• Nenhum resultado encontrado

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO NONO

CAPÍTULO NONO

COMO FILOMESTO, INDO A CAÇAR EM UMA SERRA, FOI TER AOS PAÇOS DO PAI DE TOMARIZA E, VENDO-A, SE NAMOROU DELA, E DO MODO QUE INTENTOU PERA LHE

FALAR E DESCOBRIR SEU AMOR

Passando a vida Filomesto com esta tão amiga e honesta companhia, livre tratando com livres, livremente, sem arreceio do cativeiro em que depois se viu, se foi um dia à caça.

E, andando em uma grande serra, acertou de ver um porco do monte e, seguindo-o, correu tanto no alcance dele, que perdeu os companheiros de vista, e tanto se alongou deles, que veio ter a um espesso bosque, junto do qual, perdendo o rasto do porco, viu uns fermosos paços, que, assi como davam grande graça ao mesmo bosque, assi também a recebiam dele não pequena.

E, andando ao redor deles, espantado do que nunca nesta terra vira, nem cuidava ver, por dantes não ter ouvido que tais paços houvesse, alevantando os olhos pera umas ricas varandas deles, viu nelas uma fermosa donzela, filha do senhor daqueles paços e de muitas terras ao redor, que Tomariza se chamava, a qual naquele instante estendia os olhos por aquele verde bosque, bem descuidada de por ali poder ver alguém, nem ser vista de pessoa humana. Era Tomariza de tanta virtude e gravidade, junto com sua extrema fermosura, que, em pondo Filomesto os olhos nela, como se os pusera fixos ao claro e resplandecente Sol, ficou cego e preso de seus amores. Ia pera caçar o porco montês e ficou feito caça naquele mato.

Não conhecia dantes a Tomariza, nem a tinha visto, mas vendo desta vez sua honestidade, como ele era honesto, afeiçoou-se e entregou-se de todo ao que lhe era tão semelhante e conforme, porque, assi como ao vão e doido prende o bom parecer e vaidade da fermosura, assi ao sisudo e prudente cativa a virtude e honestidade, a qual tem esta natural condição, que, onde quer que está, se enxerga e resplandece e responde no rosto do que a tem, sem que ninguém lho pergunte.

Esteve um pouco transportado e, tornando a si, começou a chorar tantas lágrimas, sem ele se entender nem saber o que fazia, que em breve espaço achou todo seu peito banhado delas. Dizia meu pai (contando isto) que, como amor se prantava novamente no peito de Filomesto, quis ser regado com lágrimas não cuidadas, nem costumadas dele, como nova pranta que ao prantar se rega, porque (ainda que sem fruto algum) havia de crescer e durar muitos anos regada de choros infinitos e criada neles.

Dizem que viu isto Tomariza das varandas, onde estava, e, receosa do que suspeitou que, por a haver visto, chorava aquele cavaleiro, se recolheu muito depressa, sem, por então, ser mais dele vista; mas, como seu sol se encobriu, enxugando suas lágrimas o melhor que pôde, rodeando os paços, foi ter à porta deles, à qual batendo mansamente, lhe foi aberta por um page, a que perguntou cuja era aquela casa, e, informando-se largamente de tudo quanto desejava, mandou por ele um recado ao senhor dela, pedindo-lhe houvesse por bem agasalhar ali aquela noite um homem que andava perdido naquele mato.

Foi logo bem recolhido e servido, e muito melhor hospedado, do pai e dois irmãos de Tomariza, Aénio (114) e Sisfranco (115), que lhe ficaram estranhamente afeiçoados, depois que

deles foi conhecido e conversado aquela noite; porque a fama, e mostras do bom e forte, lhe faz própria pátria toda terra e a casa alheia sua. Não dormiu Filomesto toda aquela noite e, vindo a manhã, se despediu do pai de Tomariza, mas não dela.

E foi crescendo este amor tanto, fazendo ele tantas coisas em armas por seu serviço, que dali em diante era tido por homem de dobrado esforço e valentia. Ordenava muitos jogos de canas, muitas justas e torneios, a seu modo, só por ver a Tomariza, sem ninguém saber de seu

Capítulo Nono 23

amor, senão somente seus amigos Filidor e Natónio. E, não a podendo ver, nem menos falar- lhe, tratou com um bom homem, peneireiro, que o quisesse levar por seu criado àquele mato, pera ver se a pé podia alcançar melhor o que a cavalo tanto lhe fugia. E, dando disto conta a Filidor e a Natónio, se foi com eles um dia vestir a casa do novo amo; tomou por arnês umas peneiras sobre seus ombros e cobriu por capacete um rebuço. Estava vendo isto Filidor só consigo, cuidando quão convenientes armas eram aquelas a Filomesto pera tal encontro; porque o amor, só ao Criador devido e dado às criaturas cá, no mundo, tudo julgou, como aquele ofício, subjecto a vidade e ser tudo vento.

