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CAPÍTULO DÉCIMO TERCIO

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO DÉCIMO TERCIO

CAPÍTULO DÉCIMO TERCIO

DE UMA AVENTURA QUE ACABARAM FILOMESTO E AÉNIO NO LAGO DAS RÃS, DONDE LIVRARAM UMA ESPOSA DE UM LAVRADOR, E DO QUE MAIS LHE ACONTECEU

Partidos Filomesto e Aénio desta terra, como sua tenção não era buscar outra, somente fugir desta, depois de navegarem muitos dias, na primeira que acharam (ainda que não era porto de mar), com suas armas e cavalos e com seus escudeiros saíram um dia.

E caminhando junto de uma grande serrania por um ermo, lhe anoiteceu nele, não deixando de prosseguir seu caminho pela escura e tormentosa noite, sem saber para onde caminhavam. E, sendo já de madrugada, ouviram cantar muitas rãs, que em uma grande alagoa estavam, com tanto e tão confuso arruído, que parecia vir correndo e arrebentando toda aquela grande serra sobre eles, e, de quando em quando, ouviam uns gemidos mui sentidos, que de mulher queixosa lhe pareciam. Andando, então, pera aquela parte, onde aqueles ais sentiam, foram dar em aquele lago, cheio de infinitas rãs, que com seus importunos brados (como as cataratas do grande Nilo) ensurdeciam a todos os que por ali perto passavam.

Maravilhado Aénio daquele novo cantar, que nunca ouvira, lhe declarou Filomesto os pequenos corpos e curtas gargantas, que (como grilos) tão grandes e horrendas vozes formavam, como em pequeno assovio se forma, com o assopro de pequeno menino, grande grito.

Os gritos e gemidos da humana voz pareciam vir do meio daquele lago, lá do centro dele, e, querendo entrar ambos pela água a ver quem fazia aqueles querelosos queixumes, não pôde Aénio passar avante, impedido pelo grande cardume das rãs, que, ao derredor, a salto se moviam com tão apressurado e furioso ímpeto, que não havia quem tal encontro esperasse, senão Filomesto, ficando Aénio, com assás trabalho, esgrimindo a todas as partes na seca terra contra este exército. Rompia por ele n’alagoa Filomesto, com grande ligeireza, ferindo muito à pressa o seu cavalo, até que, quase cansado, chegou a um outeiro, que no meio do lago estava, onde achou uma fermosa donzela, liada (como fardo) com muitas cordas, dando aqueles ais e gemidos, que cá de fora ouvira. E, tomando-a por uma daquelas cordas, levando- a na mão dependurada, deu volta a seu cavalo, que com grande dificuldade pôde romper pelo ligeiro círculo daquelas rãs, que de travès o feriam. E como acabou de se por fora do lago, onde Aénio e os dois escudeiros esgrimindo estavam, com os ventos se recolheram as rãs todas a ele, sem mais cantar, nem ferir, ficando todos em uma segura paz e sossego.

Como na tormentosa e escura noite, quando furioso relâmpago, com seu horrendo estrondo e espantoso trovão, parece que rompe os céus e abre as fortes torres e que tudo vai assolando quanto acha diante, e, depois que amanhece, a clara luz mostra aos viventes que nenhum dano deixou feito, senão só o seu espanto e medo, e como o que está sonhando que vai caindo por grandes riscos e rochas, despedaçando nos saltos delas seus membros, que, acordando, acha inteiros e descansados em seu leito, assi, passada a fúria do raio das rãs e seu estrondo e peleja, ficou inteiro tudo quanto elas feriram e espantaram, e, como acordando do grave sono e sonho, ficaram descansados os membros destes cavaleiros e escudeiros, sem perigo algum dos saltos e golpes das rãs, que como caídos por rocha sonhavam. Assi são todos os encantamentos, que, por fim, não são senão como espantos e sonhos.

Era já quase manhã quando Filomesto acabou de sair do lago com a donzela e, vendo-se em tranquilidade, amansada já a tormenta passada, mandou a seu escudeiro que logo desatasse aquela donzela daquelas prisões e laços, em que (como em rede) estava liada, o que querendo fazer o escudeiro, não pôde acabar, e, ajudando-o o escudeiro de Aénio, sem também poder desfazer os laços, provaram com suas espadas a cortá-los. E vendo Aénio que nem com isso cortavam as cordas, descendo-se de seu cavalo, provou com sua espada a

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querer fazer o que os escudeiros não podiam; mas, por mais que nisso trabalhou, nada fez, porque a sua espada, como bota, não cortava, o que entendendo Filomesto ser encantamento, apeando-se, com a sua facilmente cortou todas as ataduras.

Havia dado Narfendo a Filomesto, quando na sua corte andava, porque o amava muito, duas ricas espadas, a que nenhum encantamento empecia, uma das quais ele trazia consigo e outra lhe trazia sempre o seu fiel escudeiro, até depois de vindo a esta terra, onde também pelo grande amor, que a Filidor tinha, lhe deu uma delas, pera ficarem iguais nas armas os que no amor o eram. E por isso pôde só Filomesto entrar no lago das rãs e livrar e desatar a donzela, à qual, querendo ele perguntar a causa de sua prisão e seus gemidos, foi atalhada sua pergunta por seu escudeiro, que, com alta voz bradando, disse: “Subi, senhores, em vossos cavalos sem detença, que assoma gente armada, perto, sobre aquele outeiro; não vos tomem descuidados a pé alguns imigos”.

