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CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

COMO FILIDOR, POR UMA AVENTURA, FOI TER AO REGNO DE NARFENDO, ONDE FOI DELE BEM RECEBIDO E FESTEJADO, POR AMOR DE FILOMESTO

Antre muitos e grandes trabalhos dá Deus, às vezes, alguns descansos não cuidados, nem esperados, pera que, tomando alguma respiração, se esforce quem os passa pera passar os que lhe restam, até alcançar o fim do bem que pretende, dando-lhe o Supremo Juiz algum interlocutório repouso, antes da final sentença que o solícito requerente procura, como dá também lunáticos intervalos ao mentecapto, em que fica em seu siso, e como termos que faz quem está em agonia de morte, depois dos quais torna a ficar como são por algum breve espaço, em que a pressura da mente ordena melhor o que dantes lhe esquecia das coisas que à sua alma e salvação relevam, até chegar o último termo da morte, que é final descanso da vida triste.

E como ao sequioso e cansado caminhante nas ásperas montanhas e fragoso caminho depara Deus alguma clara e fresca fonte, onde cobra alento para melhor caminhar pera sua doce pátria, assi deparou Deus a Filidor, romeiro cansado de rodear o Mundo, buscando a seu amigo Filomesto, em meio de seus muitos trabalhos um lugar de breve descanso, onde descansasse alguns poucos dias, pera depois tornar logo com mais gosto a seu gostoso trabalho, como agora direi.

Depois que Filomesto se partiu da corte de el-rei Narfendo, chamado (como, Senhora, vos contei) pera a aventura ou desaventura de Ricatena, por tardar muito tempo sem tornar mais à mesma corte, donde partira, o bom rei Narfendo, seu íntimo amigo, não podendo sofrer sua longa absência, arreceando e temendo algum seu perigo (porque quem ama tudo teme), mandou pelo mundo em busca dele os mais extremados cavaleiros de seu regno, de dois em dois e três em três, pera dele lhe trazerem novas, ou, se o vissem em algum perigo, o ajudarem ou acompanharem em sua tornada, que ele esperava, de que nada estava desconfiado, pois o criara de minino e amava como pai, sabendo que também Filomesto lhe tinha amor de filho.

Os quais cavaleiros, andando muitos caminhos e rodeando longas terras, quase todos se tornaram tristes ao lugar donde partiram, por não trazerem novas alegres, que seu senhor desejava. Dois dos quais, partindo de uma cidade, onde deixavam seus escudeiros comprando mantimentos pera sua jornada, os iam esperando com vagaroso passeio, e vindo os escudeiros, seguindo muito atrás a seus senhores, encontraram um robusto cavaleiro, que queria entrar na cidade donde eles saíam, pelo qual passando sobre seus palafréns, o saudaram com a cortesia devida, que aprendida tinham com tão bons senhores e em tal corte, como era a de Narfendo. Mas, caminhando adiante e encontrando com seu escudeiro (como é costume de caminhantes), vendo-se iguais com igual, escudeiros com escudeiro, começaram a zombar dele, e de palavra em palavra vieram a palavras, de palavras a mãos e obras, de zombaria a peleja, da peleja a grandes gritos que o escudeiro, maltratado dos dois, dava; a que acudindo o senhor, que diante ia, os hospedou tão mal, vingando a seu criado, que lhes foi forçado, sendo espancados, espancar e açoitar seus palafréns para fugir com mais pressa pera seus senhores, que nada disto sabiam, senão quando ouviram seus queixumes, com que tornaram logo atrás, buscando a quem os ofendera.

