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20º Congresso Brasileiro de Sociologia. 12 a 17 de julho de UFPA Belém, PA. CP07 - Sociologia Ambiental e Ecologia Política

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1 20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021 UFPA – Belém, PA

CP07 - Sociologia Ambiental e Ecologia Política

Ouro para alguns, arsênio para muitos: o conflito ambiental em torno da mineração de ouro em Paracatu, Minas Gerais

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Introdução1

Na cidade de Paracatu2, noroeste do estado de Minas Gerais, está em

operação a maior mina de ouro a céu aberto da América Latina, a Mina Morro do Ouro, controlada pela empresa canadense Kinross Gold Corporation. Sozinho, esse empreendimento é responsável por 22% da extração, beneficiamento e comercialização do ouro brasileiro. No ano de 2006, após adquirir integralmente a anterior responsável pelas operações na mina, a Rio Paracatu Mineração (RPM), a Kinross iniciou um projeto de expansão da mina Morro do Ouro. Mesmo já próxima ao perímetro urbano - imbricada em territórios de remanescentes quilombolas e coberta de controvérsias em torno dos malefícios associados à contaminação por resíduos tóxicos derivados da mineração, o plano de expansão foi licenciado e triplicou a produção anual de ouro, tendo chegado no ano de 2019 a dezessete toneladas, além de ter ampliado em mais quinze anos o tempo de vida útil da mina, que atualmente vai até o ano de 2030 (ANDRADE et al, 2019).

A forma de exploração do ouro na região se baseia na extração do metal contido nas rochas duras, com baixo teor aurífero e rico em arsenopirita3 (SANTOS,

2012). O processo de retirada do ouro em rocha dura é um empreendimento custoso, dependente de maquinário específico, da ampla utilização de recursos hídricos e de abrangente área de exploração4. O processo de moagem, hidratação

e oxidação da arsenopirita libera o ouro, mas também desprende arsênio, cujos rejeitos são armazenados em duas expressivas barragens, a de Santo Antônio e a

1 Este documento é um apanhado das ideias gerais presentes no projeto de qualificação de

doutorado da autora, defendido em março de 2021.

2 Atualmente Paracatu conta com uma população estimada de 93.158 habitantes e fica a 503km de

Belo Horizonte e 220km de Brasília, e está situada às margens da BR-040. Tem uma área territorial de 8.229,587 km² e densidade demográfica de 10,29 hab/km². O PIB per capita do município é de R$ 35.093,70, sendo que em 2017 o salário médio mensal era de 2.7 salários mínimos. Fonte:

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/paracatu/panorama. Acesso em 25/05/2020.

3 A arsenopirita “é um sulfeto muito comum e constitui um minério de arsênio”, sendo que o arsênio

é geralmente recuperado como subproduto “no processamento dos minérios para obter outros elementos”, como o ouro. A arsenopirita possui um alto (46%) teor em arsênio, e quando presente em minérios de ouro, dificulta a recuperação deste e libera vapores tóxicos durante o processo (https://www.ufrgs.br/minmicro/Arsenopirita.pdf)

4 A Mina Morro do Ouro tem extensão de 10.942 hectares, e possui o menor teor aurífero das minas

em operação atualmente no Brasil, contendo 0,4 grama de ouro por tonelada de minério. Ainda assim, a mineração ali se constitui enquanto uma atividade altamente lucrativa (SANTOS, 2012).

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3 barragem de Eustáquio (ALVES, 2015)5. As atividades da Kinross Gold Corporation

têm sido constantemente denunciadas pela população local, por movimentos ambientalistas e por pesquisadores por violar direitos, por retirar remanescentes quilombolas de seus territórios, por restringir a locomoção e o acesso aos recursos naturais, por degradar o meio ambiente e pela controversa contaminação por arsênio e o consequente comprometimento da saúde da população local (BARROS, 2015, p. 75). Nos últimos dez anos, a contaminação do ar, das águas e do solo por arsênio residual da atividade minerária e os altos casos de câncer no município tem se tornado ponto central da questão ambiental em Paracatu, evidenciando-se nos veículos midiáticos, na esfera jurídica e na comunidade científica os insistentes conflitos no que tange ao fenômeno em questão.

Moradores de Paracatu relatam sintomas frequentemente relacionados à exposição aguda ao arsênio, como dor no corpo, coceira, mal estar e dermatites.6

No mesmo sentido, o Manifesto Paracatu, publicado em 2009 no blog Alerta Paracatu, faz um apelo às entidades nacionais e internacionais interessadas, denunciando que a mineradora Kinross traz “doença, morte, pobreza e destruição aos habitantes de Paracatu”. Aponta que “arsênio é veneno e afeta sua saúde através do ar que você respira”, classificando o conflito como genocídio. Contrariando os relatos anteriores, na esfera científica o Centro de Tecnologia Mineral (CETEM), em resposta a solicitação da Prefeitura Municipal de Paracatu, realizou um estudo epidemiológico com moradores de nove bairros do município, concluindo pela “baixa exposição humana ao arsênio”, afirmação corroborada “pelos resultados das concentrações de arsênio nas matrizes biológicas de sangue, urina e cabelo, revelando teores menores ou iguais a níveis considerados referenciais de normalidade ou até de populações não expostas, em vários países”. Não obstante, em Audiência Pública Ordinária ocorrida em agosto de 2019, no âmbito Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, destinada a debater as violações de direitos humanos decorrentes das atividades

