.12 - A dimensão médico / sanitária consoante o jornal, segundo a primeira página

111.13 - A dimensão criminal consoante o jornal, segundo a primeira página

111.14 - A dimensão jurídica consoante o jornal, segundo a primeira página

111.15 - A dimensão sócio - política consoante o jornal, segundo a primeira página

111.16 - O conteúdo da notícia, consoante o jornal segundo a utilização da fotografias

111.17 - O conteúdo da notícia, consoante o jornal segundo a não utilização da fotografias

111.18 - O conteúdo da notícia, consoante o jornal segundo a utilização de quadros estatísticos

IV. 1 - Associação droga - crime por cada jornal (%) IV.2 - Actores do combate por cada jornal (%)

IV.3 - Os actores do tráfico por cada jornal (%)

IV.4 - Identificação dos actores do tráfico por cada jornal (%) IV.5 - Os actores do consumo por cada jornal (%)

IV.6 - Lugares do tráfico por cada jornal (%) IV.7 - Lugares de combate por cada jornal (%) IV:8 - Lugares do crime por cada jornal (%)

IV.9 - Os lugares do consumo por cada jornal (%) IV10 - Objectos do combate por cada jornal (%)

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IV. 11 - Objectos apreendidos por cada jornal (%) IV. 12 - Objectos do crime por cada jornal (%)

IV. 13 - Linguagem do mundo das drogas por cada jornal (%) IV. 14 - Males associados às drogas por cada jornal (%) IV. 15 - Locais de Portugal por cada jornal (%)

V.1 - Os significados / percepções dos inquiridos acerca das notícias nos media sobre o fenómeno da toxicodependência segundo o grau de habilitações literárias (%)

Histograma V. - Definição de um toxicodependente, segundo os inquiridos

V.2 - Ideias e projectos a implementar em matéria de «droga», segundo os inquiridos (%)

V.3 - Avaliação das mudanças introduzidas com a nova lei da

droga, segundo a idade do inquiridos (%)

Histograma V.4 - Ideias e projectos a implementar em matéria de droga, segundo os inquiridos

Histograma V. - Razões para o uso de substâncias segundo os inquiridos (%)

(14)

Anexo 3

Anexo Jurídico

Resolução do Conselho de Ministros n.°46/99, publicada em diário da República I Série - B, n.° 122 de 26 de Maio de 1999;

Lei n.° 30/2000, de 29 de Novembro - Define o regime jurídico aplicável ao

consumo dê estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica;

Decreto Lei n.°130 - A/2001, de 23 de Abril de 2001 - Estabelece a

organização, o processo e o regime de funcionamento da comissão para a dissuasão da toxicodependência, a que se refere o n.° 1 do artigo 5.° da Lei n.°30/2000, de 29 de Novembro, e regula outras matérias complementares.

(15)

Introdução Ao longo dos anos tem-se verificado um acréscimo da atenção pública sobre a questão da droga. Ocorre uma mediatização crescente de todos os acontecimentos que se relacionam com o fenómeno. A droga torna-se notícia diária da generalidade dos meios de comunicação social.

O papel dos media revela-se extraordinariamente importante, pelas opções temáticas e seu tratamento, cumprindo uma função de sinalização que lhes é atribuída. Definem os objectos de interesse público e até as opiniões a ter sobre eles. Por toda a parte, as pessoas habituaram-se a receber as notícias através dos media e a divertirem-se com elas. O consumo de jornais e de televisão têm-se desenvolvido de tal modo que é comum entre os cientistas sociais considerá-lo como um ritual social significativo.

O sensacionalismo e a necessidade de atrair audiências, o abordar «assuntos quentes», conjugados com imperativos económicos, pressões políticas, sociais e institucionais, são alguns dos factores motivacionais que contribuem para definir as tendências de conteúdo dos meios de comunicação e consequentemente as percepções e acções.

A tarefa desta tese, não é decidir se os media são benéficos ou prejudiciais, na difusão de informação a respeito do fenómeno das drogas, mas apreender e avaliar a sua função social, enquanto produtor de uma realidade social específica. Adianta-se a ideia de que os media reflectem de forma persistente, alterações decisivas no comportamento social e que, registando-as e expondo-as, participam na sua disseminação.

Tendo por base o pressuposto atrás referido, o presente trabalho de investigação tem como objectivos principais:- analisar qual o grau de importância que é dado à droga pelos diferentes órgãos da imprensa escrita nacional; - analisar a(s) realidade(s) produzida(s) pela imprensa escrita no que respeita à droga, e de que forma, esta influencia o público a partilhar determinadas "representações sociais"; - verificar se é ou não recorrente a utilização na imprensa escrita de imagens que mostram um «drogado», produtos ou substâncias, zonas de tráfico e consumos a céu aberto, de forma,

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a definir o que é que se pode mostrar sem gerar uma fascinação contraproducente; - conhecer quais as representações dos toxicodependentes acerca do fenómeno da droga, analisando as características inerentes aos seus percursos de vida e definindo segundo as suas visões pessoais, como este fenómeno social tem sido retratado na imprensa escrita nacional.

A tese encontra-se dividida em três grandes partes; a problemática teórica, a investigação empírica e os resultados.

A primeira parte da tese traduz as opções realizadas no campo da problemática teórica. Optou-se por construir um corpo teórico que fosse de encontro aos principais conceitos que constituem o enquadramento teórico de toda a investigação.

Neste sentido, o primeiro capítulo, faz referência ao «mundo da droga», objecto de estudo. Há uma caracterização pormenorizada do fenómeno, tanto em termos mundiais como nacionais, tendo por base uma bibliografia cientifica fundamentada. Expõem-se os diferentes tipos de drogas e os tipos de consumidores, as formas de dependência, os modelos e tipos de prevenção da toxicodependência. Faz-se igualmente, um resumo da política legislativa da droga, actualmente, em curso, em Portugal. Nomeadamente, no que toca à separação entre o consumo e o tráfico de estupefacientes (Lei 30/2000, de 29 de Novembro). Ao nível conceptual delimita-se a construção social do fenómeno e observa-se a temática do desvio social.

O segundo capítulo aborda a questão das representações sociais. Há inicialmente, um enquadramento teórico desta perspectiva social, por intermédio de alguns dos principais protagonistas da investigação sociológica. Paralelamente, lançam-se pistas gerais de como os media retractam o mundo das drogas. A imprensa defende a ideia de que ela constitui o espelho e reflexo da sociedade de que faz parte, se assim é, observam-se diferentes realidades sociais. Abordam-se também outros conceitos e definições associadas às representações sociais, como é o caso; das atitudes, dos estereótipos, do que se designa por discurso social e as suas componentes. Isto porque, o consumo de drogas é um dos comportamentos sociais mais referidos na actualidade, tendo-se tornado num objecto do discurso social a que não é possível fugir.

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No terceiro capítulo,, encontra-se a questão central do estudo, isto é, concretiza-se o plano teórico, o fio condutor do estudo: os media são não somente difusores da realidade social, mas e principalmente construtores dessa mesma realidade. Fundamenta-se esta ideia nas teorias de Berger e

Luhmann, seguindo-se uma caracterização da comunicação social e do papel

dos media na sociedade actual. Há ainda espaço para algumas questões de foro metodológico, tais como: procedimentos a seguir na análise das notícias; como observar a estrutura de uma notícia; e quais os diferentes tipos de notícias.

