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DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO PRIMEIRO

CAPÍTULO PRIMEIRO

COMO A FAMA PEDIU À VERDADE QUE LHE CONTASSE A HISTÓRIA DOS DOIS AMIGOS DA ILHA DE SÃO MIGUEL E A VERDADE SE OFERECEU A CONTAR-LHA

Havendo eu contado à Fama as coisas desta ilha de São Miguel, fui mais dizendo no dia seguinte:

“Ouvido tendes, Senhora, como as coisas desta ilha foram já tão prósperas, que outra tão boa podia o Sol aquentar com seus fermosos raios, mas não melhor. Como também muitos estrangeiros afirmam, esta é a melhor e maior de outras sete, que estão pera o ponente mui perto, que por todas fazem nove, de que eu não entendo bem os nomes, porque os que elas têm não me parecem certos. Alguns (como já disse) lhes chamaram dos Açores pela razão dita, e não sei se, errando a letra, houveram de dizer amores, pelos que nelas em outros tempos passaram, e principalmente onde a força dos tristes amadores se ajuntou toda. Eu não lhe chamo outro, senão a ilha do meu desterro, pelo que nela tenho, porque cada um diz da feira como lhe vai nela. Chame-lhe cada um como quiser, que (como dizem) o nome, nem o hábito, não faz o monge, ainda que muitas vezes os nomes das coisas não se põem sem mistério; assi como acontecem outras muitas, cheias de secretos, que se não vêm a descobrir senão muito ao longe”.

“O secreto (me disse ela) destes dois amigos e seus amores desejo de ouvir de vós, Senhora, como já vos disse, e a mercê, que até agora me tendes feita, me faz mais ousadia pera pedir estoutra”.

Ao que eu respondi: “As coisas desses dois amigos estimo eu como próprias, porque o amigo é outro eu. Mas quem, contando tais tristezas e amores tão sem ventura, poderá temperar as lágrimas que não chore um mar delas? Mandais-me, Senhora, renovar uma dor de mortal mágua. A história de muitos, esforçados e valerosos cavaleiros, que nela houve, contei com bom esforço, pelo que o seu contentamento me dava, sendo tudo alegrias que os homens por tais estimam, ainda que o não sejam, mas... (99) em outras mores águas, não sei como as conte. Não lhe chamo eu a isto contos, senão descontos, pois não há coisa destas que os não tenha; e, senão sejam-me testimunhas quase todos ou todos os estados desta vida, que, com os descontos que cada um deles tem, jamais vi ninguém contente daquele em que por sorte vive. E não há erva criada que, se aproveita pera algum bem, não tenha parte pera algum mal, se nós soubéssemos bem conhecer o que em cada uma se encerra. Por isso há em toda parte, como tereis visto, montes e vales, terras lavradias e outras de muitas pedras, sãos e enfermos, bons e maus, contentes e descontentes, pera se descontarem umas coisas por outras e em tudo quanto há na vida haver descontos. E, ainda que nesta terra são os homens na condição Alexandres, e de maravilha se acham cainhos, nem tristes, nela, pela abundância e festas com que se criaram, com que são liberais nas obras, discretos na prática, grandes na vontade, alegres na conversação, amigos de seus amigos, e ainda de seus inimigos, prudentes e virtuosos, nobres e sabedores, e as mulheres quase todas, comummente, são delgadas e discretas, fermosas e graciosas, perfeitas e honradas, religiosas e devotas, honestas e virtuosas. E aqui se criam tão delgados engenhos, que não têm enveja de outra terra, senão em dar deles grandes mostras, porque nunca dela se mudam, sendo nisto como vinho, que, se não se trasfega, logo se faz vinagre, e já que por seu pouco poder e não serem sofredores de trabalho, ou por estarem longe de mestres, sendo de felicíssimos engenhos, infelicemente aprendem. Com tudo isto, houve também outros com faltas, como em toda parte se acham, e, ainda que viveram aqui alegres, alguns tristes houve; e muitos, que dela saíram, vi eu depois muito grandes e tristes, posto que nela fossem julgados por pequenos e contentes, porque o queria assi a tristeza deles. Estes são os que eu dizia que escreveram as letras nos álemos, que eu sonhei que via nesta serra, como já vos disse, Senhora, que tudo eram sinais de seus