Cavalgando logo os dois cavaleiros, se puseram em som de defender-se e a cavalo esperar a seus contrairos. Mas a donzela os assegurou deste sobressalto, que tiveram, com sua fraca e cansada voz, dizendo: “Não são contrairos os que vêem, senhores cavaleiros, mas é meu esposo, acompanhado de seus e meus parentes, que ontem foram daqui, já alta noite, sem me poder livrar desta prisão onde vós me achastes, e agora tornam tão cedo a buscar, com tanto cuidado e pressa, a que ontem tão tarde, com tanta dor e pena, aqui deixaram”.

Acabadas estas palavras, acabou de chegar a ela seu esposo, que diante de todos vinha, como a quem mais que a ninguém doía a sua dor e perda. E, antes que ele falasse, lhe disse ela: “Agradecei, senhor esposo, a estes senhores cavaleiros, ao menos com palavras, o bem que me fizeram em me livrar esta noite da dura prisão, onde vós ontem me vistes sem remédio, já que não há obras bastantes, nem nós somos poderosos, pera servir uma mercê tão grande”.

Descendo-se então o esposo de seu cavalo, queria beijar os pés a Filomesto e a Aénio, o que eles não consentindo, se apearam também dos seus e o abraçaram; e o mesmo fizeram a toda aquela nobre e agradecida companhia.

Depois de suas devidas cortesias, tomando o esposo nas ancas sua esposa e, começando a caminhar, foi contando pelo caminho a Filomesto e a Aénio, por ser deles perguntado, aquele caso, assi dizendo:

“Anda nesta terra, senhores, uma maga, que muito desejou casar comigo, e, por eu ser homem do campo e de aldeia, nunca me pareceu bem casar com mulher de corte, nem um vilão com fidalga, nem o rústico com mulher mui sábia, como também nem o muito velho com a menina e moça, nem com velha mancebo, pelo que me ensinam os meus bois, que nunca pude, na lavoura que faço, fazer andar a igual passo o novilho indómito com o boi velho, já ensinado ao arado, que nunca jamais ambos tiveram igual parelha. Por esta experiência que do campo tenho, aprendi como poderei viver quieto em casa, onde dois animais, diversos em condição ou em idade ou qualidade, mal se poderão ajuntar em um mesmo jugo, pois no campo dois desta sorte nunca pude ver bem regidos, nem irmanados. Não quis ter contenda com maga sábia, sendo rústico, nem com mulher velha, sendo mancebo, já que Deus quis me não chamassem a mim Gonçalo, conforme ao antigo adágio. Esta maga, que digo, vendo-me desposar ontem com minha esposa, a levou logo pelos ares, diante de todo povo, e a pôs na alagoa, donde vós, senhores, a livrastes. Logo vim com toda esta boa companhia armada, por ver se podia fazer o que vós fizestes, e, por choverem sobre nós as rãs como grandes pedras, com tanto ímpeto e multidão, que pareciam outra furiosa e intolerável praga de Faraó no Egipto, não podendo todos nada, por poderem mais umas fracas e palreiras rãs que a gente rústica, de palavras curtas, nos fomos, desconfiados, esta noite pera casa, sem remédio, e com a mesma desconfiança tornamos, mais acompanhados com a gente de todo o povo, esta manhã, que tão alegre vimos, com vos ver, pois juntamente vi minha esposa livre”.

Nestas palavras e noutras de agradecimento chegaram ao lugar, onde todos foram bem agasalhados com festas de toda a aldeia, pelo contentamento do aldeão esposo.

Mas a roda, que anda, também desanda, e mal pecado mais presto sabe decer para subir. Estava este esposo contente, e durou pouco seu contentamento, como em todos os contentamentos e festas acontece, que presto acabam. A esposa vinha tão enferma do frio que passara aquela noite na alagoa e o medo que houvera, que, vindo já quase sem espírito, acabou de expirar ao outro dia. Se a aldeia sabia dantes festejar, também depois soube chorar.

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Desgostosos deste sucesso, os dois cavaleiros, depois de haverem consolado com boas palavras o triste esposo, despedindo-se dele, foram adiante caminhando. Não eram muito alongados do lugar donde partiram, quando, diante de si, por antre um arvoredo, viram sair, atravessando o caminho, uma mulher de muita idade, com um arco nas mãos e uma aljaba de setas na cinta; e pondo-se com o rosto pera eles, estando queda, lhe disse: “Lembre-vos, cavaleiros, o agravo que me fizestes no lago das rãs e o fim triste que, depois, na aldeia vistes e o que, agora, no caminho vedes; pois vedes mulher com estas armas de Cupido, e em algum tempo (e não tardará muitos anos) vereis e entendereis se me sei vingar de quem me ofende”. E acabando de dizer isto, acabando de atravessar o caminho, foi desaparecendo por antre as bastas árvores e fruteiras, que, ao longo dele, prantadas estavam.

Filomesto e Aénio bem entenderam que aquela devia ser a maga velha, que queria casar com o lavrador mancebo; e, sobre as palavras que lhe ela disse, foram gastando outras muitas, dando cada um nisso diversos pareceres e sentenças, não atinando o que lhe podia acontecer andando o tempo, tendo somente algumas suspeitas duvidosas de alguma certa vingança, que a maga quereria tomar deles. Mas, como se passaram alguns anos sem logo a provarem, reprovaram os ditos das velhas, que, às vezes, com a experiência que têm, com que as notam, vêm a ser verdades cedo experimentadas e tarde cridas.

Mas deixemos ir agora estes dois cavaleiros seu caminho, com suas dúvidas, pera vos contar, Senhora, a certa e não duvidosa partida de Filidor desta terra em busca deles.