A investigação empírica, referente à segunda parte desta tese, inicia com o capítulo quarto. Aqui dá-se lugar à apresentação da metodologia seleccionada e às hipóteses consideradas. Estas últimas, assumem um papel de relevo neste capítulo. Ao longo das leituras realizadas e da condução da análise as hipóteses foram sofrendo constantes alterações, quer nos seus propósitos, quer na sua redacção, pelo que se concluiu, que num trabalho de investigação nunca nada é dado como certo, tudo se vai reconstruindo, por tentativa e erro. As técnicas e métodos seleccionados para definição do corpus da análise foram a análise de conteúdo e a entrevista semidirectiva. O procedimento da recolha de dados foi feito mediante uma grelha de análise de conteúdo e de um guião de entrevista.

No capítulo quinto e sexto, faz-se a observação e tratamento dos resultados. Trata-se da fase a que o investigador mais ambiciona chegar não só porque o espírito é curioso, mas porque é também nesta fase que alcançamos uma consciência efectiva do trabalho de investigação no seu todo. È também neste momento que o investigador se permite a interpretar e a evidenciar factos sociais relevantes.

A leitura atenta do relato da realidade feita pela imprensa escrita, aponta para pistas valiosas na busca de uma compreensão sociológica da realidade social. Este efeito pode parecer contraditório, mas na realidade ele é complementar, uma vez que não é mais possível separar a realidade da sua representação.

Assim, comparam-se dados, procuram-se pontos de convergência e de afastamento, de entre os jornais selecionados (jornal de Notícias, jornal

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Público, jornal Expresso) procurando não deixar escapar a representação jornalística do fenómeno das drogas, a forma e o conteúdo das notícias, meio

pelo qual a imprensa define, percebe e dá sentido a este fenómeno social. Por outro lado, através dos testemunhos dos que já viveram sob alçada da droga complementamos o nosso saber e reforçamos algumas das representações presentes no discurso legitimador dos media. No fundo, procura-se um outro meio para compreender a droga e os drogados. O que se reprova então aos toxicodependentes? Sobretudo, o "facto de se isolarem longe da realidade objectiva da comunidade", de "nada produzirem de verdadeiro ou real". Nisto se basearia a repressão legal, ao pretender "proteger a sociedade de tudo o que se associa à toxicodependência: a irresponsabilidade, o não trabalhar, a improdutividade, a delinquência, a doença e o desprezo social que acarreta e, de uma maneira geral, a própria destruição de laços sociais. Neste sentido, não se proíbe o prazer do toxicodependente, proíbe-se um prazer que, além de solitário e dessocializante, contamina o corpo social. Todavia, um drogado pode igualmente ser um indivíduo que se deixou apanhar pela massificação das drogas, que não aprendeu a cultura dos limites numa sociedade da aceleração.

Surgem no decorrer da investigação diversas questões inquietantes não apenas pela natureza do objecto de estudo, mas igualmente pelo grau de complexidade que lhe está associado. O papel e a relação da imprensa escrita, com a «droga» revelou-se importante, na medida em que permitiu descrever qual a "proposta de realidade" presente neste meio de comunicação social.

Por fim, na conclusão, retomam-se as hipóteses que orientaram todo o processo de pesquisa, sistematizando e relacionando os principais resultados obtidos e tecendo alguns comentários finais que pretendem ser uma porta de entrada a todo um conjunto de novas possibilidades de investigação nesta área social.

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I PARTE

A CONSTRUÇÃO DE UMA PROBLEMÁTICA

«Um objecto de investigação, por muito parcial e parcelar que seja, só

pode ser definido e construído em função de uma problemática teórica

que permita submeter a uma interrogação sistemática os aspectos da

realidade postos em relação pela questão que lhes é dirigida»

1

.

Pierre Bourdieu

1 BOURDIEU, Pierre, J.Cl. CHAMBOREDON et J.Cl. PASSERON, Le Métier de Sociologue, I, Paris,

(20)

CAPÍTULO 1

A droga como objecto de estudo

A presente tese de mestrado aborda a acção «pública» dos media sob um tema tão actual como é a droga. A forma como esta recorta os problemas e as hipóteses resulta, frequentemente, das definições que o "problema - droga" vai conhecendo nas práticas sociais ordinárias. Tais definições são decisivas na reacção social ao fenómeno: seja espontânea (rumor sobre os «drogados», que se cristaliza em certos momentos em acções de auto-defesa popular), seja normativo-racional (as estratégias de combate à droga, as formas de intervenção e de cuidados).

O discurso proferido pelos media, assume um papel fulcral na construção do problema da «droga». Trata-se de evidenciar, de por a descoberto, a ideia de que a comunicação social faz verdadeiras "propostas da realidade" sobre esta matéria. Pretende-se questionar ao longo deste trabalho de investigação, o tipo de realidade que os mass media constróem. Mais especificamente, que tipo de construção é tecida pela imprensa escrita.

Por outro lado, não nos devemos esquecer que tal como nos mais diversos temas da vida social, também aqui os actores sociais, são portadores de "representações", neste caso, acerca da «toxicodependência». Podem assim, partilhar opiniões e argumentos, tais como: os toxicodependentes são pessoas que não têm trabalho, provêem de famílias desagregadas, certos bairros são «antros» de droga, a trajectória de experiência com a droga inicia-se pelo consumo de drogas «leves», o ter certos amigos pode ser uma má influência no comportamento do jovem com a droga, ou que os agentes de autoridade se encontram ligados ao tráfico de droga, sendo por esse motivo que muita droga e dealers não são apreendidos. Por outro lado, estabelecem-se relações entre a criminalidade e a toxicodependência, em que os condenados por "crime de droga" têm vindo a aumentar (observação feita com base nas estatísticas dos serviços criminais). Há uma certa cultura quotidiana que integra a visão da droga como continuando no universo prisional. Estabelecem-se também

(21)

relações entre a toxicodependência e outros flagelos sociais, como por exemplo, a sida.

A experiência com as situações consideradas como de

«toxicodependência» só atinge directamente, em termos de vivência familiar ou

de rede próxima de relações sociais, parte da população portuguesa. A grande

maioria das pessoas só experiência esta questão, em grande medida, através

da actividade simbólica dos media. Isto é, «... em virtude da diferenciação e da

complexidade sociais e, também, em virtude do papei central dos mass media, foi aumentando a existência de fatias e de "pacotes " de realidade que os indivíduos não vivem, directamente nem. definem interactivamente ao nível da vida quotidiana, mas que vivem exclusivamente, em função de ou através da mediarão simbólica dos meios de comunicação de massa»z.

Importa ainda ressaltar que: "na medida em que o destinatário não é capaz de

controlar a precisão da representação da realidade social, tendo por base um standard exterior aos media, a imagem que, por intermédio dessa representação ele forma, acaba por ser distorcida, estereotipada ou manipulada" .

