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DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO DUODÉCIMO

CAPÍTULO DUODÉCIMO

DO CANTAR QUE FICOU DA PARTIDA DOS TRÊS AMIGOS FILOMESTO, AÉNIO E FILIDOR

Gavião, gavião branco vai ferido e vai voando.

Em um bosque de arvoredos, junto de um campo de flores, vi uma caça de amores, vi de amores seus segredos; os ventos estavam quedos, mas o caçador, caçando, vai ferido e vai voando. Os ventos estavam calma quando viu a garça alçar, e por querê-la caçar, ficou ele preso d’alma; cuidou de levar a palma, mas ela lha vai levando; vai ferido e vai voando. De quem era o gavião, vendo tão fermosa garça, com cubiça de tal caça, soltou-lhe o cordel da mão; dias vêm e dias vão, o gavião, não tornando, vai ferido e vai voando. Quase os dias que viveu, todos gastou na demanda; ei-lo anda, ei-lo desanda, até que enfim a perdeu; por perdê-la assi, morreu; por tal perda morte achando, vai ferido e vai voando.

Capítulo Duodécimo 42

Pera trás não quis tornar, depois que se viu ferido; do viver aborrecido vai seguindo seu pesar; nunca se quis apartar da morte, que o vai matando; vai ferido e vai voando. Tanto vai contemplativo na garça e seu parecer, que, mudado seu querer, ficou, de livre, cativo; eis vem morto quem foi vivo, caça do que ia caçando, vem caindo e foi voando. Não voou, como soía; saiu fora do costume; quis-se pôr tanto no cume, que da terra se não via; leva só por companhia penas, que o vão alçando; vai ferido e vai voando. Subiu tanto pera o alto, que, por se ver tão subido, lhe faltou vista e sentido, e deu de cima gram salto; mas do salto ficou falto da vida, que vai faltando; vai ferido, e vai voando. No alto foi perder a vida; não caçou como outros caçam, que na terra se embaraçam; este deu maior subida; tanto trouxe mor ferida. quanto mais se foi alçando; vai ferido, e vai voando. Se voara mais rasteiro, nunca tanto mal passara, e tanto não lhe acertara o rapaz, cego besteiro; mas, enfim, fim derradeiro a qualquer está esperando; vai ferido e vai voando.

Capítulo Duodécimo 43

Alçaram-se em seu favor uns gaviães mais pequenos, mas mal puderam os menos, pois que não pôde o maior; antes foi para mor dor, que tomou, não a tomando; vai ferido e vai voando. Todos os seus pensamentos foram detrás do primeiro; mas primeiro e derradeiro não viram senão tormentos; passa descontentamentos quem tal vida anda passando; vai ferido e vai voando. Ia assi tão transportado, com ver tanta fermosura, que mudou sua figura e ficou garça tornado; tanto pôde o seu cuidado, que o foi garça tornando; vai ferido e vai voando. Branca cor, não contrafeita, leva por honestidade, porque pena de verdade penas de outra cor enjeita; as penas da asa direita, de grandes, vão arrastando, vai ferido e vai voando. Os seus bens esquerdos vão, mas seus males vão direitos, quão banhados vão seus peitos das águas do coração;

não vai ele alegre, não, pois seus olhos vão chorando lágrimas, que o vão banhando; Esperança não a viu;

sem ela viveu na terra; foi buscar morte à serra, seguindo quem o feriu. Nunca tal coisa se ouviu, tanto amar desesperando, ir já morto e ir voando.

Capítulo Duodécimo 44

Cinco librés (sic) (116) se soltaram, pera que o ajudassem,

e, antes que à garça chegassem a seu gavião mataram;

os seus o despedaçaram, garça ser ele cuidando; vai ferido e vai voando. Um os olhos lhe tirou. olhos que ele não quisera, porque, se não os tivera, não vira quem o matou;

mas faz-se o que Amor mandou, rou, rou, rou (sic) velhas bradando; vai ferido e vai voando.

Outro libré (sic), bom de rasto, seus narizes lhe comeu, porque nunca conheceu senão cheirar um só pasto; sempre ele cheirou de casto; casto não lhe aproveitando, vai ferido e vai voando. Um libré (sic) mais avarento, mais cobiçoso e escasso, leva um braço e outro braço, braços sem merecimento sempre abraçaram tormento, favores nunca abraçando; vai ferido e vai voando.

Os dois librés (sic) que ficaram, levaram boca e orelhas; boca, em que as abelhas mel de doçura criaram, orelhas que ouvir usaram disfavores, desde quando ficou ferido, chorando. Eis a Acteão, caçador de seus cãis próprios comido; eis este, de seu sentido, sentiu toda sua dor. Eis o triste amador feito caça; indo caçando, vem ferido e foi voando.

Capítulo Duodécimo 45

Ó sentidos tão sentidos, no sentir tão acabados, como sois mal atentados, de amor tão desconhecidos, do bem desagradecidos; do mal vos is agradando do Senhor, que vai penando. Depois se falou na praça, como é costume das gentes, que eram nomes diferentes e que era a garça graça; mudou-se o nome da caça, que seu caçador mudando, deixou ferido, acabando. Ele o seu não mudou; mas, pois, com penas subia, como ave de altenaria (117),

dizem que assi se chamou; pensamento sempre voou, mais que gavião caçando, pois nunca está descansando. Os nomes trocados são por morto vivo caçando, por graça garça chamando, e por falcão gavião. Na alta gávea, de paixão, com pena, vai vigiando,

por mar de mal navegando (118),

Ó vós outros amadores, n’alto lugar não ameis. por que tal queda não deis, como esta destes amores; d’alto vem maiores dores; n’alto está mais perigando quem vai ferido voando. Aénio, seu grande amigo, vai em sua companhia; vai-se, quando ele se ia; já o leva lá consigo; fica sem nenhum abrigo Filidor cá, só, chorando quem vai ferido voando.

Capítulo Duodécimo 46

Vai-se triste, degradado, com suas máguas tamanhas, a longes terras e estranhas, sem degradar seu cuidado; destas terras alongado, Filidor o vai buscando, um ferido e dois chorando.