Capítulo Primeiro 4

altos pensamentos. Foi sua desaventura, ou ventura tamanha, que os alongou tão longe, uns desta vida e outros desta terra, que parece que nunca nela nasceram, ainda que nela nasceu a dor, que assi fez tristes alguns deles. E outros a foram lá buscar em outras partes pera a vir passar nesta, e depois no mundo todo, porque em qualquer lugar da terra, onde estão, os têm eles as suas máguas, como a mim neste género desterro me tem a minha”.

Não pude eu ter as lágrimas, dizendo isto, porque a lembrança da dor destes cavaleiros espertou meu choro; e, vendo-me ela chorar, chorou também comigo, tornando-me a pedir muitas vezes que lhe contasse o que sabia deles, porque nunca coisa desejara tanto saber, como esta, tanto por ouvir falar deles tantas vezes, como por me ver, falando neles, chorar tanto d’alma, que já via não poder ser coisa esta história de que as suas penas negras não tivessem companhia e fossem companheiras.

Eu lhe disse: “Pera que me mandais, Senhora, que vos conte tristezas que não têm conto? Tudo foram desaventuras, que por bem aventuradas foram julgadas daqueles que as passaram, e eu não as posso contar sem grande dó do pouco que eles de si tiveram, que a minha tristeza grande me ensina doer-me do mal alheio, e quem do mal de outrem se dói, do seu próprio se torna de novo a lembrar. Grande perigo é ao médico enfermo de enfermidade aguda, ou de mortal doença, estudar ou tratar remédios pera outro enfermo, como ele, pois não pode... (100), pronóstico... (100), ou lhe acrescente seu mal com o alheio, ou, por ventura, lhe

adivinhe a sua morte própria com a estranha, e, ainda que depois lhe não venha, como ele o está vendo, todavia o põem a risco de desmaiar ou de perder cedo a vida. A todos estes perigos me hei-de aventurar, e a outros mores, de ser taxada e repreendida, se vos contar a desaventura destes cavaleiros, como, Senhora, pedis, porque nunca vi doença de tristeza que não fosse aguda, e nenhuma se acha que seja bota nem grosseira, e as línguas dos homens são mais agudas pera repreender que estes amores. Mas três coisas me fazem inclinar a vosso rogo: a primeira, o muito que já vos devo; a segunda, por já não arrecear a morte, que me não quer levar, por mais dores, nem máguas que eu no mundo veja, e a terceira, pelo gosto que eu terei de vos contar esta história, que é de amigos, ainda que, contando-vo-la, o meu mal cresça. Nem quero, Senhora, que m’a agradeçais por isto, antes vos agradeço eu a vontade que mostrais de ouvir o que eu estou sentindo”.

“A que pera vos servir tenho (me respondeu ela) me podeis vós agradecer, e, em a não agradecerdes, ainda não fareis sem razão alguma, pois todo vos é devido; que estoutra vontade, que eu tenho de ouvir essa história, não é pera agradecer, senão pera satisfazer com fazerdes o que peço, pera assi vos ficar em muito maior dívida da que devo com me agradecerdes a vontade, que só pretende o meu proveito e gosto”.

“Pois, pelo que eu devo (lhe disse eu) de contar esta história, por ser de pessoas tanto amigas minhas, não é muito agradecer-vos pedirdes-me vós que a conte. Mas bem vejo, Senhora, que me detenho já muito, sem a contar logo; daí a culpa ao meu mal, que me traz nestas voltas e rodeios, como à vela, primeiro que isto conte, e me faz sossobrar em grande pego de marulhos e arreceios, antes que venha a tomar o porto, donde há-de partir esta conta do mal alheio, que também é meu próprio, pois é de meus amigos tanto amigos”.