Como é reconhecido, os media detêm um papel mediador entre os diversos níveis da realidade e o público. Como em qualquer tipo de mediação existe sempre uma certa distorção dos factos, distorção que pode não ser sempre voluntária, mas sim resultante quer de imperativos institucionais (que no caso da imprensa podem ser o espaço disponível no jornal, o tempo, a orientação política do jornal, etc.), quer de imperativos pessoais (como os valores, as representações ou até mesmo os preconceitos dos jornalistas). Além de tudo isto, uma noticia é também o resultado da visão que o jornalista tem sobre o assunto, ou seja, é sempre o fruto, do modo como o jornalista viu e interpretou o acontecimento (o que considerou mais importante, que perguntas fez, etc.) Na maior parte das vezes, o público não assiste ao acontecimento, ele constrói a sua própria visão e interpreta o acontecimento através daquilo que os media lhe transmitem. Perguntamo-nos por isso, se os jornalistas devem ser apenas retratistas, caricaturistas, ou fazedores de histórias. É

2 GROSSI, citado em Wolf, Mauro, Teorias da Comunicação, Lisboa, Ed. Presença, 1991, pp. 121 a 130. 3 ROBERTS, citado em Ibidem, p.129.

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sabido que o jornalista que faz o texto, não é muitas vezes responsável pela ilustração do texto. O ilustrar pode ser sinónimo de educar/ ensinar ou «banalizar». Quem escolhe o título, que toda a gente lê, não é quem fez a notícia; é o chefe da redacção/ editor. E o título pode ser contrário à mensagem.

Deve-se salientar que ao longo da tese se assume o pressuposto de que os media são produtores e não somente difusores da realidade social. Não se trata também de tecer juízos de valor, comentários, acerca dos discursos dos media e muito menos de questionar a sua veracidade. Pretende-se, contribuir para que cada um construa em bases sólidas as suas próprias regras de conduta, no que diz respeito às drogas quando apresentada pelos media (imprensa escrita).

1.1 O sujeito e a «droga»

O homem é um ser vivo diferente de todos os outros do planeta. Uma bela e frondosa árvore, por exemplo, é também um ser vivo. Imponente e de rara beleza, contudo não tem consciência disso, nem mesmo de que é um ser vivo. Tal igualmente ocorre com todos os outros seres vivos, desde o vírus até a um organismo complexo. Apenas o homem possui consciência que existe, que pensa, sente e é capaz. E é o único ser vivo que pode contemplar a beleza de uma árvore, estudar um insecto ou conhecer-se a si mesmo e aos seus semelhantes. É um ser no mundo, que se transforma e pode modificar-se a si próprio.

Desde os seus primórdios, o homem busca um significado para a existência e para o universo, para o sentido de si mesmo e para a compreensão das suas relações com o próximo. A concepção de mundo na Antiguidade, para o homem grego e para o homem da Idade Média era de um mundo harmonioso, finito, perfeito e divino. O cosmos era visto como perfeito e acabado, restando ao homem a função de admirar ou contemplar a natureza e o mundo. A admiração, assim Platão definiu a filosofia, era considerada a mais bela actividade humana, o homem procurava refazer no seu pensar a ordem existente no cosmos. Desse modo, ele não actuava na natureza; pelo contrário,

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tinha profundo respeito por ela. A terra e o homem eram considerados o centro do universo.

O século XVII marca a presença revolucionária do racionalismo. A imagem do mundo passa a ser oposta àquela compreendida pelos princípios de Ptolomeu. As ideias de Copérnico, embora apresentadas por Aristarco4

quinze séculos antes, são definitivamente reconhecidas; não é mais a terra o centro do universo: é o Sol. O mundo não é algo acabado, perfeito e finito, mas sim, infinito e sem hierarquias. É o início da supremacia do mecanicismo contra o animismo. De contemplativo, o homem passou a ser activo na natureza. Descartes, ao partir do cogito, procurou a subjectividade, entendida por ele, como o pilar do qual tudo ocorre, tudo ilumina e tudo dá sentido. Com isso, a subjectividade, seguindo a razão impessoal, tornou-se idealista, cujo apogeu é configurado por Hegel.

O método cartesiano, cada vez mais aprimorado, possibilitou praticamente o domínio completo da razão. Permitiu e tem permitido grandes avanços científicos e tecnológicos, estimulando o homem a empolgar-se com o seu poder de transformar o mundo. E com isso caiu na ilusão de ser o "senhor" do cosmos. Assim, gradativamente, e alimentando essa ilusão com cada avanço tecnológico, foi incorporando também a ideia de "estar fora" do universo.

A "relação" homem-máquina, típica de nossa era tecnológica, tem conduzido o homem a uma imagem distorcida, de que ele próprio é uma máquina. E "funcionando" como máquina, a sua subjectividade, as suas questões mais íntimas e as suas crises intransferíveis foram ideologicamente ignoradas.

John Watson, o pioneiro do behaviorismo, e que mais tarde abandonou a carreira universitária para ser um bem sucedido publicitário, disse, certa vez, que se lhe dessem alguns bebés os transformaria em advogados, pessoas famosas, pedintes ou ladrões, isto é, que poderia condicioná-los da maneira que quisesse.

4 Aristarco de Samos, (aC 310-230 ac), este astrónomo grego, foi o primeiro a supor que a terra girava

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Nem todos se dão conta do quanto são manipulados e condicionados pelos meios de comunicação social, especialmente pela televisão. Com a propaganda, o telespectador pode ser levado a consumir inúmeros produtos. Somos condicionados a uma vida virada para o consumo e para a satisfação básica de nossa animalidade: comer, beber, vestir, luxo, conforto, etc.

Segundo o exposto por Chaui5, a ideologia é o conjunto lógico e

sistemático de ideias, valores e normas de conduta que indicam aos indivíduos o quê e como pensar, agir, sentir e valorizar. O objectivo da ideologia é fornecer aos membros da sociedade uma justificação para as diferenças ali existentes, sem nunca referir que elas são resultantes da divisão da sociedade em classes. É também a forma pela qual as ideias de classe que domina se tornam ou parecem tornar-se universais, naturais e verdadeiras para todas as outras classes. A origem da ideologia está na própria divisão da sociedade em classes contraditórias, a partir das divisões na esfera da produção. Evidentemente, as pessoas de poucos recursos financeiros são também solicitadas a consumir. E não podendo consumir, contudo estimuladas pelo jogo ideológico, sentem-se falidas ou desvalorizadas tanto no que se refere ao

poder ter quanto ao desejo de ter. Nesse caso, qualquer objecto que sugere ou que dê um mínimo prazer é visto como indispensável.

As crianças e os jovens são os alvos preferidos na criação de novas necessidades pelos media. Incapazes de entender o que é a televisão e o que visa a propaganda, passam a querer tudo o que é apresentado, crescendo assim hipersensíveis ao prazer. É o que Lorenz6 denomina de "neofilia", a

afinidade irresistível para com tudo que aparece como novidade, a qual é resultante da doutrinação das massas. A neofilia é a patologia social do nosso tempo. Nem é preciso detalhar o que sentimos quando entramos num hipermercado. Somos condicionados a tomarmo-nos dependentes, ou seja, adictos a um considerável número de produtos. Temos assim, em nosso redor, adictos a roupas, livros, sapatos, aparelhos electrónicos, comidas, bebidas, etc. Em rigor, somos dependentes dos desejos dos "magnatas da produção".

