• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

COMO, INDO TER FILIDOR AO BOSQUE DE BOSCÃO, ONDE TAMBÉM ESTAVA EMBOSCADO GARCILASSO DE LA VEGA, FEZ EM LOUVOR DE AMBOS UNS SONETOS

Havendo escrito isto Filidor, ficou tão saudoso daquelas saudades, que assi vira, que não se atrevendo estar mais ali, por com tanta tristeza vista não acabar a vida, se foi subindo por uma alta serra a buscar as outras saudades que buscava, e, passando no cume dela por um deleitoso bosque, bem povoado de muito e alto arvoredo, com muitas fruteiras de diversas pomages, por antre aquelas bravias e domésticas árvores, com ribeiras, fontes e rios, que da alta serra, por antre ele, corriam com tanta suavidade e doçura, que não havia quem daquele lugar o apartasse. Entrando nele por um alto bardo, como muro, com que o achou cercado, o viu por dentro rodeado de grandes cavas, ao redor cobertas de diversas árvores de espinho, antre si tecidas, que lhe serviam de contramuro. E, andando, vendo o grave e desacostumado artifício da ordem de suas prantas, com tão aprazível novidade, quisera ali envelhecer, se lhe fora dado; ou se pudera acabar consigo de não buscar pelo mundo todo o seu Filomesto, com ficar naquele canto dele, solitário, se contentara.

Tanto namora a boa arte liberal, ou coisa engenhosa de outrem, a quem tem livre engenho nela, que, por montes e vales e por longas terras e caminhos, se buscariam os engenhosos e mestres da mesma arte engenhosa uns a outros, pera se ver e comunicar, conversando-se, se lhe fôsse possível, toda a vida e mais além, se pudessem. O que não é assi nos que têm artes lucrativas, que sós querem estar na terra, sem companhia de outros artífices, porque somente pretendem ajuntar tudo pera si e ganhar seu interesse; em os quais é certo o que deles se diz: “Que homem de teu ofício é teu inimigo”.

A qual arte, em seus autores e mestres desta vil condição, não chamo eu arte liberal e livre, senão miserável, cainha e cativa, que, por isso, se chama mecânica, de meco, que quer dizer adúltero, ou porque adulterou da fidelidade e degenerou da nobreza e generosidade da fidalguia dos engenhos livres e liberais, ou por toda se fundar em ganho e interesse, ou moeda, como este vocábulo meco, ou meca, em outra língua estranha dizem que significa; a qual moeda com a cubiça dos homens, mais que com a necessidade mui urgente, se inventou e usou no mundo, enjeitando a permutação e troca de frutos e mercadorias, que no princípio se costumava e usava, e pudera ainda agora costumar e usar até o fim dele.

Porque, quem vai buscar a longes terras o que não há na sua, bem pode levar por longos mares e caminhos, ainda que seja com trabalho, o que não há nas outras, onde quer ter seu comércio pera trocar uma por outra e não a comprar por dinheiro inventado, que é um adúltero preço de menos valor da coisa, pois é infrutífero e estéril, sem naturalmente poder dar de si fruto, como dão os outros frutos. Mas não serão tanto de culpar os homens por isto, já que anda inventando modos a preguiçosa e ronceira e, às vezes, engenhosa natureza humana, pera fazer facilmente por arte o que, sem ela, não faria sem trabalho, e por fazer também verdadeiro o que se costuma dizer, que cobre ganha cobre e não ossos de homens.

E achando Filidor umas letras em um grosso tronco de um antigo e alto cedro, que diziam ser aquele bosque de Boscão, como conheceu o senhor dele, de que já tinha notícia, e ouvira, por onde andara, a fama de sua graciosa e grave eloquência, novamente promulgada (como bosque de nova pomagem) por Boscan, com novos e sotis modos, tresladada da fértil e engenhosa Itália e prantada em nossas terras e em Espanha introduzida, louvada de poucos sábios, porque poucos a entendiam, mas tachada de muitos néscios (de que há infinita sementeira em qualquer parte), de cujo grosseiro estâmago não era conveniente manjar este, que tão dedicado era, desejou ser seu escravo, ou, ao menos, fiel servente, se pudera. E, depois de ter notado e visto muitas coisas, que lhe bem pareceram, não lhe pareceu mal

Capítulo Décimo Quinto 58

escrever no pé daquele tronco estes breves sonetos em louvor daquele bosque e do prantador dele:

Boscan a muchos eres bosque suave, A los que con ingenio te gustaren; Que si a ti sin ingenio se llegaren, Nunca entrarà en tu bosque ninguna ave: Nadie passar puede en segura nave, Si a pagar sus dineros no bastaren; Ansi si los ingenios no sobraren, Serrado te han las Musas con su llave: Comiendo entre tu bosque de tu fructo, Beviendo dulces agoas de tus rios,

Bien se andan todas nueve en ti recreando; Y alla nadie puede entrar a pie enxuto A gozar de tus arboles sombrios;

Sino si algun ingenio entrar bolando (120).

Una vez vi dos nescios en porfia, Sin ojos, sin saber y sin prudencia Contra ti, Boscan, dando vil sentencia, Porque ninguno dellos te entendia; O triste del saber mejor seria Ser ciego por no ver tal differencia; Pues no conosce el nescio en su dolencia Que es mejor el manjar, que aborrecia: Porque el pecho le queda del vazio, Hartura dar no puede al avariento El oro, que en el arca está encerrado: Ansi, Boscan, nunca hartará tu rio, A quien bever viniere del sediento, Hasta que nel sentido le haya entrado. Ya que aquel mal mirado çapatero Del circunspecto Apelles se condemna, Ninguno metta su hoz en miesse agena, Pues que el parecer no es saber entero. Quien te tiene, Boscan, por mal certero, Merece, por ser nescio, cierta pena; A su nao solo el maestre de querena, Del arma solo tracte el cavallero.

Capítulo Décimo Quinto 59

En alemos, que al cielo van subiendo, Las Nymphas, que de versos han cuidado, Escriven quanto nota tu sentido:

Por no poden tu estylo en alto siendo, De ningun baxo gusto ser gustado; Sino de algun ingenio muy subido.

E querendo acabar de o ver todo, achou no cabo dele uma fresca fonte, em que Garcilasso, disfarçado no pastor Nemoroso, como Narciso, se lavara e enganava, tornado doido pela ninfa Camila. E escreveu também nas pedras daquela fonte este soneto, que assi dizia:

Quan lasso, Garcilasso, queda el hombre, De quanta dulcedumbre enternecido, Con solo ver tu estylo tan subido,

Que no hay cosa subida que le assombre. Todo el que docto fuere, o de otro nombre, Aunque marmol sea endurecido,

Lea tu mui dulce verso, que leido, De blando alcançara luego renombre. Escoge para loco el buen farsante Al que mas cuerdo vè representando, Que de su bocca gracias mas destila: Assi te escoge amor, gracioso amante, Y, admirado, qualquiera està mirando, Lo que hazes cuerdo, loco por Camila.