Neste meio tempo, que os dois escudeiros foram pera seus amos e quem os ofendeu se foi com o seu pera a cidade que buscava, acertou Filidor, atravessando uma floresta, meter-se naquele mesmo caminho e tomar a via que os dois cavaleiros levavam, os quais, vendo-o de longe, cuidando ser ele o seu contrairo, enrestando as lanças nele, que descuidado de tal caso ia, errando um o encontro, com a fúria que levava, o outro o encontrou com a sua, que fez pedaços, sem o mover mais que a ira, com que, arrancando sua espada, cortou a lança do

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outro, que o encontrava já de retorno. E, começando a jogar das espadas, se travou um fermoso torneio, em que Filidor acudindo a um lado e outro, de que era cometido, andava voltando dambos (sic), parecendo redemoinho que dois ventos contrairos fazem, como luta de abraçados lutadores, com que se alevanta no ar grande poeira. Até que chegando os dois escudeiros, a grandes vozes disseram a seus senhores que não era aquele cavaleiro quem buscavam, o que vendo eles cruzaram suas mãos, abaixando suas espadas, pedindo a Filidor com humildes palavras perdão de seu erro, que causara a ira, que traziam, de um cavaleiro que afrontara a seus criados, que cuidavam ser ele, contando-lhe todo o caso como passara.

Respondendo a isto Filidor cortêsmente, e embainhando sua espada, um dos dois cavaleiros, que mais perto estava, vendo a pérola do punho dela, conheceu ser uma das que el-rei Narfendo a Filomesto dera, não sabendo que Filomesto a Filidor a tinha dado. E, gritando de prazer, disse, cuidando ser ele: “Ah! senhor Filomesto, flor da cavalaria, coroa dos cavaleiros, maior cegueira era a nossa em não vos conhecer agora por vossa valentia nesta briga, que aqui nos causava a cólera e ira de nossa ofensa, pois, no esforço que aqui connosco mostrastes, logo parecieis ser quem sois e sempre fostes”.

Apeando-se, então, este e seu companheiro, quando ouviu nomear a Filomesto, lhe foram ambos com grande alvoroço de amor beijar os pés nos estribos, dizendo: “Essa espada e esse esforço nos mostra claramente serdes vós o grande Filomesto, que tanto tempo há buscamos”.

O que vendo e ouvindo Filidor, algum tanto confuso, suspeitando, todavia, o que podia ser, se apeou ligeiramente de seu cavalo e, alevantando a viseira do elmo, mostrando seu rosto, disse:

“Não tive, senhores cavaleiros, tanta ventura que tal fosse, como é esse cavaleiro Filomesto, que nomeastes, com que me pusestes em grande alvoroço e cuidado, e em extremo desejo de saber de vós de que maneira o conheceis e como o amais e buscais, porque eu também o amo e busco, sem suspeitar que nestas terras pudesse dele saber novas, mas, se algumas sabeis, peço-vos, senhores, que logo mas deis, pela coisa que mais amais, que não posso sofrer mais demora da que té aqui por compridos caminhos e longos tempos em busca dele tenho passado. Oh! se as ouvisse, ou o visse”.

Quase ficou Filidor sem fala no fim destas palavras, o que vendo os dois cavaleiros, e conhecendo no seu rosto não ser quem cuidavam, lhe disseram: “Não menos alvoroço temos, senhor cavaleiro, de sabermos de vós novas dele, mas, pois vossa pessoa e amorosas palavras nos obrigam obedecer-vos primeiro, faremos de boa vontade vosso mandado, pera também depois ouvir de vós o que queremos”.

Então, começou o mais ancião deles dizer desta maneira:

“Nós, senhor cavaleiro, somos vassalos de el-rei Narfendo, em cujo regno estamos, criados em sua corte em companhia do grande cavaleiro Filomesto, flor da cavalaria, que por estranho caso, sendo menino, veio ter a ela, onde ficou morador e mais que natural, amado em extremo de todos e muito mais do rei, que o criou em seus paços como filho; pela qual razão, sendo, haverá alguns anos, Filomesto chamado pera uma aventura, pela fama que de seu esforço corria pelo mundo, se absentou da casa de el-rei, sem mais tornar a ela, o que não podendo sofrer, mandou muitos cavaleiros em sua busca, dos quais somos nós, que aqui vos achamos, cuidando ser ele antes de ver vosso rosto, por vermos a maçã desta espada ser uma pérola, de duas que tinha, e, por grande amor e honra, vimos nosso rei dar a Filomesto. Pois não sois ele e trazeis suas armas, dizei-nos se o matastes em alguma batalha, de que vos ficou este despojo, ou se sabeis novas dele, pera que as levemos a el-rei, com que seremos ditosos e contentes, antre o grande descontentamento que levamos de nos tornar à corte, a cabo de tanto tempo, sem o acharmos”.