5 Marilena Chaui, é professora de filosofia, na Universidade de São Paulo, Brasil.

6 Konrad Lonrez, foi professor na Universidade de Maryland, College Park Campus, de 1965 a 1985.

(25)

Vivemos na sociedade onde o valor prioritário é ter a posse de coisas, de objectos e de pessoas. O indivíduo é avaliado pela marca da sua roupa, pelo cargo que ocupa, pelo carro que tem, pelo tipo de trabalho que desempenha ou pela quantidade de pessoas que dirige. O verbo ter tornou-se o valor da sociedade de consumo. E se não podemos ter algo que desejamos de imediato, já que a ideologia do consumo não facilita a aprendizagem de esperar ou de adiar ganhos, os patrocinadores da mesma dão-no em "suaves prestações".

Assim, os objectos têm um "valor" maior que o humano. O homem é valorizado pelo que possui e por isso corre o risco de, nessa sedução, se transformar em um "ser-coisificado". Para se identificar com o seu meio, ele precisa ter, e cada vez mais. Se não pode ter, há o risco de lhe quererem até tirar o que tem. E isso geralmente ocorre com as pessoas de todas as classes sociais quando vivem "solitárias de si mesmas", desejando ou apegando-se a objectos como forma de esconder suas crises, ou seja, uma alienação. Aí, a pessoa no seu mundo interno está distante de si mesma e no mundo externo ausente da sua realidade social.

Nisto tudo, o que conta mesmo são as aparências. Quando na sociedade, a produção, a criação de novas necessidades pelos media e o consumo, são absorvidos como valores absolutos, estão longe de atender às aspirações mais humanas. Tudo converge para os aspectos materiais, do ter, do possuir, enfim, das aparências. As relações de afecto são substituídas, pela mera troca de objectos ou ganhos e o relacionamento entre pessoas torna-se materializado. Como resultado desse tipo de relacionamento, emergem duas condições de vida em sociedade: a superproteção e o abandono. Na primeira, está presente a riqueza material; na segunda, a pobreza e a exclusão. Mas, em qualquer desses extremos, o indivíduo pode estar mergulhado na miséria humana, a qual se manifesta nas duas intenções básicas do consumismo doentio: "a gula e a inveja". E ambas retro-alimentando o universo ideológico do consumir e do competir.

É nessa sociedade que privilegia o "ter", transformando a pessoa em simples instrumento, que prega ideais de bem viver, mas em que, na prática, os seus "valores reais" são o consumo e a acumulação de objectos, e que pelos media

(26)

controla as maneiras de pensar, sentir e agir dos indivíduos, que o jovem, geralmente entre a puberdade e a adolescência, se vê frente a um vazio interior, sintoma de uma forma social de viver sem sentido. E ao aperceber-se desse vazio sua tendência é preenchê-lo com coisas materiais, no que sempre foi condicionado a fazer: consumir. Incapaz de trabalhar seus problemas e crises íntimas, busca "soluções" apenas no mundo das exterioridades ou das aparências. E nessa busca pode ir ao encontro das substâncias psico-activas, legais e ilegais, que acenam como "solução mágica" para que a vida continue "sem problemas".

1.2 As Drogas no Mundo Moderno

A problemática da toxicodependência faz parte do nosso dia a dia, envolvendo indivíduos de todas as idades e mentalidades. Há uma grande notoriedade adquirida por este fenómeno, tanto no discurso público, como mediático, notoriedade esta ligada ao estatuto - fonte de todos os males: insegurança, medo, violência, etc. - conferido ao problema das drogas. No entanto, a problematização sociológica sobre este tema é ainda hoje pouco abundante.

"ut^íverso fascíiAsCtiAte, peia sua diferença e peia sua vertigem, o muvido dos toxicodependentes tem. também sido um mundo opaco, fechado ao mundo exterior, particularmente ao olhar de quem mais quer conhecê-lo do que modíficá-lò' .

A palavra "Droga" tem um sentido pejorativo para a maior parte das pessoas: é uma "porcaria", algo que não presta. Para outras, droga é uma substância, ou melhor, drogas são substâncias químicas que se vendem nas drogarias, ou até nas farmácias. Para muitas outras, droga, são as drogas que se vendem por aí, em certos guetos, ou bairros degradados, em certas ruas, certos bares, algo que é consumido por muita gente. Mas há também quem a identifique como uma "moda" nova, algo que não existia ou uma moda recriada e que envolve um conjunto de atitudes e actividades da sociedade contemporânea. Face a este fenómeno contemporâneo, ao que as pessoas

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vêem e ouvem no dia a dia, associam-se à palavra droga ideias de prazer ou de miséria e/ou riqueza humana, financeira, familiar, física, psicológica, sexual, lúdica ou outra. Associam-se à palavra droga sentimentos de adesão ou de rejeição, mas raramente de indiferença.

A capacidade criadora ou recriadora de sociabilidades atribuída ao álcool contrasta assim com a negatividade e a ruptura próprias da droga, cujo consumo se vai cada vez mais generalizando e constituindo num dos principais problemas com que se debatem as sociedades actuais. O contraste ajuda a sublinhar o tipo de convivialidades que, num e noutro caso, são geradas. O acto de beber é algo social. Segundo Alain Ehrenberg, «o viviho e álcool estão p r e f u n d a nA.£i/i£e I n s c r i t o s via troca, social do ocidevite, são sempre meios de comunicar,

de exteriorizar, de sair de si, ao contrário da droga, sempre exibida, vio iAiu.iA.do da concentração sobre s i , da f u g a fará a irrealidade ou da recusa da sociedade: o álcool é

u m factor de sociabilidade enquanto nenhuma droga poderá sê-Lo» .

O álcool pressupõe a relação social e produz sociabilidade. A droga, ao contrário, é próprio de um individualismo extremado, de um individualismo que não consegue obter um controlo sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia. O acto do consumo da droga é profundamente solitário, fechando o homem sobre si mesmo, não existe qualquer tipo de ritualização nem de simbolizações, como existe ao contrário no acto de beber. Um estende-se à esfera pública da convivialidade, o outro concentra-se na esfera privada do alheamento das coisas e das pessoas, num mundo artificial sem os outros.

Enquanto fenómeno colectivo, esta deixa de ser uma questão pessoal de desvio, para se converter em mecanismo de resolução das contradições da liberdade e, desse modo, para se transformar num mundo artificial sem os outros. Esta tensão entre a recusa e a necessidade de pertença à sociedade, patente em diversos domínios, encontra aqui a sua expressão mais acabada. O problema da droga questiona não só a relação entre público e privado, mas sobretudo a própria forma de se ser e de se estar em sociedade, enquanto ser individual que se realiza em múltiplas sociabilidades. Porque negação da convivialidade, introduz o conflito no interior de cada um, negando-o como

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pessoa. Desde que a autonomia não é interiormente sustentada em projectos, necessita de ser assistida.

Segundo a análise sociológica de Alain Ehrenberg, evidenciam-se diferentes representações quer quanto à relação do uso de drogas, quer quanto à diversidade destas, traça-se igualmente, o significado político que as drogas ao lado da televisão, possuem como elementos estruturantes do que ele denomina «uma sociedade de desíníbíção» e como recursos à disposição do pleonástico «indivíduo incerto» que a caracteriza9.

