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CAPÍTULO DÉCIMO OCTAVO

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO DÉCIMO OCTAVO

CAPÍTULO DÉCIMO OCTAVO

COMO FILIDOR, ACORDANDO DE UM SONHO TRISTE, OUVIU UM HOMEM ESTAR CHORANDO SOBRE UM PENEDO, AO LONGO DO RIO TORMES, QUE, COM O GRANDE

FRIO, ESTAVA COALHADO

Quem trabalha, descansa; quem ama, serve; quem porfia, mata caça; quem fala, ouve e quem bem busca, as mais das vezes acha.

Assi, andou Filidor muitos caminhos, caminhou por muitas terras, rodeou muitos reinos, correu muitas cidades, navegou por inchadas ondas, chegou a muitos portos, prometeu e cumpriu muitas romagens, sem poder ter novas do seu Filomesto desejado, até que chegando uma tarde ao longo do rio Tormes, perto de uns altos álemos, que junto de sua ribeira estavam, apeando-se de seu cavalo e dando-o a seu escudeiro, se deitou, já de mui cansado, à sombra deles, e, ou de muito enfadado dos longos e importunos caminhos, sem poder achar a Filomesto, que buscava, ou da lembrança dele e de sua saudade, chorou ali tantas lágrimas, que, com elas, adormeceu pouco tempo, que não podia ser muito, pois as fantasmas e desconsertados sonhos, como de doente de tristeza, o não deixavam ter comprido repouso.

E, acordando, se viu ainda muito mais banhado em águas das lágrimas, que dormindo e sonhando chorara. E não tardou muito que não visse, por antre o arvoredo, ir um homem, com passo grave, junto das águas do rio, com o grande frio do inverno coalhadas, o qual, assentando-se em um penedo, que à borda do rio estava, junto com as águas dele, feitas pedra, olhando, calado, primeiro um pouco pera elas, como quem considerava e contemplava em sua dureza, começou a chorar desta maneira:

Ou com o seco frio o sacro Tormes Detém suas correntes cristalinas,

Ou com ver minhas máguas tão disformes, De disfavores tantos tão indignas,

Ou por antre si serem tão conformes As quedas, que ele faz, e minhas ruínas, Assim as doces águas tem paradas Por ver as minhas lágrimas salgadas. Vem a sequiosa ovelha dos outeiros Decendo, por beber das águas puras, Sem seu pastor, nem guarda dos rafeiros, Deixando o mais rebanho nas alturas, Sem lembrança de ovelhas, nem carneiros, Enjeitando seus pastos e verduras,

Cuidando beber água com que medra, Tocando a boca nela, dá na pedra.

Capítulo Décimo Octavo 66

Com arrugada fronte, os bravos touros, Enchendo o monte e vales com mugidos, Deixando os verdes prados (seus tesouros) Da gram seca fugindo já vencidos,

E vindo por antre álemos e louros Beber, se vêem em vão escarnecidos, Querendo matar sede na água fria, A dura pedra lambem à porfia. Ovelha mansa e touro mui cansado, Por me ver sem favores, que faltavam De minhas terras nestas alongado, Fugi dos companheiros que me amavam, Por provar, sendo absente, ser buscado, Pois que presente tanto me enjeitavam; Mas, cuidando cá longe achar brandura, As brandas águas acho pedra dura. Quando, líquidas águas, is por parte Que diante vós não põe contradição, Com vosso natural curso, sem arte, O duro penedo não vos dá paixão, Nem achais quem corrente vossa aparte, Correndo quietas com toda mansidão; Mas meus choros encontram com crueza; Daí tornam contra mim por natureza. Os agrestes leões, tigres, serpentes, Por seu distino (sic) natural, atroces, Cursando tempo com humanas gentes, Vêm perder pouco a pouco o ser feroces, De duros vêm fazer-se obedientes, Quase bem conhecendo humanas vozes: Dez anos há que eu quero a quem me prende, Mas não quer entender-me, ou não me entende. Depois da leoa, com choro, haver parido Como êmbrio, informe filho sem ter vida, Faz com choros e brados tal bramido, Do doce maternal amor movida, Que, logo, estando morto, sem sentido, A vida no nascido vem nascida,

Assim minha esperança, que morta anda, Tem vida nos gemidos que a alma manda. Com frescas águas vem reverdescendo As árvores, que novas vão prantando, Com as mesmas também se vão sustendo As prantas, que já quase vão secando; Com leite nos criamos em nascendo, Com ele nos sustentam, acabando; Assi, minha esperança desfalece

Capítulo Décimo Octavo 67

Se costumam bem os campos cultivar Os pobres e cansados lavradores, E com sementes esquisitas semear A preparada terra, já com dores, Porque isto farão? Senão por só cobrar O fruto, galardão de seus suores; Mas quem quer ter amor sem esperança, Pois lhe foge o favor, porque se cansa? Só os humanos amam humana gente, Clemente e cru não fazem companhia, Tem guerra a neve com a coisa quente, A que é quente peleja com a fria; Touro não ama cobra, nem serpente, Cada um de seu contrairo se desvia; Eu só me fui prender neste grave erro, Pois amei desamor e meu desterro. Águas, que com parado curso e quedo Quase mortas ou mortais aqui jazeis, À sombra (sem correr) deste arvoredo, Parece que, sem falardes, me dizeis Que vos diga meu mal deste penedo, E que vós feitas penedo me ouvireis; Se me ouvis, águas duras, sem sentido, Meu duro amor não ouve o meu gemido. Nas duras águas acho ter abrigo; Até o regelo, que é de amor isento, Está parado, ouvindo o mal que digo; As coisas sem sentido e sentimento Mostram todas sentir meu mal comigo; Todas sentem comigo a dor que sento; Mais que todas elas sente Filidor; Menos que elas todas sente o meu amor. De todos escondi minha partida,

Com Aénio só trazendo companhia, Irmão daquele amor, que morte ou vida, Amando ou desamando, dar podia, Por ver se esta esperança tão comprida Com liga do seu sangue acabaria; Mata-me, enfim, amos, de crueldade; Mata-me o meu Filidor, de saudade.