Acabando de falar este cavaleiro, respondeu Filidor:

“Não sou tão valeroso cavaleiro, que pudesse prevalecer contra Filomesto, que é julgado por coroa dos cavaleiros, mas sou o maior amigo que ele tem, como eu nele tenho, natural de sua pátria, com o qual me criei muitos anos e aprendi esta arte militar que professo, e por esta razão me deu ele esta espada, igual doutra que lhe ficou, as quais me contava ele que lhe dera el-rei Narfendo, que o armara cavaleiro, além de outras grandes mercês e honras, que em sua corte lhe fizera, quando pelos pastores foi levado a ela. E por ele se partir de sua terra a estas estranhas, sem me dar conta disso, com a saudade que de sua conversação me ficou, o vim buscar pelo mundo, que quase tenho rodeado todo, sem dele achar novas, nem recado, senão

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esta lembrança, que agora ouvi de vós, senhores, com que tão alterado tenho o coração, que não vos sei agradecer tão boas novas, que, espero em Deus, serão bésporas (121) de o poder achar cedo. E, pois (como dizeis), estamos no regno do vosso alto rei Narfendo, de que o meu Filomesto me contava mil grandezas, folgarei, se vos apraz, de o ir ver e servir em vossa companhia, porque poderá ser que alguns dos cavaleiros, por quem ele (segundo me dissestes) mandou buscar a Filomesto, o tenham achado, e estará já descansado em sua corte, onde o acharemos e veremos”.

Ouvindo-lhe isto, os dois cavaleiros se deitaram a seus pés, dizendo: “Esta mercê, que, senhor cavaleiro, nos ofereceis, vos queríamos nós pedir, antes de a concederdes, mas, pois a fazeis antes de pedida, em maior obrigação nos pondes pera vos acompanhar e servir como criados”.

Apeando-se, então, Filidor, se abraçaram, dizendo ele: “Senhores, serão meus e amigos os amigos de Filomesto, meu senhor e amigo, e eu serei seu escravo, como dele o era, sem deixar de o ser na vida toda”. Com estas e outras palavras de cortesia, que antre si passaram, se tornaram pôr a cavalo.

E todos três, esquecendo-se os dois da vingança da injúria de seus criados, com esta nova de alegria (que, quando quer que se alcança, faz esquecer muitos nojos passados), prosseguiram seu caminho pera a corte de el-rei Narfendo, onde dali a poucos dias chegaram.

E, porque mandaram depressa um de seus escudeiros diante dar a seu rei esta nova, foi Filidor recebido com grande aparato e honra, como coisa de Filomesto, tão amado do rei e povo todo naquele regno, onde foi aposentado no paço e descansou alguns dias, conversando e praticando com el-rei, com muita festa, nas coisas e proezas de Filomesto, que um a outro contavam.

E depois de Filidor ajudar a Narfendo em uma guerra que trazia com um seu contrairo, de que saiu com vitória, despedindo-se dele, seguiu seu caminho pelo mundo, buscando a Filomesto, prometendo a el-rei que ele o faria vir diante de Sua Alteza, se o achasse, com que o deixou algum tanto consolado na grande tristeza que lhe ficava, pela lembrança da absência de Filomesto, e por tão apressurada e saudosa partida de um hóspede tanto seu amigo, que já por amor dele amava, porque (como dizem) quem ama Beltrão, ama seu cão, e quem tem desenganado amor a alguém, também, desenganadamente, ama a quem desta maneira lho ama.