A dependência é uma modalidade de insucesso na busca da realização pessoal em liberdade situada. Na grande sala espelhos que é a sociedade, cada um reflecte-se e reflecte os outros, dando-se um espectáculo mais ou menos colectivo. As sociedades entraram na era da imagem.

As novas formas de delinquência que atravessam as nossas sociedades traduzem igualmente, a seu modo, este fenómeno geral de desligação social e de fragilização.

«As ^ertubações ídentítârías reveladas pela delinquência surgem recortadas no caso da toxicomania. Hoje consomem-se drogas já não cow. fins de evasão, mas -para que o indivíduo se sinta mais forte, à vontade consigo próprio. A droga atinge todos aqueles que carecem, desses materiais culturais e simbólicos que permitem criar

10

uma identidade, alimentando a interioridade» .

«o lucrar ocupado feia droga nas nossas sociedades corresponde a um verdadeiro fenómeno de civilização. A droga, promete a reconstituição do eu, em termos temporários e fictícios, todavia por um certo tempo, alívío-o do peso das obrigações que lV\e são Impostas, os tranquilizantes permitem resolver a grande contradição moderna-, o indivíduo deve ser ele próprio ao mesmo tempo que deve

11

desembaraçar-se de si próprio» .

Quando se utiliza o termo droga como uma substância, tratam-se de quaisquer substâncias naturais ou de síntese (manipuladas ou criadas pelo

9 FERNANDES, António Teixeira, Estudantes do Ensino Superior no Porto, Representações e práticas

culturais, Biblioteca Ciências do Homem, Edições Afrontamento, 2001, p.174.

10 -, António Teixeira, A ritualidade da comensalidade, Revista de Sociologia da Faculdade de Letras da

Universidade do Porto, Vol. VIL, 1997, pp.7 a 30. " EHRENBERG, Alain, ob.cit., p.10.

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homem) que ao serem absorvidas pelo organismo humano, provocam alterações psíquicas, nomeadamente do estado de consciência e também alterações físicas.

A Organização Mundial de Saúde diz que a toxicodependência é uma

«doença crónica, reincidente t cruelmente progressiva». Pelo contrário, a

Declaração de Lisboa de 1992 , diz que a «toxí&odepevidência ^esmo a de

evolução mais, prolongada, deve ser considerada cow-o um.a situação transitória».

A droga provoca alterações ao nível do sistema nervoso central podendo modificar o modo de pensar, sentir e de agir. Os efeitos da droga variam conforme o tipo de substâncias, o estado físico e psicológico do consumidor e o contexto em que se ocasiona o consumo.

A droga vai dominando e empobrecendo a vida. Diariamente, o toxicodependente pode viver situações de risco de vida, ora por excessos de consumo (overdose), ora por ter determinados comportamentos (utilização de seringas infectadas e/ou em relações sexuais sem protecção), os quais podem originar doenças incuráveis. A relação com a droga pode levar, em casos de grande dependência, a problemas com a justiça.

O percurso do consumo de droga está intimamente ligado à dependência que esta cria no consumidor. O consumidor sente um intenso desejo de se drogar (dependência psicológica). O organismo fica dependente da droga e a falta desta provoca um grande mal estar físico (dependência física). Para conseguir o efeito desejado, o consumidor tem necessidade de ir aumentando a quantidade de droga.

Para Carlos Amaral Dias13, a «droga» funcionaria a três níveis: 1) como

uma reacção auto-protectora face aos estímulos intensos e imprevisíveis em que o homem moderno se encontra submerso; 2) como uma oposição a um certo "automatismo" social; 3) como escape face ao desencanto pela política oficial, tendo como consequência a construção de uma contra-comunidade, onde a toxicomania teria um papel importante. Neste conjunto de fenómenos socais, o "contágio" seria relativamente fácil.

Criada e assinada por profissionais de 20 países, durante o II Congresso Internacional, V - Encontro das Taipas, em Abril de 1992.

13 Amaral Dias, Carlos, A influência relativa dos factores psicológico e sociais no evolutivo toxicómano,

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Certas culturas privilegiam o estatuto e o prestígio do toxicómano na comunidade, e por outro lado e noutros níveis, parecem satisfazer uma motivação para a exploração cognitiva. Este aparente paradoxo é explicado pelo facto de serem os estudantes com mais identificações culturais, os que desenvolveram um maior espírito crítico, funcionando então a «droga» como parte do sistema critico-ideológico. É assim, que o sentido de desilusão com a sociedade convencional, leva indiscutivelmente nos anos 60 ao abuso de «drogas». Tal como a uma socialização antecipatória, num modelo onde a «droga» funcionaria num conjunto de situações a atingir, pela identificação a um certo micro-sistema social. Nesta época, o consumo de determinadas drogas correspondia a uma filosofia de vida que fazia abertamente a apologia do prazer e este era maioritariamente associado ao consumo de drogas. Este prazer condensa-se na famosa expressão que marcou esta época: "sex, drugs. a fid rock IA.'' rolt\

«o CO\A.ÍU\AAO banalízou-se e perdeu, a sua onc)'malídade. o s jovens de então

y>ara cá, sabem, cada vez w-enos aquilo c\u.e fa~zem e ac\uílo c\ue procuram, verífíca-se a -predominância de condutas toxicómanas, "selvaqtns", baseadas na polltoxícoMAaiAXa»14. Assim, a moda da descoberta do desconhecido deu lugar, à

atitude do consumismo imediato, não pelas descobertas que já estão feitas, mas pelo modo de estar "pedrado". Vulgarizou-se o "drogar para não sentir". Esta evolução corresponde a modificações na sociedade contemporânea, "a primazia do prazer, sobrepondo-se aos valores de sociedade". A toxicodependência tomou-se num grave problema de saúde, social, económico e político à escala global.

Neste tipo de perspectiva a «toxicodependência» surge como uma «doença» introduzida pela actividade humana, uma «doença da civilização», por excelência.

Os consumos tradicionais de «drogas» são endémidos, localizados, e não alcançaram nunca, à excepção do álcool, as proporções epidémicas que

ROSA, Santos Amorim, GOMES, Carlos José, e CARVALHO, Maria Dulce, Toxicodependência -Arte de Cuidar, Edição Sinais Vitais, Ano 2000, p. 17.

(31)

atingem as «toxicodependências» deste século. As drogas não eram consumidas puras, nem as vias de administração eram tão perigosas.

1.3Terminologia relacionada com o uso das drogas

Para além das características físicas e químicas da substância, neste caso as drogas, e também e porque estas substâncias produzem os seus efeitos num organismo complexo como é o ser humano, são ainda focados alguns temas associados que são necessários para uma abordagem abrangente à compreensão do fenómeno moderno do uso das drogas e da toxicodependência. Este alerta é necessário, para que não fiquemos circunscritos à ideia de que o problema reside exclusivamente nas substâncias usadas («o problema é a droga, provoca o crime, a morte...»), pois seria uma visão simplista, redutora e estereotipada. Assim, quando se fala em drogas, estamos também a referirmo-nos aos factores que existem para além das propriedades farmacológicas da substância.