5 A barragem Santo Antonio foi construída em 1987, e possui 483 milhões de m³ de capacidade,

dos quais 399 milhões de m³ são utilizados atualmente. Já a barragem Eustáquio entrou em operação em 2010, acompanhando a expansão da Mina Morro do Ouro, possuindo incríveis 750 milhões de m³ de capacidade, sendo que 143 milhões de m³ deste total são utilizados. Fonte: www.kinross.com.br/conheca-mais-sobre-as-barragens/.

6 Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/25/politica/1432561404_705347.html. Acesso em

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4 de mineração da empresa Kinross, na mina Morro de Ouro, representante do Deputado Federal Rogério Correia (Partido dos Trabalhadores-PT), argumenta que “há uma constante violação também ao direito do ser humano à saúde, com a própria exploração de ouro e de arsênio. Segundo estudos, para cada grama de ouro extraído, 7 quilos de arsênio, que se tornam bioassimiláveis, são liberados na atmosfera, seja na água, seja no ar, seja na terra. O arsênio é conhecido”. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, p.23). A mineradora, por sua vez, afirma em uma seção destinada a esclarecer “mitos e verdades” relacionados à mineração e ao arsênio em seu website que “os resultados de uma extensa pesquisa científica envolvendo anos de amostragem de dados por especialistas líderes em arsênio e especialistas de diagnóstico no Brasil e no exterior encontraram baixos níveis de exposição ao arsênio em Paracatu, sem evidência de efeitos adversos à saúde relacionados ao arsênio. As atividades de mineração da Kinross são consideradas de colaboração insignificante para exposição ao arsênio em geral”.7

No âmbito de um conflito ambiental em Paracatu, é possível observar, com centralidade e relevância, que há publicamente uma controvérsia científica no que tange a suposta contaminação por arsênio derivado da exploração minerária na região. Nesse sentido, procurando apreender este fenômeno como chave interpretativa de um conflito mais amplo, entendo que um ponto de partida vantajoso para a análise é tratar o conflito ambiental em questão como um conflito ontológico, em que mundos contaminados se constituem de forma agonística a depender das ações que diferentes atores tomam em suas práticas para chegar a um consenso sobre a questão. Tomo aqui em consideração as contribuições teórico-metodológicas da área transdisciplinar dos estudos sociais de ciência e tecnologia (STS) trazem à mesa, que apesar de não tratar de questões ambientais frontalmente, trazem à baila insights profícuos. Esta área, de forma geral, tem como foco o entendimento das origens, dinâmicas, práticas, significados e efeitos que as ciências e tecnologias adquirem em sua relação com as sociedades. Em outras palavras, os STS exploram os poderes transformativos da ciência e tecnologia em arranjar e rearranjar as sociedades contemporâneas, ao considerar que ambas estão entre as formas de atividade humana mais significativas nos últimos duzentos

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5 anos, sendo inseparáveis da organização social, política e econômica. Dessa forma, uma preocupação central do campo é entender como a ciência e a tecnologia formam a vida social e vice e versa (JASANOFF, 2004; HACKETT et al, 2008; FELT et al, 2017). Os STS possuem um amplo leque de abordagens, muito por conta de seu caráter interdisciplinar, trazendo ricas contribuições para diversos campos de conhecimento. Apesar disso, uma de suas vertentes apresenta-se como mais relevante para o entendimento de contaminações e conflitos ambientais, a Teoria Ator-Rede (TAR), que fundamenta-se em uma reivindicação ontológica básica: a de que todas as entidades do mundo se constituem e reconstituem em redes híbridas de relações discursivas e materiais (FARÍAS et al, 2020).

Nesse sentido, observar conflitos ambientais utilizando-se das lentes da TAR significa dar atenção às práticas que constituem certas realidades, contaminadas, não contaminadas, e tudo aquilo que é possível entre essas duas qualidades. A estabilização relativa e a durabilidade dessa estabilização são promovidas através dos enactments, termo que sugere que a realidade “é feita e performada [enacted], e não tanto observada. Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas” (MOL, 1999, p.77). Isso porque o conflito ambiental em Paracatu é um fenômeno híbrido: humanos e não-humanos interagem, compõem-se e descompõem-se na e pela ação em redes sociotécnicas, “misturando” o que é social, o que é técnico, o que é político e o que é científico (LATOUR, 2004). Assim, entendo que, em última instância, o que está em disputa é o próprio princípio da divisão entre natureza e sociedade (FLEURY, 2013b). Tudo isso significa que, ao olhar para a contaminação por arsênio em Paracatu, nosso foco recai sobre sua composição e para uma questão ontológica: como a contaminação é enactada nas práticas de atores heterogêneos?

