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Revisão de texto e reformulação de índices

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Academic year: 2019

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FICHA TÉCNICA

Título SAUDADES DA TERRA – Livro V Autor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO

Edição INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA Revisão de texto

e reformulação de índices JERÓNIMO CABRAL

Catalogação Proposta

FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591

Saudades da terra : livro V / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavras prévias de João Bernardo de Oliveira Rodrigues ; A poesia e a novela de Frutuoso por J. de Almeida Pavão] - Nova ed. - Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998.

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LIVRO QUINTO

DAS

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Palavras Prévias VI

PALAVRAS PRÉVIAS

João Bernado de Oliveira Rodrigues

Ponta Delgada, 14 de Agosto de 1964

Mais um livro das “Saudades da Terra” dá à publicidade o Instituto Cultural de Ponta Delgada no prosseguimento da tarefa que se impôs de editar o códice do Doutor Gaspar Frutuoso, depositado, como se sabe, desde 1950 na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital desta cidade.

O volume, que agora se publica, tem principalmente, o interesse do seu ineditismo. Dado o sequestro a que o manuscrito esteve sujeito durante longos anos e não constando existir qualquer cópia completa da “História de Dois Amigos”, que é a designação que o autor dá a este livro em mais de um passo da sua obra — e digo completa, porque o apógrafo da casa Cadaval é o único dos conhecidos que, segundo verifiquei, contém alguns capítulos — podemos afirmar, sem receio de contradita, que a novela de cavalaria que Frutuoso intercalou no seu trabalho histórico, talvez no intuito de lhe amenizar a monotonia, se conservou até hoje inédita, ou, porventura, apenas conhecida de um ou outro curioso que na dita Biblioteca se deu ao trabalho de folhear o famoso autógrafo.

Deste Livro V, apenas se não ignoravam as epígrafes dos capítulos, o que se deveu ao incansável labor do Dr. Ernesto do Canto, o que se deveu ao incansável labor do Dr. Ernesto do Canto, que as trasladou no “Archivo dos Açores” e, mais tarde, na “Bibliotheca Açoreana” ao dar a notícia circunstanciada das “Saudades da Terra”, que aí se contém (1).

Por idêntico motivo era também conhecido o soneto de homenagem a Luís de Camões que aparece no capítulo XXV e tem sobretudo o valor de testemunhar o alto apreço que o príncipe dos poetas portugueses, infelizmente nem por todos considerado em vida, já merecia ao cronista micaelense, seu contemporâneo (2). Aliás, não é só aqui que Frutuoso manifesta a sua

admiração pelo autor dos “Lusíadas”; em outros locais a ele se refere encomiasticamente, dando-lhe os epítetos de “engenhosíssimo”, “gravíssimo” e “grande poeta lusitano”.

A curiosidade deste livro está ainda na circunstância de revelar uma nova faceta da vocação intelectual do seu autor, como seja essa espécie de devaneio pelos campos da poesia e do romance, com que parece pretender aligeirar o espírito do peso dos trabalhos de investigação em que se embrenhara para compor a obra monumental que seriam as “Saudades da Terra”. Uma tal tendência para as belas-letras está bem visível nos numerosos versos, manifestamente da sua autoria, que, entremeados com a prosa, surgem de vez em quando na efabulação desta novela.

Já no Livro IV, e sem indicar nome de autor, ele introduzira, a propósito da subversão de Vila Franca, um romance em verso, que, embora aparentemente de carácter popular, hoje não hesitamos em considerar fruto do seu estro, em vista da abundante produção poética de que está recheada esta “História de Dois Amigos”.

Redigido ao sabor de uma corrente literária que estava muito em voga no Portugal de quinhentos, como o atesta o tipo de romance que nos legou, o Livro V das “Saudades da Terra” é mais um exemplo a documentar a enciclopédica personalidade de Frutuoso, cujos interesses se não circunscreviam à História, antes se desdobravam por vários ramos do conhecimento humano.

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Palavras Prévias VII

documento autobiográfico de grande valor para um dia se conhecer melhor a vida do cronista, punham em relevo a sua familiaridade com a literatura clássica e o conhecimento que parecia ter dos escritores portugueses e castelhanos do seu tempo. Pelo título que encima o capítulo XV, Rodrigo Rodrigues induziu não lhe ter passado despercebida a “poesia, então, revolucionária dos célebres inovadores Juan de Boscan e Garcilazzo de la Vega, que introduziram o metro endecassílabo e o gosto italiano na arte poética da sua pátria”, os quais, na sua opinião, certamente conheceu através de uma edição feita em Salamanca em 1547, sob o título de “Las Obras de Boscan y algunas de Garcilasso de la Vega repartidas em quatro libros” (4).

E, de facto, é com entusiasmo que Frutuoso exalta a nova faceta literária, acusando de néscios aqueles que não a compreendiam e participando dela com os sonetos em castelhano que, em homenagem aos ditos poetas, no mesmo capítulo se contêm e com outros em português, como seja a referida composição poética dedicada a Camões.

Tudo isto nos ajuda a definir a personalidade de Frutuoso, integrando-a no movimento renascentista da sua época, em que não é raro vermos numa mesma pessoa, ao lado do homem de ciência, do historiador ou da artista (Rodrigo Rodrigues fala-nos da sua predilecção pela música), o cultor apaixonado das belas letras, numa variedade de aptidões que envolve tudo quanto poderia interessar um espírito cultivado, de acordo com os cânones humanistas então em voga. De resto, na parte já conhecida da sua obra era fácil apercebermo-nos da multiplicidade de interesses por que se dispersava a sua atenção de homem extremamente curioso e observador. Como diz Rodrigo Rodrigues, não tenhamos, pois, receio de o colocar dentro do brilhante fenómeno literário e científico do quinhentismo peninsular, cujo conhecimento copiosamente revelou através das “Saudades da Terra”.

Embora sem qualquer originalidade que a imponha na literatura portuguesa como peça de real valor e nos apareça, mesmo, como testemunho pouco relevante do talento de Frutuoso para o romance e para a poesia, a “História de Dois Amigos” permite-nos, contudo, um delineamento mais exacto do seu perfil de escritor, por quem não poderiam ter passado indiferentes ou vãos os anos que viveu nos meios universitários de Salamanca e, porventura, de Évora (5). Aliás, dizem os seus biógrafos que no ambiente de alta cultura intelectual da

primeira destas cidades, onde professavam homens eminentes que deixaram nome afamado na História, na Política e na Literatura, Frutuoso conseguiu sobressair, acrescentando Chaves e Melo que foi tão distinto no seu curso, que na Universidade o apelidavam de “el grande sabio de las islas de Portugal” (6).

* * *

Já no prefácio do Livro VI, editado em Novembro de 1963, se disseram as razões porque na presente publicação se começou pelos últimos dos seis livros que compõem o códice frutuosiano.

Existindo dos primeiros quatro livros das “Saudades da Terra” edições fundamentadas em cópias que, pela conferência que fizemos, se não afastam consideravelmente do teor do manuscrito original (7), entendeu-se preferível satisfazer desde já a curiosidade do leitor com

revelar-lhe a parte inédita da obra, ou aquela, que, como o Livro VI, parcialmente se achava disseminada em revistas e publicações periódicas, pela iniciativa do falecido investigador faialense António Ferreira de Serpa, que, para tal, se serviu do apógrafo, aliás bastante deficiente, que pertenceu ao célebre jesuíta, Padre Martim Gonçalves da Câmara, e hoje faz parte do recheio da Biblioteca da Ajuda.

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Palavras Prévias VIII

formas arcaicas ou desusadas dos vocábulos, e modificou-se a pontuação, sempre que disso não resultasse deturpamento da ideia. Apenas nas poesias em castelhano se respeitaram as grafias do original, visto considerarmos não ser prudente alterar o que quer que fosse numa língua que desconhecemos.

Embora haja razões para supor que o Livro V fosse um dos primeiros, ou talvez o primeiro, a sair da pena de Frutuoso, como adiante diremos, o que é certo é que foi ele próprio quem lhe deu a numeração, colocando-o entre o IV e o VI Livro, como o atestam o título, escrito pelo seu punho, em que se declara natural da ilha de S. Miguel — única vez que faz tal afirmação — e ainda as palavras com que finaliza o respectivo texto, também da sua mão em que diz que a narrativa que vai seguir-se versará sobre as “Ilhas de Baixo”.