1.3.1 Tipos de drogas

A classificação das drogas assenta nos mecanismos de regulação social normativa, polarizando-as em drogas lícitas e drogas ilícitas. Com efeito, esta construção social do entendimento da droga determina consequências no seu uso e nas formas como agentes e actores sociais se relacionam, quer quanto à sua prescrição quer quanto à sua proscrição. Com base nesta classificação dicotómica, as drogas são lícitas, porque consideradas inofensivas; são ilícitas, porque consideradas nocivas para o indivíduo e para a saúde pública.

As drogas psicoactivas são substâncias que têm algumas características comuns, a mais importante das quais é que todas elas têm necessariamente uma acção no sistema nervoso central. Depois, consoante a quantidade ingerida, o estado psicológico do utilizador e o contexto em que ele se encontra inserido, varia a acção da substância. As substâncias podem ter vários tipos de efeitos no sistema nervoso central: efeito depressor (por exemplo, os opiáceos, medicamentos ansioliticos, os solventes e outros tranquilizantes); efeito estimulante (é o caso da cocaína e seus derivados, as anfetaminas, a cafeína e

(32)

nicotina); e um efeito perturbador (onde se inclui o álcool, os alucinógenos, e outros medicamentos).

As substâncias podem também se classificar quanto à sua origem, consoante ela seja de origem natural, os seus elementos psicoactivos não exigem um tratamento muito complexo. Estão neste grupo as drogas frequentemente mais utilizadas como sejam: os produtos da cannabis, as bebidas alcoólicas e o ópio. As substâncias produzidas com base em outras naturalmente psicoactivas, como o caso da heroína que resulta da morfina. As substâncias que existem na natureza e as que são sintetizadas a partir de outras, como é o caso do ecstasy (natureza química) e das anfetaminas.

1.3.2 Percurso do consumo

O risco e o perigo destas drogas dependem da frequência e do modo como são utilizadas. O consumo das drogas é visto como um processo, o qual tem o seu início no primeiro contacto, acabando no conjunto de consequências resultantes da dependência. A habituação e a dependência processam-se no indivíduo de forma progressiva, sendo que a tolerância às drogas se torna impossível de controlar. A este propósito referem-se os seguintes conceitos, de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Americana de Psiquiatria (DSM - IV)15: - a tolerância reside na capacidade de suportar

doses cada vez maiores de uma substância sem que se verifiquem efeitos tóxicos graves, ou, do p.v. do efeito pretendido, a necessidade de ingerir, inalar ou injectar doses cada vez maiores da substância para atingir o mesmo efeito; a escalada diz respeito há necessidade de consumir mais droga, quer aumentando a frequência de uso, quer aumentando as quantidades; a escalada nos produtos, ocorre quando um indivíduo tem necessidade de passar de uma droga para outra que provoca maior dependência; as síndromes da abstinência são sintomas essencialmente fisiológicos, mas também psicológicos, resultantes da interrupção abrupta ou diminuição acentuada do consumo de uma substância.

15 Todos os conceitos de seguida enumerados foram transcritos do DSM - IV, Manual de Diagnósticos e

(33)

Assim, a progressão no percurso do consumo não obedece a mecanismos de linearidade, mas a labirintos que constituem o quadro cultural, simbólico e axiológico, que orientam as formas de pensar, sentir e agir dos actores sociais relativamente à droga e à sua dependência.

1.3.3 Tipos de consumidores

Existem três tipos de consumidores; - o consumidor ocasional ou experimentador (o indivíduo mantém um contacto esporádico com determinada substância, não existe qualquer tipo de dependência, sendo possível a convivência com os outros e a manutenção de hábitos quotidianos de forma adequada); - o consumidor habitual (existe uma dependência de carácter psicológico que leva o indivíduo a utilizar uma determinada substância em determinadas ocasiões, sendo o hábito determinado pela ocorrência de certas circunstâncias); e o toxicodependente (o indivíduo tem instalado em si uma dependência física e psicológica, a droga tornou-se o centro dos seus interesses e da sua vida, vivendo apenas com e para a droga).

1.3.4 A dependência

Existem dois tipos de dependência. Uma é a dependência física que requer o consumo regular de droga, pois a sua falta provoca no indivíduo graves sintomas físicos, os quais só se evitam se o organismo estiver sempre satisfeito. A outra forma de dependência é a psicológica, que conduz o indivíduo a uma falta de liberdade, dada a relação pessoal que mantém com a substância. Sente desconforto e vazio pela falta do produto.

1.3.5 Modelos e tipos de prevenção da toxicodependência

A prevenção está assente numa perspectiva triangular: a droga, o indivíduo que a utiliza e o meio sociocultural em que a utilização da droga se insere. A cada uma destas variáveis é associado um modelo de prevenção. Assim, em primeiro lugar surge o modelo jurídico-penal, este modelo centra-se

(34)

na substância e parte do princípio que o castigo é o meio para que o indivíduo cesse os consumos. Através das leis, procura que o consumo de drogas esteja fora do alcance das pessoas.

O modelo médico centra-se no indivíduo e na substância. O primeiro encontra-se infectado, acreditando-se por isso, que através da informação, se pode influenciar as atitudes e comportamentos, baseando-se por isso, nos efeitos nocivos de certas drogas.

O modelo psicossocial centra-se no indivíduo e no meio social, juntamente com a substância. Têm em atenção os efeitos que os outros exercem sobre o indivíduo, focando o seu interesse no indivíduo e no seu comportamento, mais do que na substância em si mesma. O modelo sociocultural, por seu turno centra-se na acção que se pode exercer sobre o indivíduo face à substância.

A prevenção estrutura-se em três tipos ou fases. A primeira designa-se de prevenção primária, procura através da educação e responsabilização, actuar sobre o meio e as pessoas, de forma a evitar que se gerem problemas ou perturbações relacionados com a droga.

A prevenção secundária tem por objectivo suprimir ou modificar as perturbações / problemas relacionados com a droga. É utilizada um conjunto de acções que conduzem ao tratamento do toxicómano. Estas acções podem incluir desintoxicação física e/ ou psíquica, terapias individuais ou de grupo, etc.

A prevenção terciária refere-se à interrupção da toxicodependência com o cuidado de que não se verifique uma perda de capacidades, total ou parcial, impeditivas da reintegração social do indivíduo, assim como, às intervenções orientadas para essa mesma reintegração social, necessária para que se minimize as possibilidades de reinstalação da toxicodependência nos indivíduos. Trata-se da necessidade de «devolver» o indivíduo à sociedade.

1.3.6 A nova política da «droga» Portugal operou há sensivelmente ano e meio, uma profunda alteração política e legislativa nesta área complexa e de difícil gestão.

(35)

A descriminação do consumo e da posse para consumo de substâncias ilícitas assumiu, na passagem institucional de 2000/ 2001, a natureza de descriminalização construtiva, na medida em que não se limitou à mera revogação de preceitos incriminadores, antes arrancou da ideia que a alteração deverá ser norteada pela consagração de mecanismos que permitam promover a evitação dos consumos, bem como a redução de danos daí decorrentes. A lei, abandonando uma postura assente na intervenção penal, que demonstrara já sobejamente ser ineficaz, desnecessária e inútil, visa agora a construção de uma nova alternativa, privilegiando o encaminhamento e a o recurso às vias terapêuticas. Houve alterações ao nível do discurso do próprio legislador, já não é arguido, mas indiciado, mudança terminológica cujo significado ultrapassa o simples eufemismo. Efectivamente, o elemento que produz a conversão da presente descriminalização em construtiva não radica na continuidade da atitude de censura, agora remetida para o exílio contra-ordenacional, mas no espaço consentido àquilo que tem sido designado por intervenção juspsicológica16, entendida como a permeabilização dos territórios

do direito ao saber psicológico.