Dessa forma, o objetivo deste artigo é mapear o conflito ambiental em torno da contaminação por arsênio derivado da mineração de ouro em Paracatu, Minas Gerais, utilizando da cartografia de controvérsias, dando atenção particular à controvérsia que se apresenta na comunidade científica com relação à sua presença e quantidade nas águas e solos da região. A controvérsia científica aparece aqui como ponto de entrada num conflito mais amplo. Assim, tratando-se de um trabalho em andamento, o objetivo geral deste artigo é descrever de forma

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6 preliminar as diferentes práticas, estratégias e interesses entre cientistas que contribuem para que o conflito em questão se assente enquanto uma ou outra versão da contaminação, uma vez que entendemos que se trata de um fenômeno híbrido, em que certos enactments proporcionam e estabilizam uma qualidade ou outra à substância arsênio. Como objetivos específicos, pretende-se identificar os principais agentes envolvidos no conflito e seus discursos, de modo a mapear as redes sociotécnicas em que se inserem. Passamos alguns comentários de cunho teórico, para então proceder à descrição dos dados preliminares.

Considerações teóricas

Uma forma de se olhar para o conflito ambiental em questão é dar atenção às intersecções entre sociedade e meio ambiente, ou seja, às relações entre problemas sociais mais gerais e os problemas ambientais, levando-se em conta a emergência de um processo de ambientalização das desigualdades que estruturam os modos de distribuição de recursos do território nacional (LOPES, 2006). Abordagens desse tipo encontram força na sociologia brasileira principalmente na investigação das “divergências e conflitos sobre os diferentes usos da natureza (entendida aqui em seu sentido mais amplo, ou seja, tanto o ambiente natural quanto o construído) e as causas e a extensão dos problemas ambientais e os diversos atores envolvidos” (FERREIRA, 2004, p.78, grifos meus). Nesse sentido, enfatiza-se a análise dos conflitos em torno do meio ambiente, ao constatar que o processo de expropriação dos recursos naturais de minorias étnicas e políticas é eminentemente desigual, jogando luz ao caráter socialmente injusto das operações de empreendimentos minerários. Por um lado, essas minorias recebem os ônus ambientais consequentes de um modelo de desenvolvimento que prioriza crescimento econômico, e por outro são excluídas do acesso aos produtos de tal crescimento (CASTILHO, 2012). Evidencia-se, assim, “a desigualdade distributiva e os múltiplos sentidos que as sociedades podem atribuir a suas bases materiais”, abrindo espaço para “percepção e a denúncia de que o ambiente de certos sujeitos sociais prevaleça sobre o de outros” (ACSELRAD, 2010, p.109). Falar em conflito ambiental é falar no meio ambiente como um terreno contestado materialmente e

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7 simbolicamente. Simbolicamente pois há disputas por sentidos culturais e, simultaneamente, pela continuidade de determinadas formas sociais de existência e pelas formas de se projetar um futuro em comum (ZHOURI, 2004). Já no espaço material “se desenvolvem as lutas sociais, econômicas e políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital, pela mudança ou conservação da estrutura de distribuição de poder” (FLEURY et al, 2017, p.234), intimamente relacionado à “uma luta simbólica para impor as categorias que legitimam ou deslegitimam a distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital” (Idem).

Alguns pressupostos importantes estão contidos nesta definição de conflito ambiental, e de forma extensiva, à própria noção de natureza e de sociedade. Em primeiro lugar, subjaz um posicionamento epistemológico em que o ambiente (e seus problemas) são tratados como visões baseadas culturalmente e contestadas socialmente (FLEURY et al, 2017). Baseadas culturalmente pois se tratam de construções cognitivas, sociais e políticas de grupos sociais situados, e, portanto, inseparáveis da percepção, do uso e do significado que é “produzido” por estes grupos (ALONSO e COSTA, 2002). Um ambiente estável (natural), diversos usos por parte de diferentes atores sociais (socialmente construído). As disputas e conflitos ocorrem em dois sentidos, então: nos diferentes usos do território e dos recursos naturais, assim como sobre o direito à terra e a distribuição dos ônus e bônus das atividades realizadas no espaço material, e também as representações que se faz da natureza, esta, uma realidade “lá fora”, contestadas socialmente. Dessa forma, o ambiente é uma realidade social investigada como qualquer outra, como trabalho, saúde, corpo, religião, educação (ALMEIDA e PREMEBIDA, 2014).