Saindo da cidade, assi armado Flomesto destas novas e não acostumadas armas, e (ainda que leves) mui pesadas, detrás de seu novo amo, o foram seguindo, dissimuladamente, Filidor e Natónio até fora da cidade. E, como Natónio era sempre alegre, quis usar de suas zombarias em tempo de tristezas alheias e, vendo Filomesto no campo, caminhando aquele trajo, chamando por ele em voz alta, lhe disse: “Ah! senhor peneireiro, dizei-nos donde é o vento?” E, virando os olhos, Filomesto respondeu, dizendo: “Da serra vem pera onde com ele contrário navego”; e, tornando a virar o rosto, se foi seu caminho. Onde lhe aconteceram muitas coisas dignas de contar, se aquele seu ofício dele fora digno.

Somente direi duas delas. E a primeira foi que, chegando àquela serra, passando de caminho por casa de um rico cavaleiro, visto, foi chamado pera lhe comprarem peneiras. Mandava a senhora de casa, de dentro, às criadas que lhas levassem, e, tornando a mandar as que lhe levavam, a cada uma punha tacha, ou de muito bastas ou de muito ralas, e as enjeitava todas, até que, não lhe contentando alguma, saiu em pessoa a escolher nelas e, tomando uma peneira na mão, lhe disse Filomesto: “Não pode, senhora, deixar de ser extremada em tudo, pois, com quantas peneiras lhe enviei, em todas pôs extremos”. E a honrada e virtuosa dona, olhando pera ele, e tornando a virar o rosto, se recolheu pera casa mui depressa, como se dissera: “Diabo deve ser isto e não peneireiro”.

Foi-se dali Filomesto e, passando por uma casa onde convidaram a seu amo, que, estando lá comendo, por não poder menos fazer, também convidavam o criado, e, escusando-o seu amo, que não estava pera comer com grande dor de dentes que tinha, atentaram umas mulheres de casa ali por ele e, vendo-lhe somente os seus fermosos olhos, suspeitaram ser mulher e amiga do peneireiro, que consigo encoberta trazia, o que entendendo Filomesto, abaixando o rebuço, de uma parte lhes mostrou na face sua barba, com que restituiu a honra a seu amo, que estava já quase perdida. Assi são os temerários juízos deste mundo enganoso e mentiroso: acolá o tinham por feio diabo embuçado, e aqui o julgam por fermosa donzela encoberta, sem ser mulher, nem demónio; mas é verdade que o mesmo demónio, pera condenação de muitos, estas semelhantes aparências urde e tece, e sem nenhuma ordem, nem figura, as ordena e faz suspeitar e crer.

Passando adiante por aquela serra, Filomesto sendo já perto da casa do pai de Tomariza, ficando-se ali antre umas árvores escondido, mandou o criado a seu amo que fosse diante e que, se não achasse em casa o pai e irmãos de Tomariza (como ele tinha crido por suas inteligências e avisos), lhe viesse ali dar recado, pera ver se podia ir falar com quem o fazia triste.

Dizia meu pai que não era outra intenção a de Filomesto nesta ida, senão ser ouvido de Tomariza naqueles hábitos vis, em que ia, de que o monte não tem suspeita alguma; porque também não cria, de quem a tenha; e saber dela se queria casar com ele, pera com sua vontade a pedir a seu pai por perpétua companheira, como ele a merecia ter, pois seu amor era tão alto, que o trazia ali em traje de tão baixo ofício, e tão extremado, que lhe fazia fazer um tal extremo, nunca naquela terra visto, nem ouvido.

Mas quem não tem ventura no principal também lhe vem a faltar no acessório; e assi aconteceu desta vez, que, achando o peneireiro discreto o pai e irmãos de Tomariza em casa (por impedir certo negócio sua ida, que determinada tinham pera fora), dissimulando com eles, lhes disse que, vindo de outra parte, fizera por ali seu caminho, e sendo agasalhado e convidado, por ser pessoa deles conhecida, fez nisto alguma detença; com que Filomesto, onde estava, como açor preso com as piós e cobertos os olhos com o caparão, sem poder ver a caça que tomar esperava, cada breve momento se lhe fazia um comprido ano, suspeitando ser verdade que quem tardava arrecadava, e (como acontece muitas vezes não serem verdadeiros estes provérbios) achou-se enganado e salteado, porque, a cabo de grande

Capítulo Nono 24

espaço chegando seu amo a ele, lhe contou como achara a casa de Tomariza cheia do senhor e da mais família dela.

A dor que Filomesto recebeu com esta nova, por não ser coisa nova de crer, fica velha pera eu a escusar de contar agora; ali começou muitos choros, dizendo grandes máguas, que por todo o caminho foi prosseguindo, até chegar a sua pousada pobre e triste o novo peneireiro, não por não poder vender as peneiras, que levava às costas, mas por não ver, ao menos por antre peneiras, o seu contentamento e tesouro, que naquela serra com tanta mágua sua e dor deixava.

Este e tantos desatinos fez este atinado amador e enternecido por este ingrato e duro amor, sem jamais o abrandar nem torcer, que, trocado de ledo, que dantes era, em triste, duvidosos os cavaleiros, seus amigos, deste seu mal, sem dele o poderem saber, suspeitosos todavia do que podia ser, um deles, que se atreveu a perguntar-lhe porque andava triste, parece que, do que com ele passou, fez esta égloga, que daquele tempo ficou escrita em língua estranha, pera denotar e declarar seu estranho e extremado amor.