A nova configuração legislativa reportável ao consumo de drogas permite constatar que ocorreu uma profunda alteração na postura legal relativa ao uso e, por consequência, aos utilizadores de drogas: por um lado, na atitude legislativa e aplicativa; mas, por outro lado, uma alteração também de racionalidade, abandonando-se o registo criminalizador - terapêutico e inaugurando-se um de motivação e direccionamento para as vias médicas/ terapêuticas sem ameaça penal; mudança, ainda, no plano da representação oficial do consumidor e do toxicodependente: já não um delinquente, já não um doente, mas observado como um sujeito que optou por um estilo de vida menos saudável e que carece de apoio psicossocial.

A lei determina que as comissões17 escutem os indiciados e técnicos, e

que escutem também os sujeitos. E que não os olhem como delinquentes - o indivíduo quando é ouvido, não cometeu qualquer crime, não é arguido; e que

16 Expressão criada pelo Dr. Carlos Alberto Poiares, membro do Conselho Técnico-Científíco do IPDT,

num testemunho pessoal acerca das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, em 7 de Junho de 2002.

17 Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, criadas ao abrigo da Lei 30/ 2000 de 29 de

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não os olhem como doentes forçados ­ um consumidor não tem que ser sempre um doente. As comissões deverão privilegiar os pareceres técnicos e procurar sempre agilizar a sua actividade com os serviços de saúde e de reinserção social, servindo de plataforma para a recuperação clínica e reintegração dos indiciados. Para tanto, deverão, sempre que possível, promover a responsabilização dos consumidores, motivando­os para a mudança de rumo de vida. As leis que descriminalizam o consumo abriram caminho para um modelo compósito entre as normações e o conhecimento psicológico e social. As comissões são as primeiras instâncias que têm, esta rota assinalada na legislação, aberta já a outras maneiras de ver e observar a realidade que o consumo é.

1.4 Breve apresentação do fenómeno da droga em Portugal

Em Portugal, segundo o psicólogo Carlos Amaral Dias, ainda que a «droga» fizesse parte do vocabulário e dos medos dos portugueses, não restam dúvidas, que é depois do 25 de Abril de 1974 que a palavra «droga» e os alvos respectivos, os drogados, passaram a constituir e a constituírem­se como objecto central no contexto de então e no contexto actual.

O uso de cannabis, LSD e o consumo toxicómano de anorexigenios18,

anfetaminas, metadona e outras «drogas» terá começado a generalizar­se no nosso país, nos anos setenta.

Nos anos oitenta, começou­se a assistir em Portugal a alterações no consumo de drogas. Para além do aumento do número de consumidores, o uso de substâncias cada vez mais tóxicas, aumentava assustadoramente devido à sua oferta no mercado. Cada vez mais jovens iniciavam o seu consumo com Heroína e Cocaína e já não com Haxixe.

Segundo Domingos Neto, "desde a introdução da Heroína em. Portugal, ■parece c\ue o fe^ón/ie^o v^ão tem. parado de aumentar, o com.su.nAo começou mas

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grandes cidades, e i/w? litoral, usa^do-se esta droqa aqora tw. todas, as cidades, e vilas

do fais,...

Progressivamente, a droga começava a estar presente e a assustar, deixando os indivíduos impressionados com a dimensão do fenómeno, incessantemente publicitado pelos meios de comunicação social, pelo que esta mediatização do fenómeno contribui-o para a sua dimensão "persecutória".

Já nos fins dos anos noventa, existiam em Portugal cerca de 50 a 100 mil toxicodependentes20. Sabe-se ainda que: a situação era mais grave nos

centros urbanos; que havia mais homens do que mulheres envolvidas; as faixas etárias mais atingidas situavam-se entre os 24 anos e os 37 anos, embora estivessem a aumentar o número de jovens; o medo da sida fazia com que cada vez mais a administração da substância fosse sob a forma fumada e não injectada; - a droga mais consumida era o Haxixe; - a toxicodependência era assumida como um fenómeno democrático e epidémico que atingia todos os estratos sociais e todas as idades.

Tendo por fonte de informação o livro a Estratégia Nacional de Luta

Contra a Droga, no capítulo referente à situação do fenómeno da droga em

Portugal21, podem-se extrair três conclusões: em primeiro lugar, e apesar da

persistente gravidade do fenómeno da droga em Portugal, parece verificar-se uma relativa estabilização dos índices de consumo de drogas ilícitas clássicas, senão mesmo uma descida desses valores, mais acentuada para a heroína, acompanhadas de uma tendência para uma alteração qualitativa expressa no preocupante crescimento do consumo das novas drogas sintéticas, designadamente do ecstasy. Em segundo lugar, os dados disponíveis revelam que a heroína é, sem margem para dúvida, a droga de mais nefastos efeitos sociais e sanitários, responsável pela quase totalidade das consultas nos CAT, pelos elevados índices de seropositividade e de hepatites, pelo crescente número de casos de toxicodependentes, pela maior parte das intervenções das autoridades junto de presumíveis infractores, pela maioria das condenações

19 NETO, Domingos, Tratamento combinado e por etapas de heroínodependentes. Características e

evolução de uma amostra. Dissertação de Doutoramento, Universitária Editora, 1996.

20 A informação de seguida exposta foi retirada da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga,

Presidência do Conselho de Ministros, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Dezembro de 2001, pp. 23 a 30.

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por violação da Lei da Droga e ainda pelo contínuo crescimento dos casos de overdose. Se o consumo da heroína se pode dizer tendencialmente em decréscimo, não deixa de ser preocupante o aumento da quantidade de heroína apreendida em 1998, e o aumento do respectivo número de apreensões. Por último, em terceiro lugar, de referir que o haxixe continua a ser, de longe, a droga ilícita mais consumida entre nós, não obstante a diminuição desta droga apreendida em 1998.

Presentemente, e com base no relatório anual sobre a situação do país em matéria de drogas e toxicodependências de 200122, verifica-se uma

prevalência do consumo de drogas inferior às médias europeias, colocando Portugal numa situação bastante favorável no contexto europeu: cerca de 8% dos portugueses entre os 15-64 anos afirmaram já ter tido pelo menos uma experiência de consumo de drogas ao longo das suas vidas e 14% da população escolar do 3.° ciclo do ensino básico também reportou esse tipo de experiência. Entre a população reclusa, 62% afirmaram já ter tido pelo menos uma experiência de consumo de drogas ao longo das suas vidas. Neste grupo, tem também vindo a diminuir a utilização das drogas duras.

A cannabis continua a ser a droga preferencialmente consumida pelos portugueses. As outras drogas apresentam prevalências de consumo bastante inferiores, seja ao nível da população escolar do ensino secundário e/ ou da população escolar do ensino superior. Evidenciam-se consumos elevados nos grupos masculinos, bem como nos grupos mais jovens. O consumo da heroína adquire maior importância nos grupos masculinos dos 25-34 anos de idade e 35-44 anos. De realçar que ao nível dos consumidores problemáticos desta substância, continua-se a utilizar predominantemente a via endovenosa. Os grupos mais jovens optam pelo consumo de cannabis, ecstasy e da cocaína.