A disputa em torno da referida contaminação pode ser enquadrada na definição que apresentei acima de conflito ambiental, em que há uma luta pelos usos e apropriações do minério, e distribuição desigual dos ônus e bônus da atividade minerária (ACSELRAD, 2004) - ouro para alguns poucos, arsênio para muitos. Contudo, pessoas, substâncias, leis, instituições e outras entidades se misturam e se envolvem em cadeias de interconexões e reações para estabelecer o que está contaminado em Paracatu, e é difícil estabelecer uma distinção clara entre o que é social e o que é técnico, entre o que é político e o que é científico. Trata-se de um fenômeno híbrido – humanos e não-humanos interagem, se ligam

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8 e se constituem conjuntamente na composição e estabilização do que é a contaminação por arsênio (LATOUR, 2004). Para os moradores de Paracatu e para os signatários do Manifesto Paracatu, o arsênio se constitui enquanto sintomas de intoxicação, doença e destruição de corpos que já foram saudáveis. Nas pesquisas e testes realizados pelo CETEM, o arsênio se mostra pouco presente, enquanto que para a Kinross, sua presença é um fenômeno natural – presente em toda a costa terrestre. De que tipo de conflito estamos diante quando nos deparamos com situações em que não há consenso aparente sobre a natureza, quantidade, e, tampouco, a real existência8 da contaminação por arsênio em Paracatu? Qual o

papel que controvérsias científicas assumem em um conflito mais amplo? O que acontece quando nos vemos diante de uma situação em que híbridos proliferam, e em que as disputas não se encerram em grupos sociais heterogêneos que disputam as apropriações materiais e simbólicas daquilo que se convenciona chamar de natureza (FLEURY, 2013b), mas sim pela própria estabilização do que é ou poder vir a ser a contaminação por arsênio? Qual vantagem analítica se ganha ao virarmos a chave epistemológica moderna e assumirmos que “aquilo que “é” no mundo (a realidade), o é a partir de padrões relacionais de associação e dissociação” (FERREIRA e LESSA, 2019, s/p) entre agentes heterogêneos?

O argumento geral de que a realidade é composta por entes heterogêneos, trazidos à existência a partir de suas relações, toma impulso nas contribuições da área dos estudos sociais de ciência e tecnologia (STS), particularmente a partir da Teoria Ator-Rede (TAR). Como aponta Law (2004), esta área se caracteriza pelo estudo da ciência e da tecnologia em seu contexto social, ou seja, o conhecimento científico e as tecnologias participam do mundo social, sendo modeladas por ele, e simultaneamente o modelando. Essa premissa básica significa a co-produção entre ordem social e a tecnociência e a inseparabilidade entre o material e o social. A TAR, inspirada pelas etnografias de laboratório realizadas nos anos 1970 e 1980, radicaliza esse argumento e coloca a materialidade no centro de sua concepção ontológica de que “todas as entidades no mundo – de nanopartículas a corpos,

8 Importante salientar que não se trata da existência material da substância arsênio, mas sim de sua

qualidade “contaminatória”. Provisoriamente, utilizo a ideia geral de que contaminação é um tipo de “transmissão de impurezas ou de elementos nocivos capazes de prejudicar”, como postulado pelo

Dicio – Dicionário Online de Português. Do latim ‘contaminatio’, se traduz como “poluição”.

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9 grupos, ecologias e fantasmas – são constituídos e reconstituídos em redes híbridas de relações materiais e discursivas” (FARÍAS et al, 2020). Dessa forma, atores e redes se constituem como efeitos de suas relações, sem qualidades prévias. Essencialismos dualistas, típicos do pensamento moderno, como agência e estrutura, grande e pequeno, humano e não-humano, antes e depois, contexto e conteúdo, natureza e sociedade, não são dadas na ordem das coisas, mas nas associações e disassociações materialmente constituídas (LATOUR, 2012). Investigações nesse sentido focam nas práticas, práticas essas que são enactadas nas, pelas e através dessas relações (LAW e HASSARD, 1999), que garantiriam sua estabilização relativa e sua durabilidade. Enactment, termo de difícil tradução para o português, é o que Law (2004) chama de “um novo sinônimo para performance”, e reivindica que “as relações, e assim realidades e representações de realidades estão sendo infinita ou cronicamente trazidas à existência em um processo contínuo de produção e reprodução, e não têm status, posição ou realidade fora desses processos” (Idem, p.159, grifos meus). Tudo isso significa que, ao olhar para a contaminação por arsênio em Paracatu, meu foco recairia sobre sua composição, saindo da questão de “como podemos conhecer” o conflito em sua forma já estabilizada, nas representações que se faz do meio ambiente e da apropriação desigual de seus recursos, para uma questão ontológica: como a contaminação é enactada nas práticas de atores heterogêneos? Quais contaminações podem existir, quais ficam de fora? Como esses mundos se coordenam, se excluem ou se sobrepõem em relações eminentemente conflitivas, já que a estabilização de redes não é um processo fácil? (MICHAEL, 2017).