Também no último parágrafo do Livro IV expressamente se afirma que a Fama mostrou desejo de ouvir da boca da Verdade a “História dos Dois Amigos que houve na ilha de S. Miguel”, a qual vem a propósito contar-se antes de entrar nos assuntos respeitantes aos grupos Central e Ocidental do Arquipélago, que são os que constituem a matéria do Livro VI, último da obra.

Fica assim desfeita a suposição de João de Simas, com fundamento no que se lê na parte final do apógrafo da Biblioteca da Ajuda, de que este Livro V constituiria primitivamente o fecho da crónica, figurando o VI com aquela numeração.

De facto, nessa cópia, que suprime a “História de Dois Amigos”, o Livro VI aparece com o número cinco e termina com as seguintes palavras: “Dizendo eu à Fama, isto é, senhora, o que pude saber destas dos Açores e mais ilhas, afora a história dos dois amigos, que é larga de contar, nos fomos por entre mato praticando, comendo das uvas da serra, pretas, roxas e brancas, e das alvas camarinhas que se parecem na cor e grão com o fino aljofre, recolhendo-nos na minha sombria pousada, onde passamos escura noite, às vezes dormindo, outras falando claras, amorosas palavras, agradecendo ela o trabalho de lhe dizer tantas particularidades destas ilhas, mostrando-me desejar de me meter em outro de também lhe contar a História dos dois amigos que houve nesta de S. Miguel, como amanhecesse, do qual trabalho me escusei por imaginar tereis enfadado” (sic).

Repare-se que toda esta tirada, com que finaliza o apógrafo da Ajuda, no manuscrito original é a que encerra o Livro IV, donde foi extraida pelo copista, que lhe introduziu as necessárias alterações (aqui sublinhadas em romano) no manifesto propósito de se furtar ao traslado da “História de Dois Amigos”, que consideraria desprovida de interesse para a alta personalidade a quem a cópia se destinava ou que a tinha encomendado.

Se é certo que esta seria o Padre Martim Gonçalves da Câmara, valido de D. Sebastião e próximo parente dos capitães-donatários da Ilha da Madeira, donde era natural, segundo a opinião de João de Simas na sua “Notícia Bibliográfica das Saudades da Terra”, compreende-se que ao copista não interessava uma narrativa novelesca, que, além de pouco original, compreende-se lhe afigurava completamente deslocada na gravidade do conjunto histórico que formava o teor fundamental do códice. D’aí a fraude que cometeu e só agora, compulsando o autógrafo e confrontando-o com a cópia da Ajuda, foi possível desvendar. Porque não é difícil apercebermo-nos de que já naquela época a obra impunha-se mais como fonte primeva e fidedigna dos tempos recuados da vida portuguesa nos dois arquipélagos atlânticos do que pelo valor literário da sua prosa. Não é pois de estranhar a omissão, por assim dizer, geral que da “História de Dois Amigos” se observa em todas as cópias que chegaram ao nosso conhecimento (8).

Tal como o Livro I, este, de que agora tratamos, está todo escrito pelo punho do autor, e com caligrafia tão apurada, sobretudo nas primeiras páginas, que não hesitamos em considerá-lo como um dos que mais passou a limpo.

As entrelinhas e interpolações não aparecem aqui com a frequência que se regista nos restantes Livros; uma ou outra emenda, geralmente nos versos, significa que Frutuoso até ao fim da vida se preocupou com a forma, no que parece ter sido bastante exigente. Não é difícil supor-se que sentisse especiais responsabilidades ao redigir uma novela que ficaria como o melhor documento das suas aptidões literárias.

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Palavras Prévias IX

Tudo indica, enfim, que estamos em presença de um trabalho feito amorosamente, talvez ainda no vigor da vida, para não dizer em plena juventude, como parece revelá-lo a abundante produção poética que nele se contém e melhor se ajusta aos devaneios literários próprios dos vinte anos do que à gravidade e compostura inerentes a épocas mais avançadas da existência. Não será ousado aventar que cedo se afirmassem as tendências espirituais de Frutuoso. Lembremo-nos do que diz o Padre António Cordeiro ao referir a sua adolescência, decorrida mais no apego aos livros do que nos trabalhos da lavoura do pai, rico proprietário em Ponta Delgada, o qual tão impressionado ficou com a vocação do filho, que resolveu mandá-lo estudar para Salamanca. Aí, na convivência com escolares e homens de letras, é provável que tentasse as suas primícias literárias, como julgamos pelas poesias em castelhano que compôs e introduziu neste livro das “Saudades da Terra”, à imitação de tantos da sua estirpe intelectual, que, só depois de passada a juventude e de experiências mais ou menos felizes no campo da literatura de ficção, enveredam ostensivamente pelo trabalho sério e erudito da investigação e da ciência. E o que mais nos firma nesta conjectura é a circunstância de já no Livro I das “Saudades da Terra” Frutuoso aludir à “história de cavaleiros” e aos versos que constituem o texto do Livro V. Isto nos leva a imaginar que no plano que arquitectou para a composição da sua obra foi seu pensamento introduzir na devida altura as poesias que compusera na mocidade, embora enquadradas numa novela, concebida provavelmente com esse fim.

* * *

No original o Livro V começa a pág. 444 e termina a pág. 484, verso, ocupando, por conseguinte, quarenta folhas do códice, todas pertencentes a cadernos de papel almasso bastante encorpado e em tudo igual ao dos outros livros que o autor escreveu com o seu próprio punho.

A filigrana, que aí se reproduz, representa uma coroa aberta, de aro elíptico, com um florão trilobado e dois meios florões laterais, cada um deles bilobado, assemelhando-se algum tanto às que figuram com os números 4667, 4678 e 4679 no grande reportório de Briquet (9),

segundo informação amavelmente fornecida pelo Sr. Dr. Jorge Peixoto, ilustre Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Identificando-a com a última das filigranas indicadas, poderíamos admitir ser o papel de origem alemã, com data de 1584.

Como se sabe, a identificação através das marcas de papel não é processo muito rigoroso; auxilia, dá uma ideia, mas não uma certeza. Por isso, a aceitamos com certa reserva, tanto mais que a data provável, atrás citada, anda muito próxima daquela em que Frutuoso deu início à sua crónica, que, pelos dados cronológicos que nos fornece o Livro II, deve ser pouco anterior a 1580 ou 82. Com mais facilidade se poderá admitir que o papel fabricado em 1584 só fosse utilizado quando o autor se dispôs a passar a limpo o seu trabalho, isto é, alguns anos depois daquelas datas.

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Palavras Prévias X

* * *

O saudoso investigador micaelense, Rodrigo Rodrigues, na biografia que de Frutuoso escreveu para a Edição Centenária das “Saudades da Terra”, quando ainda se desconhecia o teor do manuscrito original, emite o parecer de que na “História de Dois Amigos” se colheriam dados preciosos para o conhecimento da juventude do cronista.

Aliás, já o Dr. João Teixeira Soares formulara um tal juízo, considerando-a uma rebuçada autobiografia (11).

Indo até ao ponto de insinuar que nela estaria a chave da incógnita dos motivos que levaram o autor à vida sacerdotal, Rodrigo Rodrigues presume que a novela gire em volta da amizade que ligou os Doutores Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonçalves na época em que viveram fora desta ilha, isto é, quando ambos frequentaram a Universidade de Salamanca.

Note-se que Rodrigo Rodrigues, ao escrever tais suposições, apenas conhecia as epígrafes dos capítulos, e embora notasse, através dos epítomes, nítida influência das “Saudades” de Bernardim Ribeiro, a sua mentalidade, em matéria de História da Literatura afeita às teorias e processos filosóficos da época em que se educara, recusou-se a ver na obra um produto de ficção puramente literária e tomou-a como o reflexo de uma vida acidentada e aventurosa de um rapaz de vinte e tantos anos, que seriam os da idade em que Frutuoso esteve, pela primeira vez, ausente desta ilha para fazer estudos universitários.

