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A construção social da «droga» em Portugal

A experiência com as situações consideradas como de «toxicodependência» só atinge directamente, em termos de vivência familiar ou

1.5 A construção social da «droga» em Portugal

Na história das teorias da (toxico)dependência apontam-se três grandes períodos23: um primeiro, até os anos 30 do século XX, dominado pelo

paradigma "unifactoriaí' em que a substância é o único elemento de explicação da dependência; um segundo, baseado num paradigma "bi-factoriaí' assente em explicações que conjugam a substância e o indivíduo e que se estende até aos anos 70; finalmente, o que vigora hoje e que se funda no paradigma "bio-

psico-sociaí', o qual importou a influência crescente que as dimensões

contextuais/ ambientais vinham a adquirir nos paradigmas das ciências médicas, a partir dos anos 70.

As duas grandes tradições filosóficas do pensamento - a empiricista e a

construtivista - atravessam igualmente o campo das drogas, interferindo e

ramificando-se, por todas as esferas do saber «os modelos, de análise da

(toxico)depeiA.deiA.cLa são os totens, atrás, dos equals ttw- lucrar as batalhas oju.aiA.to ao ntodo tomo deve ser ove^a^vzada a resposta da sociedade ao uso de drogas» .

VALENTIM, Artur, A construção social do problema-droga em Portugal: alguns dados sobre a evolução recente, Sociologia - Problemas e Práticas, n.° 25, 1997, p.82.

24 BEPvRIDGE, Virginia, Dependência: História dos conceitos e teorias, in G. Edwards e M. Lader, A

A toxicodependência é um conceito polissémico, estando permanentemente sujeito à dupla hermenêutica que fala Anthony Giddens25,

isto é, ao contrabando entre a definição "científica" e as crenças de senso comum.

O autor Alain Ehrenberg26, tem salientado o lugar das drogas nas

sociedades contemporâneas, como instrumentos técnicos de desmultiplicação artificial da individualidade que respondem ao fantasma individualista da liberdade sem limites, oferece-nos uma definição ontológica de toxicomania como sendo «a experiência da superação llli/ultada do próprio tvittrvado num ntuv^do próprio sem o outro», quer sejam drogas, medicamentos ou álcool é «a superação sem limite e permanente dt si próprio, via tentativa Ilusória de ser mais que o próprio no projecto Irrealizável dt se evadir totalmente de si próprio».

Nos dois manuais de diagnóstico clínico, o ICD (10.a ed.) da OMS e da

DSM (4.a ed.) da Associação Americana de Psiquiatria, define-se a

toxicodependência, como categoria caracterizada pela presença de sinais e sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que indicam que o indivíduo perdeu o controlo sobre o uso de substâncias psicoactivas e contínua a consumi-las apesar das suas consequências adversas. A definição de toxicodependência no campo médico tem sido sujeita a intensas disputas ao longo da história. Mesmo esta fixação do conceito, não está isenta de críticas.

O psiquiatra Domingos Neto27, estabelece seis definições para os

conceitos de «droga» e «toxicodependência». Para este autor, as «drogas» podem ser: 1) substâncias exógenas, cujo uso provoca adição física e/ou psíquica; 2) tudo aquilo que provoca determinados efeitos psicotrópicos, como alterações do humor e da consciência, a que o consumidor se habituou e de que não consegue prescindir; 3) todas as substâncias psicotrópicas que têm conotação no mercado negro (que fazem mal à saúde e que se vendem indevidamente); 4) todas as substâncias psicotrópicas que contribuem para degradar a saúde relacional dos seres humanos; 5) todas as substâncias que provocam alterações de humor e da consciência dos consumidores, vividas

GIDDENS, Anthony, A constituição da sociedade, São Paulo, Martins Fontes, 1984. EHRENBERG, Alain, ob.cit..

com tonalidade agradável, mas que deterioram o convívio e a relação humana destas pessoas com outras. Estas modificações do estado de humor e de consciência dos utilizadores diminuem a sua capacidade comunicacional com o meio. Estes efeitos tendem a tornar-se habituais e os utilizadores a não poderem passar sem eles; 6) substâncias psicoactivas que alteram profundamente o comportamento dos seus consumidores - seja originando atitudes dissociais, como roubos e outros actos ilícitos ligados à busca do produto (extremamente caro), ou relacionadas com as propriedades psicoactivas do mesmo, quando um indivíduo está intoxicado ou relacionado ainda com a situação do indivíduo abstinente, que não consegue trabalhar nem fazer mais nada para além de procurar o produto.

Na perspectiva médico-psicológica, o consumo destas substâncias para além da dependência psíquica e física é acompanhado por um prazer especial. Este prazer é especial porque se trata de um prazer «automático, imediato» conseguido através da manipulação do funcionamento bioquímico do sistema nervoso central. No entanto, esta ligação com o prazer só é experimentada nos primeiros tempos, depois deixará de sentir prazer, utilizando a droga para não se sentir mal, neste sentido, o «toxicodependente t aquele c\ue procura um prazer imediato e que acaba por não o encontrar, ou widkor, por o perder» .