Contaminações, no plural. Se a natureza das coisas não está dada a priori e a realidade é uma consequência de relações materiais, compostas e recompostas, então o mundo é melhor concebido como múltiplo (MOL, 2002). Práticas localizadas e configuradas de diferentes formas terão efeitos ontológicos diversos, gerando tipos diferentes de entidades, e, portanto, situacionais, sem um esquema ontológico geral para classificá-los (MOL e LAW, 2002, p.07). Isso significa dar atenção às realidades que ficam de fora das simplificações, a diferença, uma vez que multiplicidade é sobre coexistências em um dado momento, que se interferem, e que “oscilam interminavelmente entre a presença e a ausência” (Idem, p. 18). Como elas interagem é a questão, o que Mol (1999) denomina de políticas

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10 ontológicas. O termo política sublinha o processo de formação de mundos, de caráter aberto e contestado, sujeito à conformação de ordens alternativas no campo relacional:

Se o status ontológico das entidades é uma realização dentro de um estado de fluxo contínuo, o desfecho temporário de práticas, interações e intervenções, então a constituição da realidade é intrinsecamente política porque determina maneiras de existir e de relacionar entidades humanas e não humanas umas com as outras (PELLIZZONI, 2015, p.76).

Estes pressupostos basilares fundamentam os dados aqui apresentados, pois permitem a aproximação ao tema das contaminações desestabilizando a clássica distinção entre natureza e sociedade, isto é, um mundo estável de um lado, e representações múltiplas de outro. Pensar no arsênio em Paracatu como uma substância escorregadia que escapa da lavra e das barragens e que instiga a existência de novos produtos, corpos e mundos sociotécnicos, nos permite ir além da concepção de contaminação enquanto “algo que resta” da exploração de ouro, à espera de ser descoberto pelas lentes da ciência (BOUDIA et al, 2018). Desse modo, entre processos conflituosos de variadas matrizes, mas ainda assim estritamente relacionadas, uma série de disputas, dissensos e controvérsias se agregam e se conformam em múltiplas versões da contaminação por arsênio (MOL, 2002). Esses processos encontram expressão no litigioso licenciamento ambiental que expandiu a mina Morro do Ouro e agravou a questão fundiária local, e, de especial importância para este artigo, em uma controvérsia científica que permanece em aberto, conforme será destrinchado na próxima seção. Meu argumento central, nesse sentido, é que as múltiplas versões da contaminação em questão se traduzem em uma forma de conflito ambiental que faz-mundos e que se expressa precisamente por sua materialidade, heterogeneidade, complexidade e multiplicidade (LAW e MOL, 2002), sendo a controvérsia científica relacionada à presença do arsênio lócus privilegiado para a análise do conflito em questão.

O reconhecimento do caráter material da composição dos mundos em que vivemos e do fundamento ontológico de que o mundo se constitui nas ações tanto de humanos quanto de não-humanos, traz desdobramentos e possibilidades inovadoras para o exame de como mundos contaminados e se constituem, se mantém e se findam. Nessa chave de pensamento, os conflitos ambientais podem ser observados de uma forma alternativa, como conflitos ontológicos que envolvem

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11 histórias conflitantes sobre “o que está lá” e como eles constituem realidades em campos carregados de relações de poder (BLASER, 2013). Em outras palavras, o conflito ocorre na própria constituição do que é o ambiente e do que é a contaminação, indo além da dimensão material dos recursos naturais demarcadas pelos estudos dos conflitos socioambientais e dos diferentes pontos de vista que grupos sociais possuem em relação aos seus usos. Assim, essa proposta alternativa observa as práticas conflituosas que geram essas perspectivas diferentes, como consequências, e não como pontos de partida.

Discussão

Tendo discutido os pressupostos teóricos que informam a pesquisa de doutorado da autora, passo à descrição dos dados preliminares coletados, para então, por fim, tecer algumas breves considerações de cunho analítico, de forma a apontar os próximos passos a serem seguidos.

A trajetória da mineração de ouro em Paracatu e o controverso arsênio

A mineração de ouro em Paracatu iniciou-se em meados do século XVIII, a partir da descoberta do precioso metal nos vales da região no ano de 1744 (GAMA, 2015), tendo se transformado continuamente ao longo dos últimos dois séculos. A constituição e o desenvolvimento do município são intimamente entrelaçados com o movimento de interiorização do território brasileiro, então colônia de Portugal, e com a busca por ouro empreendida pelas bandeiras nos séculos XVII e XVIII, em consórcio com interesses de expansão agropastoril (VENANCIO, 1998). Apesar do declínio do ouro aluvial9 no século seguinte, tanto na quantidade disponível quanto

em decorrência da má administração da Coroa Portuguesa, a mineração continuou a ser uma das principais atividades econômicas da cidade, na figura do garimpo

9 Depósitos aluvionares são áreas onde houve acúmulo de sedimentos clásticos (fragmentos de

outras rochas) de tamanhos variados, em sistemas fluviais, relacionado à exploração rudimentar do garimpo manual (CORREIA, 2019). A grosso modo, é o ouro disponível nos leitos dos rios, no nosso caso, do Córrego Rico e do Rio Paracatu.

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12 artesanal e mecanizado a partir da década de 1960, dividindo espaço com a agropecuária extensiva (SOUZA et al, 2011).