A tese não deixava de ser sugestiva para um espírito, como o de Rodrigo Rodrigues, que, sabemo-lo bem, cultivou as belas letras na juventude e apaixonadamente acompanhou o movimento literário do seu tempo. Contudo, parece-nos que ela não teria subsistido na sua mente, se acaso lhe fosse consentido ler a “História de Dois Amigos”.

João de Simas também se inclinou para aquela versão. No entanto, impressionado com a profunda influência de Bernardim Ribeiro e Cristóvão Falcão em Frutuoso — é no ano de 1554, quando este cursava em Salamanca, que aparece impressa em Ferrara a primeira edição conhecida da “Menina e Moça” e da “Égloga Crisfal” — admite que o “Dr. Frutuoso teria composto a sua “História de Dois Amigos” num mero intuito literário, simples concepção idealista duma novela de cavalaria, género tanto em voga no tempo, sem os factos nela descritos compreenderem as aventuras reais da sua vida” (12).

Ora, não é outra a ideia que nos fica depois de lermos o Livro V das “Saudades da Terra”. Porque, decorrendo o seu entrecho num plano de imaginação tanto ao gosto da época, em que o maravilhoso a cada momento se sobrepõe à realidade, dificilmente vemos reproduzida a pessoa do autor numa das suas figuras centrais.

Onde ela, por vezes, se denuncia com toda a evidência é nas longas tiradas do moralista ou do sacerdote, quando põe na boca das personagens, e sempre que as circunstâncias se apropriem, palavras de sincera unção religiosa. Através do tom declamatório de tais falas ou discursos, pressente-se o pregador convicto, que não perde a oportunidade de fazer doutrinação.

É verdade que no decorrer da novela surgem de vez em quando reminiscências da juventude, relacionadas com a terra onde passou a sua vida estudantil.

A aventura de Filomesto, quando em viagem desta ilha de S. Miguel para o continente, onde ia estudar, se vê abandonado no reino de Narfendo, quererá talvez aludir ao seu desembarque na Espanha do rei Fernando o Católico, que desde 1516 era falecido.

A morte do Príncipe D. João, filho de D. João III, em Janeiro de 1554, precisamente num dos anos em que Frutuoso frequentava a Universidade de Salamanca (13), é evocada como

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Palavras Prévias XI

Um dos capítulos da novela ocorre nas margens do rio Tormes, afluente do Douro, que passa em Salamanca, e cujas águas congeladas em pleno inverno são motivo de inspiração para uma das composições poéticas que na obra se incluem. Aí se encontram os dois amigos, Filomesto e Filidor, que, na hipótese aventada por Rodrigo Rodrigues, seriam os dois estudantes micaelenses, Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonçalves, companheiros de casa e de estudo naquele meio universitário, cuja amizade se manteve depois na Ribeira Grande, onde ambos viveram e este último foi médico afamado (14).

É certo também que a acção se desenrola em parte nesta ilha de S. Miguel onde vive Tomariza, a amada de Filomesto, e onde residem figuras conhecidas do autor, dos seus tempos de rapaz, cujos nomes cita, mascarando-os através de anagramas. Tais são Duarte Borges, que foi homem de grande proeminência não só aqui, como provedor da Fazenda e Armadas, mas também em Lisboa, onde desempenhou as funções de tesoureiro-mor do Reino; Manuel e André Botelho Cabral, a quem no capítulo IV do Livro IV se refere largamente; Francisco Lobo, que foi escrivão em Ponta Delgada; os irmãos Manuel da Costa, João d’Arruda e Bartolomeu Favela, filhos de Manuel do Porto e Beatriz da Costa, igualmente mencionados naquele livro, etc.

E se, de facto, Frutuoso pretendeu retratar-se num dos dois heróis, qual deles o personifica? Filomesto ou Filidor? Rodrigo Rodrigues procurou identificá-lo com o primeiro que é, indiscutivelmente, a figura dominante da novela. Note-se, porém, que Filidor aparece sempre como o poeta a quem o autor atribui a maior parte dos versos contidos na obra.

Esse nome, Filidor, que, conforme se esclarece no livro, significa “filho da dor”, pretenderá fazer alusão ao nascimento de Frutuoso, que, como acentua Rodrigo Rodrigues, poderia ter sucedido em condições tais, que nunca lhe consentiram falar da sua origem ou família? Com efeito, sobre tal matéria o cronista remeteu-se ao mais absoluto silêncio, não só ocultando os nomes dos seus progenitores, mas também fazendo propositada omissão da genealogia da família, a que, segundo as invesgações do mesmo biógrafo, deve ter pertencido (15).

Se, porventura Frutuoso quis retratar-se em qualquer daquelas figuras, a obra está de tal forma bem conduzida no campo da ficção, que é muito difícil extrair da análise dela quaisquer dados biográficos satisfatórios.

Parece-nos não ser possível ir mais longe do que conjecturar que apenas alguns passos ou reminiscências da juventude do autor se contêm na “História de Dois Amigos”.

Deixa-se, pois, o assunto aberto a um estudo crítico mais penetrante e concludente.

Porque da leitura conscienciosa e atenta que fizemos da novela, só nos ficou a impressão de que o cronista, utilizando alguns factos de que foi testemunha, ou possivelmente passados com a sua pessoa, urdiu uma trama aventurosa e sentimental muito ao sabor da época que lhe serviu de pretexto para deixar comprovada na obra que quis legar aos vindouros a veia poética que informava a sua personalidade de escritor e com certeza prezava em alto grau.

* * *

(9)

Palavras Prévias XII

Para o sr. Nuno Álvares Pereira, funcionário da mesma Biblioteca, cuja colaboração na leitura e cópia do manuscrito original me foi deveras valiosa, vai também uma palavra de muito reconhecimento.

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XIII

I — A POESIA E A NOVELA DE FRUTUOSO

Há anos tentámos, num breve apontamento, através do Livro I das Saudades da Terra, uma sondagem das influências literárias recebidas por Frutuoso.

Rodrigo Rodrigues, o insigne investigador e genealogista micaelense, a cuja memória não foi ainda prestada a devida justiça, foi o primeiro que aludiu a algumas dessas fontes culturais, no excelente Prefácio do Livro III, que, publicado em 1922, é um monumento de saber seguro. Mais tarde, a propósito do Livro I, Monteiro Arruda, a quem igualmente muito deve a historiografia açoriana juntou mais algumas achegas no plano das influências, entre as quais a de Bernardim, que é por demais manifesta nos primeiros capítulos do referido Livro.

Verificamos, pois, que o inventário do que poderíamos designar por clima cultural do historiógrafo já está feito pelos dois ilustres estudiosos, que trataram o assunto dum modo global, abrangendo vários ramos, desde a História e a Geografia, até à Filosofia e à Poesia. O primeiro destes aspectos foi agora completado pelo Dr. João Bernardo de Oliveira Rodrigues, no seu não menos importante Prefácio inserto a propósito do Livro VI, recentemente vindo a lume, o qual, trazendo uma nova contribuição para o estudo da personalidade do Cronista, elaborou um notável estudo sobre as relações do pensamento deste com o Filipismo então vigente.

Ao tempo em que foram publicados os dois primeiros livros referidos, eram ainda incompletas as notícias sobre o Livro V, que ficaria ainda inédito durante muitos anos, mas estas já deixavam prever que a edição integral da mencionada obra nos traria um conhecimento mais perfeito dos aspectos relacionados propriamente com a sua actividade literária e poética. Foi esta a faceta que aqui procurámos desenvolver.

Começaremos, no nosso estudo, por referir esta asserção de Rodrigo Rodrigues, que resume a personalidade do seu biografado:

“Frutuoso representa plenamente o tipo do humanista da Renascença, enciclopédico quinhentista, literato, artista e músico, observador atento dos fenómenos naturais...” (16).

Segundo os informes do mesmo estudioso, o nosso historiógrafo ter-se-ia fixado definitivamente em S. Miguel em 1565, já num período de plena maturidade mental, enriquecida com o magnífico apetrechamento livresco conseguido no ambiente universitário salmantino, que representava um dos mais altos expoentes da intelectualidade europeia e aumentada com a sua longa experiência de caminheiro durante dezassete anos e com a reflexão própria do seu múnus sacerdotal (17). Com tão longa preparação de tão vasta sementeira, só seria de esperar uma colheita de frutos bem sazonados.