Tem-se verificado um alastramento do consumo de drogas às zonas menos urbanas e do interior do país.

Para além desse fenómeno, existe um aumento de utentes em tratamento, em relação aos anos anteriores e uma maior retenção destes, a que não serão alheias a oferta e adesão aos programas de substituição

22 O Relatório Anual sobre a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências de 2001, foi

emitido pelo Instituto Português da Droga e da Toxicodependência/ Ministério da Saúde, em 15 de Outubro de 2002.

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opiácia. Neste campo, também se denotou uma estabilidade das percentagens de positividade para o VIH. Paralelamente, houve um aumento das percentagens de seropositivos com terapêutica antiretrovírica. Ao nível da positividade na hepatite B e C, as situações foram, de um modo geral, inferiores as registadas no ano anterior. Em contrapartida, as taxas de positividade da tuberculose aumentaram.

Ao nível dos mercados, houve uma diminuição do número de apreensões de todas as drogas, com excepção do ecstasy, continuando a heroína e o haxixe, a ser as drogas que registaram maior número de apreensões. As quantidades de droga apreendidas também registaram um significativo aumento.

1.5 A construção social da «droga» em Portugal

Na história das teorias da (toxico)dependência apontam-se três grandes períodos23: um primeiro, até os anos 30 do século XX, dominado pelo

paradigma "unifactoriaí' em que a substância é o único elemento de explicação da dependência; um segundo, baseado num paradigma "bi-factoriaí' assente em explicações que conjugam a substância e o indivíduo e que se estende até aos anos 70; finalmente, o que vigora hoje e que se funda no paradigma

"bio-psico-sociaí', o qual importou a influência crescente que as dimensões

contextuais/ ambientais vinham a adquirir nos paradigmas das ciências médicas, a partir dos anos 70.

As duas grandes tradições filosóficas do pensamento - a empiricista e a

construtivista - atravessam igualmente o campo das drogas, interferindo e

ramificando-se, por todas as esferas do saber «os modelos, de análise da

(toxico)depeiA.deiA.cLa são os totens, atrás, dos equals ttw- lucrar as batalhas oju.aiA.to ao ntodo tomo deve ser ove^a^vzada a resposta da sociedade ao uso de drogas» .

VALENTIM, Artur, A construção social do problema-droga em Portugal: alguns dados sobre a evolução recente, Sociologia - Problemas e Práticas, n.° 25, 1997, p.82.

24 BEPvRIDGE, Virginia, Dependência: História dos conceitos e teorias, in G. Edwards e M. Lader, A

(40)

A toxicodependência é um conceito polissémico, estando permanentemente sujeito à dupla hermenêutica que fala Anthony Giddens25,

isto é, ao contrabando entre a definição "científica" e as crenças de senso comum.

O autor Alain Ehrenberg26, tem salientado o lugar das drogas nas

sociedades contemporâneas, como instrumentos técnicos de desmultiplicação artificial da individualidade que respondem ao fantasma individualista da liberdade sem limites, oferece-nos uma definição ontológica de toxicomania como sendo «a experiência da superação llli/ultada do próprio tvittrvado num ntuv^do próprio sem o outro», quer sejam drogas, medicamentos ou álcool é «a superação sem limite e permanente dt si próprio, via tentativa Ilusória de ser mais que o próprio no projecto Irrealizável dt se evadir totalmente de si próprio».

Nos dois manuais de diagnóstico clínico, o ICD (10.a ed.) da OMS e da

DSM (4.a ed.) da Associação Americana de Psiquiatria, define-se a

toxicodependência, como categoria caracterizada pela presença de sinais e sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que indicam que o indivíduo perdeu o controlo sobre o uso de substâncias psicoactivas e contínua a consumi-las apesar das suas consequências adversas. A definição de toxicodependência no campo médico tem sido sujeita a intensas disputas ao longo da história. Mesmo esta fixação do conceito, não está isenta de críticas.

O psiquiatra Domingos Neto27, estabelece seis definições para os

conceitos de «droga» e «toxicodependência». Para este autor, as «drogas» podem ser: 1) substâncias exógenas, cujo uso provoca adição física e/ou psíquica; 2) tudo aquilo que provoca determinados efeitos psicotrópicos, como alterações do humor e da consciência, a que o consumidor se habituou e de que não consegue prescindir; 3) todas as substâncias psicotrópicas que têm conotação no mercado negro (que fazem mal à saúde e que se vendem indevidamente); 4) todas as substâncias psicotrópicas que contribuem para degradar a saúde relacional dos seres humanos; 5) todas as substâncias que provocam alterações de humor e da consciência dos consumidores, vividas

GIDDENS, Anthony, A constituição da sociedade, São Paulo, Martins Fontes, 1984. EHRENBERG, Alain, ob.cit..

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com tonalidade agradável, mas que deterioram o convívio e a relação humana destas pessoas com outras. Estas modificações do estado de humor e de consciência dos utilizadores diminuem a sua capacidade comunicacional com o meio. Estes efeitos tendem a tornar-se habituais e os utilizadores a não poderem passar sem eles; 6) substâncias psicoactivas que alteram profundamente o comportamento dos seus consumidores - seja originando atitudes dissociais, como roubos e outros actos ilícitos ligados à busca do produto (extremamente caro), ou relacionadas com as propriedades psicoactivas do mesmo, quando um indivíduo está intoxicado ou relacionado ainda com a situação do indivíduo abstinente, que não consegue trabalhar nem fazer mais nada para além de procurar o produto.

Na perspectiva médico-psicológica, o consumo destas substâncias para além da dependência psíquica e física é acompanhado por um prazer especial. Este prazer é especial porque se trata de um prazer «automático, imediato» conseguido através da manipulação do funcionamento bioquímico do sistema nervoso central. No entanto, esta ligação com o prazer só é experimentada nos primeiros tempos, depois deixará de sentir prazer, utilizando a droga para não se sentir mal, neste sentido, o «toxicodependente t aquele c\ue procura um prazer imediato e que acaba por não o encontrar, ou widkor, por o perder» .

De acordo, com a visão empiricista (dominante) a droga, a dependência, são "dados": a droga é que faz o "drogado" de acordo com um processo invariante, sujeito a uma universalidade objectiva psico-biológica. Nesta visão a dependência é um conceito empírico apoiado numa etiologia definida (o contacto com a droga) e num quadro coerente de manifestações codificadas sob a categoria de "doença" e "delinquência" porquanto a droga origina sem remédio, uma patologia física e psíquica e o desvinculamento da ordem social.

Em contraposição, a visão construtivista (Berger e Luckmann29) concebe

a dependência como um conceito socialmente construído, em termos de julgamentos avaliativos baseados em valores e crenças culturais implícitas em ordenações políticas e com consequências nas interacções sociais e no

28 MIGUEL, Nuno, Toxicodependência: uma perspectiva, Revista Toxicodependências, n.°l, Lisboa,

Edições SPTT, 1997, p.26.

29 BERGER, Peter e Luckmann, Thomas, A construção social da realidade: tratado de sociologia do

Referências

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