Com o garimpo artesanal e mecanizado sendo proibido no ano de 1990, práticas publicamente acusadas de fazerem uso de técnicas ambientalmente inseguras como a queima ao ar livre do amalgama do ouro com mercúrio, uma segunda forma de exploração do ouro se assenta na região. Esta, a mineração em rochas duras, possui baixo teor de ouro e alta quantidade de arsenopirita, sendo que para a retirada do ouro nesse contexto, é necessária uma infraestrutura de alto custo, uma grande área de exploração e a utilização de amplos recursos hídricos. Ocorre que, como alerta Alves (2015), o processo de extração do ouro nessas condições também pode liberar o arsênio no meio ambiente e nas barragens de rejeitos de Santo Antônio e de Eustáquio. Esta etapa da atividade foi iniciada pela transnacional Rio Tinto Brasil em 1987, por meio de sua subsidiária Rio Paracatu Mineração (RPM), na mina Morro do Ouro. Foi então no ano de 2003 que a multinacional canadense Kinross Gold Corporation, até então acionista da RPM, adquiriu a maior parte das ações da mineradora, tornando-se a proprietária e responsável operacional pelas atividades na Mina Morro do Ouro. A Kinross logo iniciou um projeto de expansão da mina Morro do Ouro, que além de ter triplicado a produção anual de ouro, a despeito do baixo teor aurífero das rochas da região, também ampliou em mais de 15 anos o tempo de vida útil da mina (ANDRADE et al, 2019).

A expansão da mina mobilizou um longo e controverso processo de licenciamento ambiental. Este é um procedimento administrativo através do qual o poder público, amparado pelo artigo 20 da Constituição Federal de 1988, que dispõe que são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo, autoriza a construção, instalação e ampliação de atividades utilizadoras de recursos ambientais capazes de causar degradação ambiental. Trata-se de um ato complexo, “composto de diversas fases sequenciais com o fim de se garantir o princípio da precaução ambiental. Só se pode avançar de uma fase à outra após cumprimento de todas as condicionantes legais impostas ao empreendedor” (BARROS, 2015, p.33). O processo de licenciamento ambiental da expansão da mina Morro de Ouro foi marcado por irregularidades ligadas aos condicionantes

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13 legais que deveriam ser cumpridos para que fosse homologada a Licença de Operação (LO) da mina, referente à implantação dos projetos de controle ambiental. Nesse sentido, Barros (2015, p.35) aponta que a empresa “fracionou o projeto em vários projetos parciais, de modo a diminuir o impacto ambiental a ser considerado pelos órgãos ambientais”10, particularmente os impactos sobre a

qualidade de vida e a saúde os moradores de Paracatu.

Este ponto, como já argumentei, também não é pacificado. Pelo contrário, é o ponto de dissidência que atualmente encontra-se no centro da problemática da mineração de ouro em Paracatu. Buscando me familiarizar com o tema, realizei um levantamento exploratório de reportagens relacionadas aos termos “Paracatu”, “arsênio e “mineração” através da ferramenta de busca do Google, tanto em “todas”, quanto em “notícias”. As palavras-chave foram escolhidas por serem pontos em comum à discussão em questão, e contabilizei 45 notícias em diferentes portais desde o ano de 2010 sobre o assunto, incluindo nos jornais eletrônicos da EBC e do El País. Os principais temas envolvidos nessas reportagens foram ordenados a partir da categorização do assunto principal tratado pela reportagem, com o intuito de sistematizar a temática principal tratada nas publicações. As categorias, baseadas em sua frequência de manifestação, foram as seguintes, respectivamente: estudos (15); audiências, judicializações e acordos (13); envenenamento (09); denúncias (06); outros – portarias normativas e corrupção (03). Nesse sentido, a frequência de reportagens sobre “estudos” e “audiências, judicialização e acordos” sugerem que os impactos à saúde derivados da atividade mineradora passaram por um processo de visibilização e inserção na esfera pública paracatuense na última década (BARROS, 2015).

O comprometimento da saúde da população se traduz na preocupação com a quantidade considerável de casos de câncer e adoecimentos na região em comparação a outros municípios de mesmo porte (DANI, 2012), tal como relata uma moradora de Paracatu, citada na introdução: “Tenho pressão alta, meu corpo dói e coça, meu couro cabeludo também e fico com um mal estar”. Isso porque quando da explosão das rochas e retirada de toneladas de terra para a extração do

10 Ação Civil Pública 2009.38.06.001018-9, ajuizada pelo Ministério Público Federal de Minas

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14 ouro, libera-se também o arsênio, antes preso nas rochas, que encontra o ar na forma de uma “poeira fugidia” e de gás, atingindo também as águas e o solo após os rejeitos serem depositados nas barragens (SANTOS, 2012)11. O processo

exploratório do ouro leva em conta a tentativa de recuperação e armazenamento do arsênio, que, de acordo com Santos (2012), não é totalmente eficiente, uma vez que sobra ainda 17% de arsênio não recuperado, que fugiriam da lavra. O restante do material é descartado na barragem de rejeitos, aumentando o risco de contaminação das águas fluviais do Rio Paracatu, que alimentam a distribuição de água na cidade.