No plano literário, o período de permanência em Salamanca, que deverá ter decorrido entre os anos de 1548-49, 1543-56 e 1557-58 (18), proporcionou-lhe o contacto com o movimento quinhentista, largamente documentado na História dos Dois Amigos, que constitui o Livro V, de que nos ocuparemos a seguir.

Foi essa ambiência cultural a que exerceu influência das mais importantes e duradouras na formação de Frutuoso, familiarizado, entre os clássicos, com Cícero, Virgílio, Horácio, Plutarco e Tácito (19). Sob o aspecto filosófico, como bom discípulo do Escolasticismo, que certamente

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XIV

Há, aliás, no Capítulo I, um passo que nos leva a admitir essa raiz tomística bem pronunciada, a estruturar o seu conceito de determinismo. Revestindo a capa duma influência estilística de Bernardim, que é a mais premente em toda a sua obra ficcionista, apresenta, todavia, uma mensagem diversa, como vamos verificar, pela análise de passagens dos dois autores postos em cotejo: No I Capítulo do Livro das Saudades, insere-se esta ausência de motivação concreta e definida da saída da personagem de casa de seus pais:

Qual fosse então a causa daquela minha levada, era eu ainda pequena — não na soube. Agora, não lhe ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que depois foi.

Em Bernardim, há um fatalismo que não ultrapassa as fronteiras do seu caso pessoal, ante a presença avassaladora de forças egotistas. Como sempre na sua obra, o eu arrogante sobreleva tudo o mais ante o seu império:

Já então parece havia de ser o que depois foi.

O determinismo de Frutuoso assume uma forma generalizada, dentro duma concepção filosófica que mergulha as suas raízes na doutrina cristã. Determinismo hesitante, porque se não abstrai do livre arbítrio, na medida em que o pecado ou a infracção à norma que pauta uma ética são imputados à própria responsabilidade do prevaricador. (A conciliação destes dois extremos tem-se constituído em pábulo perene para a argúcia de pensadores, como o nosso Antero). À maneira de S. Tomás, onde parece que Frutuoso tenha ido beber a asserção, a presciência de Deus exerce-se num campo de visão diverso do do homem: ou, por outras palavras, o presente de Deus contrapõe-se à bipartição de presente e futuro à escala humana. Dir-se-ia, pois, que na linguagem divina não há pré-visão, porque tudo é presente. É deste modo que, transposto em termos de dimensão humana, se harmoniza o conhecimento prévio da conduta dos mortais com a responsabilidade que lhes incumbe.

“...que causa fosse então daquele meu desterro, era eu ainda pequena, não a soube; mas depois vim a saber uma, que foi a desobediência do homem, a qual já eternalmente estava precisa na mente divina, que é omnisciente, a quem tudo está presente, sem por isso obrigar, forçar ou necessitar a pecar, se ele não quisera, pois que pondo-o na mão de seu conselho lhe deu livre arbítrio para escolher o que quisesse” (21).

A explicação de Frutuoso, sem alcançar a subtileza da argumentação do Mestre do Tomismo, não parece deixar, no entanto, de acusar o magistério escolástico. Por outro lado, neste pendor moral que, como mais largamente iremos documentando, constitui uma tónica do autor, mesmo através da obra de pura ficção, põe-se à evidência o carácter meramente externo do ascendente bernardiniano.

Ainda sobre o conhecimento dos filósofos da Antiguidade, Frutuoso alude a Platão e Teofrasto, este último, como Aristóteles, mais enraizado na formação cultural do nosso historiógrafo, segundo o testemunho de Monteiro Arruda (22). Quanto ao seu platonismo, duvida

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XV

1565 como data do regresso definitivo de Frutuoso a S. Miguel e aceitando que só posteriormente começou a elaboração da sua obra de historiador e procedeu à redacção definitiva da de ficcionista, teremos como certo que, quando assentou arraiais em plagas açorianas, já trazia todo o seu apetrechamento cultural, conquanto não seja fácil provar, através da análise do referido Livro V, o ascendente marcado de todas as obras citadas. Pomos de parte a possibilidade dum contacto literário posterior, dadas as dificuldades de comunicações, em viagens incertas e demoradas, a despeito do maior incremento de todas as actividades que passaram a registar-se nesse tempo, como resultante da maior atenção que à sua ilha passou a votar a Mãe Pátria, após um longo período de marasmo e abandono.

Frutuoso assistiu, pois, à efervescência duma cultura de que ele próprio se dá conta na sua obra poética inserta na Novela, a qual, tomada numa visão de conjunto, vale mais como panegírico aos maiores vultos de então, não esquecendo alguns dos de maior representação da vizinha Espanha. O seu isolamento na bruma insular, se, por um lado, tornava mais difícil a sua actualização, por outro lado havia de facultar uma calma ambiência propícia à realização do que porventura até aí não passaria de vagos projectos, em gestação no seu espírito.

No plano literário, Boscan e Garcilasso suscitaram a admiração do autor, bem vincada em poemas laudatórios contidos no Livro V. O conhecimento da obra destes data decerto dum período após a morte dos mesmos, ocorrida ainda antes do ingresso do cronista micaelense no meio universitário salmantino (25). Contudo, como muito bem acentua Rodrigo Rodrigues e como teremos oportunidade de verificar, a propósito de Bernardim, foi este que lhe criou o figurino (26), presente no estilo com que Frutuoso inicia o I Livro das Saudades e orienta certos passos da História dos Dois Amigos, contida no Livro V, muito embora o travejamento da novela obedeça a moldes muito diversos. Quanto à composição estilística da História, acusaria a inspiração igualmente portuguesa de Barros e, em relação a este, o que perdia em elegância e exuberância formal ganharia numa certa sobriedade, consentânea com uma mais arrumada economia de meios expressionais. No que respeita a Bernardim, é conhecida a hipótese, lançada pelo Prof. Teixeira Rego, sobre a ascendência judaica do nosso maior bucólico que, segundo o erudito professor da antiga Faculdade de Letras do Porto, era totalmente desconhecido dos escritores cristãos coevos (27). E, formulado implicitamente o postulado de que a divulgação do Poeta das Saudades constituiria exclusivo dos seus supostos correligionários, nada mais lógico do que inferir a costela de marrano para o nosso Frutuoso, que tanto o admirou e imitou. Desnecessário será analisar a suposição do Mestre portuense, de tal modo tem sido afirmada a sua inconsistência pela crítica. No que se relaciona com o cronista micaelense, a suposição de cristão novo que lhe possa ser atribuída não encontra, na opinião de Monteiro Arruda, qualquer arrimo que a possa comprovar (28). Ocorre-nos ainda perguntar: a notícia que dele tinha o nosso cronista não encontraria, nas fontes de informação, explicação semelhante à que se poderia dar sobre o conhecimento de Cristóvão Falcão, Camões e os já mencionados poetas espanhóis? Para quê procurar um motivo particular a propósito do caso de Bernardim? Não enferma esta argumentação da posição facciosa em que se colocou Teixeira Rego, na ideia preconcebida de identificar o poeta das Saudades com o filósofo Leão Hebreu ou Juda Abravanel?

Quanto ao Crisfal, alude-se no Livro V à Écloga escrita num arvoredo por uma ninfa e descoberta por Filidor, um dos heróis da Novela de Frutuoso e o porta-voz de quase toda a poesia nela inserta (29). O cavaleiro, à semelhança do que faz noutros passos, gravou uma

composição laudatória ao poeta cujas desditas fizeram vibrar todas as almas (30). Nestes

versos, tão frouxos e magros de conceito, exalta-lhe o nosso cronista a expressividade emocional:

... ninguém, com grande vigia, ... dizer tanto chegaria

como tu, Crisfal, dormindo (31).

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XVI

No poema de Frutuoso, o que, ainda a propósito do Crisfal, se contém que possa relacionar-se com o aspecto biográfico, não daria matéria para reavivar a questão da autoria da Écloga, ainda mesmo quando a tese posta por Delfim Guimarães não estivesse completamente postergada, por falta de argumentação convincente.