De acordo, com a visão empiricista (dominante) a droga, a dependência, são "dados": a droga é que faz o "drogado" de acordo com um processo invariante, sujeito a uma universalidade objectiva psico-biológica. Nesta visão a dependência é um conceito empírico apoiado numa etiologia definida (o contacto com a droga) e num quadro coerente de manifestações codificadas sob a categoria de "doença" e "delinquência" porquanto a droga origina sem remédio, uma patologia física e psíquica e o desvinculamento da ordem social.

Em contraposição, a visão construtivista (Berger e Luckmann29) concebe

a dependência como um conceito socialmente construído, em termos de julgamentos avaliativos baseados em valores e crenças culturais implícitas em ordenações políticas e com consequências nas interacções sociais e no

28 MIGUEL, Nuno, Toxicodependência: uma perspectiva, Revista Toxicodependências, n.°l, Lisboa,

Edições SPTT, 1997, p.26.

29 BERGER, Peter e Luckmann, Thomas, A construção social da realidade: tratado de sociologia do

funcionamento das sociedades. Os processos que tutelam a droga são perspectivados, por esta corrente, como plásticos porque sujeitos à contextualização social onde confluem não só as múltiplas relações dos indivíduos com as substâncias (objectivas e subjectivas), mas principalmente as relações dos indivíduos com os "outros" mediados pelas substâncias, todos estes actores, como sociais (Cohen, 199030). Assim, as categorias utilizadas

para interpretar a droga/ dependência, não são objectivas, mas objectivadas institucionalmente a partir de uma ordem que só é real porque os actores sociais a "aceitam como real", tal como referia A. Giddens.

No âmbito da teoria social, Bergeret e Leblanc31, afirmam que o que

parece separar a «droga» do medicamento, é a ideologia em curso. Os mecanismos de definição social obedecem aos imperativos que regem a produção de normas: reproduzindo certos valores sociais, a «droga» é um reflexo do tempo - a propósito da «droga», aquilo de que se fala é da forma como se vive em determinada época. Se as toxicomanias aparecem em todas as épocas e em todas as sociedades, o seu conteúdo e a sua forma variam e evoluem constantemente ao nível das mudanças sociais e culturais. Às toxicomanias tradicionais juntam-se, por vezes, novas «drogas». As habituais estão ligadas a mudanças culturais ou a desenvolvimentos técnicos, económicos ou políticos; como se cada cultura tivesse, consoante as épocas, as suas normas de toxicidade e tolerância a determinada «droga».

Segundo Cândido Agra32, existem dois obstáculos à formação de

discursos científicos sobre a «droga». O primeiro, de natureza indeterminista, que consiste em sustentar que o consumo de drogas é um comportamento que procede inteiramente da livre vontade do sujeito e que, portanto, cai ou no âmbito da moral ou da actividade privada dos indivíduos. No domínio da moral, este comportamento é interpretado segundo a oposição bem/ mal. O consumo de drogas, é percebido como um bem quer por muitos dos que a consomem, quer, sobretudo, pelos que a vendem. No pólo oposto, encontram-se aqueles que entendem tratar-se de um comportamento de indivíduos moralmente

30 COHEN, P., Drugs as a Social Construct, Amsterdam, University of Amsterdam, 1990. 31 BERGERET, J.; Leblanc, J. Précis des Toxicomanies, Paris, Ed. Masson, 1988.

32 AGRA, Cândido, "Da rapsódia à sinfonia - os modos elementares do pensamento das drogas, Revista

responsáveis, comportamento este que deve ser combatido por imperativos morais. Este discurso esta intimamente ligado com a crise de valores.

O segundo obstáculo, de natureza determinista, é representado por discursos médico e repressivo, reduzindo o fenómeno da «droga» às categorias de doença e de delinquência, à necessidade patológica e à necessidade criminal.

Do ponto de vista sociológico, este determinismo apresenta­se em duas versões. A primeira «...bem. expressa pela metáfora do "flagelo da droc^a". A

■flagelação I m p l i c a dois corpos: u m de. m o v i m e n t o s coarctados, passlvo/ lnA.poteiA.te, que

sofre os açoites percutantes e m i t i d o s cow. violência por u m outro corpo, o fenómeno

ala otroga é unta "chacra" v i v a I n f l i g i d a no corpo social por u m a força que Une í

inteiramente estranha e adversa»33. A segunda, explica o desenvolvimento da

toxicodependência, identificando causas de natureza social, tais como o insucesso escolar, a desorganização da família, o desemprego, a pressão de grupos marginais, etc. A sociedade como um todo ou o indivíduo é alvo de processos vitimológicos; o «fenómeno­droga» ao nível social, e a toxicomania a nível individual, representam uma variação do estado do sistema (individual ou social) desencadeada por outras variações operadas num outro sistema (no caso do indivíduo é o sistema social, no caso do sistema social não se sabe qual é o sistema flagelador). No imaginário, os cartéis da «droga» e a rede internacional de tráfico, são representados como uma outra sociedade, de natureza diabólica, podendo exercer a função de sistema flagelador.

Para os fins a que este estudo se propõe, utiliza­se o termo «droga» como um conjunto de substâncias psicoactivas passíveis de serem utilizadas com fins «lúdicos» e que são normativamente consideradas ilícitas (excluindo­ se, portanto, o álcool, a nicotina, a cafeína e as «drogas» utilizadas para fins terapêuticos) e representadas como «flagelo social».