Como esperado, os argumentos acima dispostos são contestados pela Kinross em diversos meios. Em um deles, seu website, por exemplo, na seção propositalmente denominada de “mitos e verdades” relacionados à contaminação por arsênio, a empresa afirma veementemente que “as atividades de mineração da Kinross são consideradas de colaboração insignificante para exposição ao arsênio em geral”, ideia que compõe mais uma das histórias já contadas. Argumenta a empresa que “o arsênio ocorre naturalmente em toda crosta terrestre”, sendo que “a maior fonte de exposição ao arsênio em Paracatu, assim como mundialmente, vem de alimentos, o que normalmente não é considerado preocupante”12.

Entretanto, relatório produzido pela Above Ground e pelo movimento Justiça Global, em 2017, em compasso com diversas outras publicações científicas, reportagens e postagens em blogs e redes sociais apontou que

por anos, residentes de Paracatu têm expressado preocupação em relação à poluição da mina Morro do Ouro e seus efeitos à saúde pública. Eles se preocupam que o ar, o solo e a águas possam estar contaminadas por níveis perigosos de material particulado, poeira e rejeitos produzidos pela mina. Os contaminantes em questão são o cianeto e o arsênio (ABOVE GROUND, 2017, p. 34).

Pressionada, a Prefeitura Municipal de Paracatu encomendou em 2010 um estudo epidemiológico da exposição de arsênio associado a riscos à saúde ao Centro de Tecnologia Mineral, o CETEM. O relatório final publicado pelo CETEM

11 A Kinross apresenta em seu canal no YouTube um vídeo institucional que ilustra o processo de

extração e beneficiamento do ouro em Paracatu. O vídeo pode ser acessado neste link: https://www.youtube.com/watch?v=BzKkuq2u8ME

12 Disponível em:

http://www.kinross.com.br/duvidas-frequentes/mitos-e-verdades/#:~:text=As%20atividades%20de%20minera%C3%A7%C3%A3o%20da,ser%20absorvid o%20pelo%20corpo%20humano. Acesso em: 20/08/2020.

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15 (2013), cujo objetivo foi avaliar a contaminação ambiental por arsênio e promover um estudo epidemiológico da exposição ambiental associada na população humana de Paracatu, traz conclusões aparentemente contraditórias entre si. Em um primeiro momento, afirma que foram encontrados níveis baixos de arsênio na urina e no cabelo em uma amostra de residentes da cidade. Também concluiu que não há casos de doença na pele relacionadas ao arsênio, tampouco evidências de níveis de mortalidade acima do normal relacionadas a tipos de câncer conectados à exposição ao arsênio. Ainda, os níveis de arsênio no suprimento de água potável dos residentes estavam dentro de limites seguros e, em média, os níveis medidos em partículas no ar estavam dentro dos limites esperados para áreas urbanas. O relatório conclui, finalmente, que “em geral os resultados ambientais indicam baixa exposição humana ao arsênio”. Entretanto, em 2014, o próprio CETEM informou ao Ministério Público Federal que em locais proximos às minas, e a favor do vento, identificou maiores teores de arsênio, além de constatar que na análise de sangue os teores de arsênio encontravam-se acima dos limites para a população (BARROS, 2015; ABOVE GROUND, 2017).

Barros (2015) indica, ainda, que em contraponto às conclusões trazidas pelo relatório oficial, divulgadas pela imprensa e amplamente publicizadas pela Kinross como garantia de baixo risco, um artigo publicado pela coordenadora da pesquisa realizada pelo CETEM concluiu que o arsênio não oferece riscos de doenças não-carcinogênicas para adultos, mas que as crianças estão em risco. Já os efeitos carcinogênicos, que promovem os riscos de incidência de câncer, estão presentes tanto em crianças quanto em adultos, sendo que a principal via de contaminação para ambos os tipos de doenças, não-carcinogênicas e carcinogênicas, é a ingestão de água contaminada e inalação de partículas totais em suspensão.

Outro estudo, desenvolvido a pedido da Kinross pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Recursos Minerais, Água e Biodiversidade, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais-INCT-Acqua (NG et al, 2015)13, alia-se aos

13 De acordo com o website do INCT-Acqua, seu objetivo é “identificar microrganismos e plantas

(provenientes de locais contaminados), capazes de remover elementos tóxicos, bem como elucidar seus mecanismos de tolerância. Esta iniciativa visa contribuir para a obtenção de espécies a serem utilizadas no desenvolvimento de métodos de biorremediação. Além de contribuir para a “remoção de elementos poluentes/contaminantes”, pretende-se que a identificação destas espécies possibilite o desenvolvimento de alternativas mais sustentáveis para a recuperação de áreas degradadas”.