O passo do referido poema-frutuosiano reza assim:

Tu, pastor e teu parceiro engrandeceis Portugal com português tão inteiro. Tu, em teus versos, Crisfal, e tu em prosa, Ribeiro (32).

A diferença entre os dois tu — Crisfal e Ribeiro — como entre o “pastor” e o seu “parceiro”, parece levar a supor uma destrinça de individualidades. Perguntaríamos, todavia, por que se salienta Bernardim apenas na prosa, quando é certo que Frutuoso lhe conhecia igualmente as Éclogas, ao ponto de as imitar.

Há, no referido poema, um pormenor biográfico que parece indicar a naturalidade do herói: Alter do Chão (33). Quando, porém, subsistisse qualquer dúvida sobre a dualidade de autorias, em relação às Éclogas de Bernardim e à de Cristóvão Falcão, existe outro pormenor biográfico que alude à morte do Poeta, possivelmente no mar:

Ouvi, Crisfal, que acabaste indo por mar navegando; em bom lugar te enterraste, viveste mares chorando, por sepultura os buscaste (34).

Por indícios mais seguros, sabemos que foi diverso o fim de vida de Bernardim, ocorrido em 1552, quando já se encontrava internado como louco no Hospital de Todos os Santos. Estamos certos de que o testemunho do nosso cronista poderá constituir-se em documento fidedigno, dado o culto que votava aos dois bucólicos quinhentistas. No entanto, ao contrário destes, em cujas obras não há nenhum sinal de erudição que dilua a densidade do surto lírico obsessivo, em Frutuoso a sua cultura clássica insinua uma presença nem sempre discreta e comedida, todas as vezes que uma oportunidade favorece a sua incursão. No plano da mitologia, manifesta-se logo no começo da Novela, a propósito do pasmo admirativo dos pastores ante a destreza do cavaleiro Filomesto:

“ou (sois) algum famoso piedoso, ou aquele Ganimedes, servo aprazível a Júpiter pera seu serviço, pela sua águia arrebatado do alto monte Ida...” (35).

Acrescenta-se, um pouco mais adiante, esta interrogação: “E se sois Marte, deus das guerras ou filho de Belona...” (36).

Noutro passo, lançando mão do simbolismo mitológico, eram Filomena e Eco que respondiam aos chamamentos dos companheiros de Filomesto, que se perdera destes (37).

O conhecimento dos heróis homéricos insinua-se nesta comparação: “a qual (loba) ele matou, como se fora um Heitor ou Aquiles” (38).

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XVII

Mas ó tu, geração daquele insano

O nosso cronista, logo no I Capítulo do Livro I das Saudades da Terra, imaginando uma longa alegoria da Verdade que, como é natural, não se subtrai à formação moral e religiosa do autor, nos transes dramáticos dessa transição entre as duas Idades, pinta-nos a transformação do Tempo, pai da mesma Verdade, despojado do ouro e pedraria, roubado pela guerra dos piratas, vestido de ferro e armado, para se defender dos inimigos que o assediavam. Se a imagem apraz ao gosto dos clássicos, como dissemos, não deixa de expressar uma ideia comum ao paganismo, mas, por outro lado, traz ressaibos do metaforismo bíblico, que tão bem soube expressar, em imagens, como a do Sião e Babilónia, o tema dum Salmo que inspirou uma das mais transcendentes composições camonianas. Neste se esabelece o cotejo das tristezas e males do presente com as alegrias e o esplendor dum passado edénico. No tom fortemente moralista de Frutuoso, a Verdade, nesse período recuado, não se vira coagida a utilizar os disfarces para se insinuar nos povoados.

Numa elegia (que só o é no nome, se tomarmos como padrão a contextura da elegia camoniana) há elementos bucólicos que nos infundem a ideia duma Idade de Ouro, própria da ambiência da écloga vergiliana:

Podeis beber quietos água fria, debaixo dessas faias, cedros, louros, com ouvir dos pássaros a harmonia. Virão por outra parte mansos touros, no suave jugo do pastor regidos, mostrando do divino Ser tesouros. Os lobos andarão fracos, perdidos, sem se atrever entrar nessa manada, fugindo pelos montes mais subidos. A terra por mãos doctas cultivada multiplicará tanto na semente,

que seja a toda a mais avantajada (39).

A demonstrar uma perfeita actualização nos novos moldes renascentistas, a poesia inserta na Novela do Livro V volve-se num estendal dos vários géneros e metros que utilizou, desde a écloga ao soneto, à elegia e, ainda à oitava rima, em que compõe as estrofes incluídas no capítulo XVIII (40), recitadas pela personagem que, no sonho de Filidor, chorava sentada sobre um penedo à borda do rio.

Ainda a abonar a sua cultura clássica, poderíamos vê-la patenteada num soneto laudatório que lhe mereceu o estilo de Garcilasso. O poema enquadra-se numa pequena narrativa, em que o poeta castelhano, com o disfarce de pastor — Nemoroso — “se lavava e enganava”, à maneira de Narciso, apaixonado pela ninfa Camila (41). Aqui, a mitologia e a filologia dão-se as

mãos nos nomes próprios (42), a juntar à lista doutros de diferentes proveniências e formação.

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A Poesia e a Novela de Frutuoso XVIII

almejada pista do real, não se tomam muitas vezes em linha de conta as surtidas da imaginação que, inerentes à essência da própria ficção artística, sob pena de esta se negar, se sobrepõem ao que à primeira vista se afigure como simples disfarce da verdade, sob as roupagens convencionais do género.

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Antecendentes e Influências Literárias na Novela XIX

II — ANTECEDENTES E INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS NA NOVELA

Ditoso destino foi este dos portugueses, ao contarem a primazia em dois géneros — o novelesco e o pastoral — que, originariamente separados, haviam de fundir-se numa obra, como a Menina e Moça. Deve-se a Cervantes (46) talvez o primeiro brado de justiça que se

ergue a confirmar esta verdade: o Amadis “el primero de Cavallerias”; a Diana “primero en semejantes”. O pastoralismo, alternando ou imiscuindo-se com a novela, veio dulcificar ainda mais, com o lirismo da natureza, o lirismo amoroso, que era já herança da matéria da Bretanha e obteve a máxima pujança no Amadis. Era uma pausa, digamos, posta na agitação febril das aventuras cavalheirescas que enxameavam no género. O Palmeirim surge como um dos máximos representantes da riqueza episódica exclusivamente novelesca. Menendez Pelayo, a respeito dos livros que compõem esta literatura cavalheiresca, que se prolongou por dois séculos, terminando no XVI, surpreende, entre outros defeitos, o de “serem horrivelmente enfadonhos”, com as repetições, as inverosimilhanças e o “tosco da estrutura” (47). E foi,

todavia, esta literatura que constituiu o repasto da curiosidade livresca de Quinhentos, até ao golpe de misericórdia aplicado por Cervantes. Incluímos entre elas o Palmeirim e o Clarimundo, a segunda das quais subordina o seu recheio episódico ao panegírico do monarca, com um fundo épico bem patente nas profecias de Fanimor, que tomam como assunto a História do reino lusitano até ao reinado de D. Manuel. O próprio título o evidencia: Crónica do Imperador Clarimundo, donde os reis de Portugal descendem. Há nesta uma intenção similar da da Eneida, ao filiar o povo romano na ascendência troiana, integrada naquele conceito de que as razões justificativas duma nacionalidade encontram um esteio tanto mais forte quanto mais recuadas forem as fronteiras das suas origens, ainda quando estas mergulhem na lenda ou na imaginação. Ao mesmo tempo, segundo confissão do próprio autor, há um exercício de estilo que prepara a elaboração de matéria de maior fôlego contida na sua historiografia.

A Diana situa-se no outro extremo da escala, concedendo a primazia ao bucolismo, com um verdadeiro sentimento da natureza. Há atitudes de espírito que se volvem em lugar comum do lirismo pastoril, tais como o encantamento da existência livre e da contemplação do mundo exterior, quebrado pelas violências do amor. Estes mesmos aspectos que vêm expressos na Diana — que talhou o figurino de muitas obras congéneres — surgem igualmente nas éclogas de Bernardim, onde se fazem sentir os estragos do amor na paisagem, de que fazem parte elementos animados, como os cordeiros, “bradando sem pascer, as ovelhas perdidas, entrezilhadas” ou ainda os “fracos, desmaiados mastins” (48). Na Diana, como na obra de Bernardim, há uma comunhão da natureza com o homem, na expressão dolorosa da paixão.

A predominância do pastoralismo da Diana não exclui a existência de episódios cavalheirescos que lhe estão entremeados: combates de cavaleiros, em que se medem rasgos de heroísmo, em manifesta desproporção de forças e de número.

O que teria determinado essa fusão dos dois géneros? O cavalheirismo do herói, misto de amoroso, legado pela herança de proveniência bretã, encontra uma afinidade com as formas do nosso lirismo que remonta ao período dos trovadores. O português, na expressão de Lope de Vega (49), é aquele que “llora de puro amor”. Não necessita dum estímulo externo ou dum

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Antecendentes e Influências Literárias na Novela XX

Não se pode dizer que tudo se passe assim na Novela do nosso Frutuoso. A natureza nele parece isolar-se daquele que a habita. Talvez mesmo não seja exacto dizer-se que aqui se pronuncia um sentimento da natureza. Quando, num passo da História dos Dois Amigos, fala a rocha a Filidor, pressente-se mais uma ficção mítica, ligada ao convencional da influência literária. O cavaleiro tende a transformar-se em pastor, especialmente quando o desengano de amor o impele a um refúgio do mundo e à busca da solidão. Assim acontece na Menina e Moça e assim sucede em Frutuoso. A metamorfose, quando não busca essa finalidade, integra-se naquele gosto do disfarce, que é comum às aventuras cavalheirescas. A incógnita e o mistério que a rodeia parecem dar maior volume e grandeza aos feitos praticados. No Palmeirim, o herói oculta-se sob o epíteto de Cavaleiro da Fortuna. Mas há outros, como o “Cavaleiro das Armas Negras”. No Amadis, é Beltenebros (aqui a cor etimológica da própria designação ajuda à capa do mistério), sem falar nos outros nomes, como Donzel do Mar, Cavaleiro da Penha Pobre, e Cavaleiro da Verde Espada. Quanto a Clarimundo, preenche três individualidades em Belifonte, Cavaleiro das Lágrimas Tristes e Cavaleiro Descuidado. Esse mesmo romanesco contaminou os românticos, como Herculano: no Eurico, é o Presbítero de Carteia, oculto sob as armas que justificam o epíteto de Cavaleiro Negro que, igualmente desconhecido nas suas hostes, pratica prodígios e abre enormes clareiras entre as hordas dos inimigos, os quais tremem de terror, quando a sua aproximação se assinala. Não nos lembra a presença desse aspecto na Novela de Bernardim, como na de Frutuoso, a despeito da outra espécie de disfarce que notámos sob a modalidade pastoral.

Se as façanhas cavalheirescas fatigam pela super-abundância, segundo a opinião de Menendez Pelayo, não é menos certo que o lirismo, mesmo o bucólico, tende, na expressão de Ricardo Jorge, “à monotonia, ao enervamento, à efeminação” (50). Eis a tónica do género que, perdendo a simplicidade e a espontaneidade do calor humano, inerente ao carácter repetitivo da emoção, ganha todavia em variedade, quando um tanto artificializado pelas surtidas da razão, na construção duma dialéctica sui generis, que se compraz nos jogos de inteligência, definidos no precisar dos conceitos ou no formular das antíteses.

Na Diana, como nas obras de Bernardim, o trocadilho ao serviço do paradoxo logra uma profundidade evidente no próprio conteúdo, tão diverso do simples jogo do barroquismo seiscentista:

E se eu quero porque quero, para quê deixar de querer? Que honra maior pode haver, se morro de tal morrer?

O viver para esquecer é tão afrontada vida que me está melhor querer até morrer de esquecida.

É uma verdade que se humaniza na própria experiência interior. Aqui também a morte, que aparecia como remédio dos males, é postergada, para que a violência destes persista.

Mal que com morte se cura tem o seu remédio à mão; não aquele que o coração foi pôr nas mãos da ventura (51).

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Antecendentes e Influências Literárias na Novela XXI

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Segundo o parecer de João Bernardo Rodrigues, o Livro V de Frutuoso teria precedido o VI, ao contrário do que pensa João de Simas, que o situava no fim de todo o Códice Manuscrito (53). E, conforme crê aquele ilustre estudioso, se a História dos Dois Amigos não figura no manuscrito da Biblioteca da Ajuda, foi apenas porque o copista não manifestou interesse em copiá-lo. Apenas o apógrafo pertencente aos Duques de Cadaval insere os primeiros nove capítulos da Novela (54). Aliás, já no Livro I das Saudades, a mencionada História dos Dois

Amigos parece anunciada pela Verdade e pela Fama neste passo: “Aqui vi uns sonhados álamos, com muitos versos escritos e, posto que nunca mais os tornei a ver, me deixaram tanto em que cuidar, que sempre cuido neles, porque conheci muito bem cavaleiros que os versos neles escreveram, e vi-lhes passar muitas mágoas no tempo em que no povoado passava as minhas; e ainda que eu diga ver isto sonhado, todavia obras acordadas foram que estes cavaleiros fizeram e escreveram, não em altos álamos que esta terra nunca criou nem cria, mas em altíssimos pensamentos que neles houve nela nascidos” (55).

Não há dúvida de que a inspiração para o Livro V já se encontra contida nos capítulos iniciais do Livro I, no qual figuram já as duas personagens abstractas da Fama e da Verdade, que se impregnam dum tom elegíaco artificial que já deixa trair, em certos modismos de estilo, o ascendente de Bernardim. A mensagem é, todavia, diversa, porque, como já atrás dissemos, ao intimismo contemplativo dum, que encontra uma determinante temperamental, se contrapõe a motivação moral ou filosófica do outro.

Ainda sobre o mencionado Livro I, há outros pontos de contacto com Bernardim, que não os de simples expressão: os motivos escolhidos, a concepção da natureza animizada e solitária, e a tónica da tristeza que, quando não assume uma forma racional explícita, é um mero artifício literário. Veja-se este exemplo:

“E, se desejo viver, é para ser mais triste e já agora os contentamentos me seriam maiores mágoas, ainda que, se para isto me aproveitassem, os não enjeitaria” (56).

Há paralelismos de temas como de atitudes e até de formas de expressão, que denunciam o decalque por demais evidente.

Bernardim: “Neste monte mais alto de todos (que eu vim buscar pela soidade diferente dos outros que nele achei), passava eu a minha vida como podia ora em me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora em me pôr, do mais alto dele, a olhar a terra como ia acabar ao mar e depois o mar como se estendia após ela, para acabar onde o ninguém visse” (57).

Frutuoso: “Nesta solitária serra, onde por acerto ou desastre me trouxe um dia o meu cuidado (a qual escolhi por couto de meu longo homízio pela soledade que nela achei, conforme à que comigo vinha) vivo de poucos dias a esta parte, porque logo, quando fugi dos povoados, não foi este o primeiro lugar para onde vim...” (58).

No conteúdo dos parêntesis que encerram os passos dos dois autores postos em cotejo, é ainda mais flagrante a paráfrase. Há paradoxos que mostram bem vincada a inspiração bernardiniana, até mesmo no paralelismo da expressão:

Bernardim: “Mas depois que eu vi tantas coisas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior — a tanta paixão vim, que mais me pesava do bem que tive que do mal que tinha” (59).

Frutuoso: “...vive a minha tristeza aqui tão contente, nesta minha soledade, que já me contento mais do mal que tenho que do bem que tive, sendo o bem passado cousa que muitas horas me apresenta grande contentamento no pesar que ainda hoje me dá sua lembrança...” (60).

No Livro V, logo no começo, surge igualmente o culto do paradoxo, que mostra o modelo sempre presente na paráfrase: “Foi sua desaventura ou ventura tamanha” (61), que lembra

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Antecendentes e Influências Literárias na Novela XXII

“Gran desaventura foi a que me fez ser triste ou a que, pela ventura, me fez ser leda” (62). Também aqui se exalta a dor como inerente aos homens que ali viviam:

“nela nasceu a dor que assi fez tristes alguns deles” (63).

No começo da História dos Dois Amigos, a exploração do paradoxo torna-se monótona pela repetição:

“tudo foram desaventuras, que por bem aventuradas foram julgadas daqueles que as passaram” (64).

Avulta ainda o mesmo gosto dos contrastes e das antíteses, contidos neste exemplo: “me podeis vós agradecer e em a não agradecendo ainda não fareis sem razão alguma, pois todo vos é devido”.

Na mesma esteira de Bernardim, que não logra, todavia, como já acentuámos, a limpidez do pensamento deste, há expressões rebuscadas que, no modo rebarbativo com que se formulam, tornam difícil a sua inteligibilidade, excedendo em muito os jogos conceptistas do século seguinte. A Fama, que pede à Verdade para contar a história, após a fala desta, responde-lhe deste modo:

“que estoutra vontade, que eu tenho de ouvir essa história, não é para agradecer, senão para satisfazer com fazerdes o que peço pera assim vos ficar em muito maior dívida do que devo com me agradecerdes a vontade, que só pretende o meu proveito e gosto” (65).

Há sentimentos altruístas que se filiam num princípio egocêntrico. Doemo-nos dos males alheios porque nos lembramos dos nossos próprios. À volta desta verdade, existe um fluido de simpatia humana que tem igual validade nos padecimentos físicos, como nas dores morais. E será tanto mais natural numa constituição psíquica, como a de Bernardim, em quem o eu se hipertrofia, ao ponto de constituir o centro exclusivo da sua mundividência, acrescida das implicações próprias de quem possui uma tão rica experiência interior, para a elaborar em matéria de arte. O comprazimento na dor, que se converteria em estafado lugar comum na dialéctica amorosa quinhentista, se não lograra, no caso presente, uma ressonância pessoal que supera a simples moda literária, torna mais complexa a mensagem contida neste passo das Saudades:

“Ali vi então, na piedade que houve d’outrem, tamanha a devera ter de mim, se não fora tão demasiadamente mais amiga da minha dor do que parece que foi de mim quem me é a causa dela” (66).

Frutuoso, expressando ideia semelhante, infunde-lhe, porém, um tom sentencioso, visível na forma generalizada que ele assume, a marcar a presença dum pendor reflexivo e abstractizante que se não deixa soçobrar nestas vagas emotivas, à maneira duma tela que trai a cópia do original:

“que a minha tristeza grande me ensina doer-me do mal alheio e quem do mal de outrem se dói do seu próprio se torna de novo a lembrar” (67).

A própria Verdade, figura abstracta e incolor, quando considerada no plano emotivo, mesmo para além da filosofia, produto da observação, que em certos momentos ela possa conter, reveste-se de roupagens que acusam a importação do figurino alheio, através duma plangência que quase soa a falso:

“por já não arrecear a morte, que me não quer levar, por mais dores nem mágoas que eu no mundo veja” (68).

No referido Livro I do nosso cronista, o começo do III capítulo denuncia igual inspiração do capítulo II do Livro das Saudades, com a descrição do espectáculo da natureza ao romper da manhã, a que não faltou o canto das aves (apenas se não fez referência ao rouxinol de Bernardim), como elemento melódico a coroar a festa para os sentidos, extasiados por essa sinfonia de luz e de cor. A acentuar essa nota de pessimismo, repetem-se os mesmos efeitos psíquicos, obtidos pela presença dos contrários na natureza:

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Antecendentes e Influências Literárias na Novela XXIII

Frutuoso: “...pus-me a cuidar muito queda quão grande era o meu mal, pois me não deixava ouvir aquelas alegrias daqueles passarinhos, senão para mas converter em seus pesares” (70).

O exemplo da natureza como símbolo moral também mostra o decalque manifesto: em Bernardim, o penedo “anojando” a água, que queria “seguir o seu caminho”, significa as contrariedades que também afloram nas coisas “que não têm entendimento”. Em Frutuoso, a pedra que demora a chegar à água, mas depressa chega ao fundo, lembra o triste pensamento da Verdade que, “ainda que com mais detença, chega à tristeza profunda” (71).

Diga-se de passagem que, no nosso cronista, a formulação do pensamento pela imagem não é nem tão sugestiva nem tão clara como a do seu ídolo. A propósito destas expressões de pessimismo, já Rodrigo Rodrigues notou muito lucidamente, sobre o seu biografado:

“Era talvez um optimista, raramente desanimado ou queixoso; no entanto, os primeiros oito capítulos do Livro I são de tristeza, onde a Verdade desiludida monologa com frases amargas acerca da gente do seu tempo e sua conterrânea...” (72).

A observação de tal contraste leva-nos mais uma vez a admitir que, posto de parte um pendor temperamental à maneira de Bernardim, que não ultrapassa a sua vivência emotiva de lírico, as raízes dessa tristeza, quando se não explicam por mero figurino literário, podem encontrar-se na formação duma filosofia moral, fundada na lição trazida pela experiência advinda do contacto com o mundo. Os anagramas Torme Nhervoga (73), que figuram no citado

Livro I, como irmãos da Verdade, dos quais ela mostra profunda saudade, parecem acusar tal origem. Dentro desse mesmo tom se explica a citação de Heráclito, cujas lágrimas eram movidas pela contemplação do espectáculo dos homens, dignos de “muito dó e sentimento (...), assim pelos males e trabalhos que sofrem, como pelos males e pecados que fazem” (74). Sempre, pois, o fundo do moralista, que, acentuando uma tónica espiritual do autor, define ao mesmo tempo uma nota de unidade, que se sobrepõe a outros aspectos porventura mais fragmentários e superficiais da sua obra de ficção.

É ainda a voz do doutrinador que constrói essa visão pessimista da existência, que não deixa de acusar a posição de determinado sector do pensamento cristão, muito embora este não encontre uma unanimidade de concordância, especialmente nos nossos dias. Frutuoso, descontados o processo mais simplista do conceito, como as profundas dissemelhanças e, até, oposições dentro do plano doutrinário, poderia considerar-se um precursor de Schopenhauer, ao conceber a dor como inerente ao mundo e aos homens.

“Não há bem, nem alegre coisa já que dure. Desaparecem os contentamentos da vida, como ligeiros raios e, ainda que tragam consigo uma súbita mostra de clara luz, logo ficam trevas. Todos os contentamentos têm os seus descontos de tristeza” (75).

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Estrutura da Novela XXIV

III — ESTRUTURA DA NOVELA

Transcrevemos atrás um passo do Livro I, em que se anunciava a elaboração da História dos Dois Amigos. A citação para nós reveste uma dupla importância: em primeiro lugar, a dum plano pré-elaborado, relativamente ao conjunto da obra do historiógrafo e do ficcionista; além disso, a contextura da própria novela contida na referência aos versos escritos nos álamos por cavaleiros. É que o género novelesco, tratado por Frutuoso, reveste um tratamento diverso das outras afins, tal a abundância de poemas que lhe estão insertos. Poderíamos até ser levados a pensar que, pelo menos na quantidade, a lírica constitui a parte principal e a novela mero pretexto para a enquadrar. Não existe o que se possa designar por relação orgânica entre os poemas e a novela. O conteúdo romanesco desta última, que abrange a narrativa das façanhas, é demasiado curto em relação à extensão apresentada por muitas das composições em verso. Nesta estrutura compósita, tão diversa de qualquer outra, reside talvez a sua única originalidade, se é que esteja aqui bem empregado o termo “original”, que normalmente figura para designar a excelência dum acto criador.

Voltando ao cotejo com o Livro das Saudades, de Bernardim, diremos que neste a poesia se constitui num clima envolvente de toda a obra, quer quando esta se incline para o bucolismo, quer quando oscile para a ambiência novelesca. Em Frutuoso, a poesia é um acrescento que se impregna dum perfume moral de raiz mirandina, de modo a volver-se em momento de repouso das actividades do cronista que procura uma surtida no mundo da ficção. E nesta — forçoso é confessá-lo — manifesta-se geralmente como hóspede ou como peregrino, que não conseguiu transpor os umbrais do templo em que só penetram os verdadeiros ungidos das Musas. Frutuoso afigura-se-nos como um daqueles versejadores — nem sempre fácil, porque dotado de pouca inspiração — que recorrem à memória apetrechada das novidades do Renascimento quinhentista. Nem a sua obra venceria decerto o juízo do tempo, se esta se circunscrevesse ao conteúdo do Livro V e não revelasse que era outro o pendor do seu autor, demonstrando pujantemente o alto estofo do nosso maior cronista insular que, em méritos, pode conviver em távola redonda com os outros historiógrafos contemporâneos.

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Estrutura da Novela XXV

No que respeita aos temas novelescos, há pequenas aproximações da obra de Frutuoso com as suas congéneres do século, as quais tanto podem denunciar os vestígios das leituras feitas, como simples coincidências. Assim, o encontro de Filomesto com o filho mais velho dum mercador, que o identificou como o menino que ele conhecera e que deixara de ver (77), lembra

um pouco o reconhecimento de Amadis, desconhecido até determinado momento. É a figura da Verdade que, em Frutuoso, inicia o conteúdo do Livro I e conta à Fama a História dos Dois Amigos. No Clarimundo, é a mesma Verdade que Fanimor invoca para a sua profecia. Estará aqui contida qualquer sugestão? O cotejo da cronologia, pelo menos, não anula a hipótese, se alguém a pretende formular.

No Palmeirim, é mais notório do que em Bernardim ou Frutuoso o recurso ao maravilhoso. Todavia, na Novela de Morais, como na do nosso cronista, há um porco montês perseguido pelo herói, que depois desaparece, com o fim de o encaminhar para uns formosos paços desconhecidos (78).

Na Távola Redonda, existe a espada invencível de Galaaz. No Clarimundo, há uma entregue pelo citado adivinho Fanimor. Na História dos Dois Amigos, de Frutuoso, há duas espadas cuja magia salva Filomesto e Filidor dos grandes perigos.

No capítulo IV da Novela de Frutuoso, alardeia-se o conhecimento de todo o cerimonial da Cavalaria: os trajes e costumes, como as armas brancas, a vigília no templo, precedida da lavagem da cabeça e, finalmente, o acto de armar o cavaleiro, cujo padrinho é Narfendo (79). Há igualmente as perguntas sacramentais, como a entrega das esporas e da espada, tirada da bainha, depois de cingida, para que se lhe toque com ela na cabeça, até ao beijo do estilo na face.

Filomesto, à vista da proposta de casamento com Ricatena (80), identificar-se-ia, na sua

recusa de místico asceta, com Galaaz, se mais adiante não manifestasse a sua paixão terrena por Tomariza. Uma recusa que não sofreria decerto a tolerância ou o perdão de D. Afonso de Portugal, que aconselhou o autor, ou melhor, o refundidor do Amadis a emendar o passo de Briolanja. Também na Novela figura o juízo de Deus, que ainda prevalece no século XVI e é citado pelo autor como explicação da recusa de Tomariza em aceitar o amor de Filomesto: tomando-a como instrumento da sua justiça, Deus castigava-o de ter repudiado a paixão de Ricatena. Eis mais um testemunho da presença do ideal da Cavalaria.

Como quer que seja, na postura do herói da Novela de Frutuoso há um comedimento que, a carácter com a condição ou profissão religiosa do seu autor, é, ao mesmo tempo, herança de Bernardim, que contrasta um pouco com a atitude mais pagã do Amadis, muito embora, na opinião de Costa Marques (81) a paixão do Donzel do Mar não chegue a insinuar-se como

“pecaminosamente adúltera”.

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A Poesia XXVI

IV — A POESIA

Falámos dos artefactos próprios da Novela. Atentemos de novo na Poesia.

O Capítulo X da História dos Dois Amigos é inteiramente preenchido com uma Écloga, muito pobre do elemento da natureza, ao contrário das de Bernardim. O bucolismo apresenta-se, pois, mais convencional, enfaixado em roupagens exteriores, abundante em narizes de cera próprios do género, a que falta uma vivência pessoalizada que pudesse insuflar-lhe um sopro de autenticidade. Há um passo que parece uma paráfrase de versos duma Écloga de Bernardim:

Frutuoso:

Do tu rabel preciado Bernardim: que era sin su semejante?

Do tu alegre semblante, Qu’e do teu rabil prezado, tu seso tam libertado? teu cajado e teu surrão? Dolo tienes trastornado Tudo te vejo mudado; sin gasajo, i sin plazer, tinhas um cuidado então, que alegre solias ser (82). tens agora outro cuidado (83).

A despeito da correcção do verso, que mostra, da parte do autor, um manejo mais perfeito do redondilho do que de qualquer outro metro, a própria écloga parece um passo quase metido a martelo, inteiramente desarticulado da acção da Novela, o que vem mais uma vez confirmar que muitas das composições de Frutuoso existiriam muito antes da factura da mesma Novela, aguardando a sua inserção nessa pretensa unidade. Há nela um desgosto de amor que tanto se pode aplicar a um herói da história como a qualquer outro. Como ingredientes da convenção bucólica, na tessitura das personagens e no contexto da própria composição, surgem a mudança de semblante do pastor, os cuidados de amor, o confidente e o subsequente diálogo: Como resultado lógico, há o definhamento do gado:

A solas andan pasciendo tus ovejas sin pastor, las mastines sin sñor dexanlas, y van huiendo; lobos las andam siguiendo y no las quieres valer aun que las veas comer (84).

Também a morte aparece como refúgio dos males, que se contagiam à natureza, subjectivada à maneira do Poeta das Saudades:

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A Poesia XXVII

Abundam sobremaneira os elementos prosaicos, a denunciarem a ausência dum requinte de sensibilidade na própria escolha dos símbolos, assim como a escassez da profundidade amorosa na sua expressão humana e literária, resultado precisamente duma experiência interior que lhe falta. Em certo passo da mesma Écloga, o diálogo de Rodrigo e Juan pastor imita o duelo razão-sentimento, sustentado pelos interlocutores nas composições ribeirescas:

Rodrigo:

Que pueden vencer amores, pues Dios nos puso en poder el querer i no querer,

de que nos hizo sñores; (86).

Juan pastor:

la no manda la razon, aunque essa es la verdad, mas manda la voluntad, que nos puso en subjecion; de aqui nasce mi passion, de mi voluntad querer dexarse de amor vencer (87).

Ainda sobre o mesmo binómio irredutível razão-sentimento, haveria a acrescentar que, enquanto em Bernardim a supremacia do afectivo se encontra polarizada por uma interiorização, em Frutuoso as considerações de Juan pastor assemelham-se, dum modo geral e paradoxalmente, a uma dissertação própria duma dialéctica fria, de feição conceptual, que não chega a fixar-se numa expressão vivida.

Para que a sombra de Bernardim nunca se dissipe da novela frutuosiana, entre os muitos passos laudatórios do mencionado Livro V inclui-se um do Capítulo XIV, onde o autor integra referências a trechos da Menina e Moça. Assim, Filidor em busca de Filomesto, encontrou os paços de Lamentor, onde, segundo reza o próprio título do Capítulo, “vendo escritas as Saudades de Bernardim Ribeiro, que por outro nome se chamou Bimarder, fez uns versos em seu louvor“ (88). Eram aqueles os paços onde falecera Bileza (89), apaixonada de Lamentor e onde se criara Aónia, “que tanta dor deu ao triste Bimarder e a formosíssima Arima, por quem Avalor se perdia” (90). Tal inserção e outras similares, onde abundam as composições

panegíricas das celebridades literárias do tempo, parece conferir à Novela o carácter de mera brincadeira, para desfastio espiritual do nosso cronista. Os versos dirigidos a Bernardim são medíocres no conceito e na forma.

Outro capítulo, o 12.º, é constituído por um cantar que desenvolve o tema contido no mote:

Gavião, gavião branco vai ferido e vai voando.

Neste cantar, falho de inspiração, como tantos outros poemas, consentâneamente com a sua extensão enorme, estão ausentes a espontaneidade e o chiste da redondilha camoniana composta sobre um tema semelhante:

Perdigão perdeu a pena.

Referências

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