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16 argumentos tanto da mineradora quanto do CETEM. A mineradora, em seu website, concluiu, mobilizando as credenciais dos autores do estudo, que as concentrações de arsênio em Paracatu são baixas e

estão dentro dos limites de segurança aceitos nacional e

internacionalmente. [...] Os resultados do projeto são independentes e seus autores acadêmicos altamente respeitados. O projeto em Paracatu é liderado pelos professores Virginia Ciminelli, engenheira química da Universidade Federal de Minas Gerais, Massimo Gasparon, geoquímico da Escola de Ciências da Terra da Universidade de Queensland (Austrália) e Professor Jack Ng, toxicologista certificado de renome internacional do Centro Nacional de Investigação em Toxicologia

Ambiental da Universidade de Queensland14.

Os resultados desses estudos se contrapõem a diversas outras pesquisas realizadas na região desde 2009. Patrícia Rezende (2016), em dissertação defendida na UFMG, conclui que, a partir de amostras coletadas durante a pesquisa de campo, e em relação aos níveis subtotais de arsênio nas amostras de sedimentos provenientes da sub-bacia do Rio Paracatu, vários pontos da amostra associados a córregos próximos à mineradora como o Córrego Rico, apresentaram valores superiores aos parâmetros da Resolução Conama 344/2004 (BARROS, 2015).

Mais contundentes são as conclusões apresentadas por Dani et al (2009), Dani e Santos (2016) e pelo relatório da Above Ground/Justiça Ambiental (2017). Dani e Santos (2016, p.07) argumentam a favor da “gravidade, persistência e progressão da contaminação ambiental das águas superficiais e subterrâneas da bacia do Ribeirão Santa Rita pelo arsênio inorgânico liberado pela mineração de ouro em Paracatu – MG”. A contaminação seria causada pelos depósitos de rejeitos da mineração erigidos sobre os córregos Santo Antônio e Eustáquio, na bacia do Ribeirão Santa Rita, em Paracatu, além de apontarem, em contraponto às conclusões do CETEM, que há uma alta frequência de moradores da bacia do Ribeirão Santa Rita que apresentam concentração de As na urina acima do valor de referência legalmente regulamentado, devido ao consumo de água e alimentos contaminados. A exposição pela via respiratória também aparece como fator

Disponível em:

https://www2.icb.ufmg.br/limneapeld/site/index.php/projetos/inct-aqua#:~:text=O%20INCT%2DAcqua%20busca%20identificar,desenvolvimento%20de%20m%C3 %A9todos%20de%20biorremedia%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 03/09/2020.

14 Disponível em:

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17 preponderante, novamente em desacordo das conclusões do CETEM. No mesmo sentido, Giovani Melo, em análise realizada pelo Laboratório Labiotec, de Uberlândia, conclui a favor da contaminação por arsênio nas águas da barragem de rejeitos da Kinross (FIOCRUZ, 2015). As concentrações encontradas foram consideradas perigosas do ponto de vista clínico, uma vez que as contaminações por metais pesados provocam cegueira, destruição do sistema imunológico, destruição do sistema nervoso central e outras afecções, sempre que há exposição do ser humano aos locais e águas atingidas (FIOCRUZ, 2015). Já o citado relatório da Above Ground (2017) realiza uma análise técnico-crítica tanto do relatório da CETEM quanto dos estudos de Santos (2012), concluindo que

todas as medições de arsênico de fontes de água no CETEM (2013) devem ser consideradas como subestimadas devido à prática inapropriada de forçar amostras de água através de um filtro de 0,45 μm antes da análise; medições de concentrações de arsênico em sedimentos fluviais e em solo no CETEM (2013) provavelmente não são tendenciosas nem altas nem baixas; a metodologia e os resultados do INCT-Acqua (2015) são tão pouco detalhados que não podem ser comparado com outros estudos; enquanto dos Santos (2015) exagera a precisão de suas medições de arsênico, os resultados provavelmente não são tendenciosos nem altos nem baixos; embora os estudos de dos Santos (2015) e do CETEM (2013) usassem metodologias completamente diferentes, na região de sobreposição espacial (vizinhança da vila de Santa Rita), a diferença nas concentrações médias de arsênico de água superficial não foi estatisticamente significativa (EMERMAN, 2018, p.09).

O relatório foi respondido pela Kinross em 2018 por meio de memorando, que reiterou o rigor científico das publicações do CETEM e do INCT-Aqcua, afirmando que os dois estudos “mostram claramente que o arsênio de nossas operações não é uma preocupação de saúde pública para a população de Paracatu e que as concentrações de arsênio nos alimentos, água e poeira em Paracatu são normais”15.Não obstante as declarações conclusivas da mineradora quanto à não

existência de riscos à saúde da população local, em 2015 uma ex-representante do Hospital do Câncer de Barretos relatou que sofreu ameaças por parte da mineradora e da prefeitura municipal de Paracatu ao denunciar que o hospital municipal estaria omitindo diagnósticos de câncer. O caso chegou à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que promoveu audiência pública sobre o tema, com o objetivo de averiguar denúncias de que

15 Disponível em:

https://business-humanrights.org/sites/default/files/documents/Kinross%20response%20to%20BHRRC%20Feb%202%20201 8_PT_01_v1.docx. Acesso em: 22/09/2020.

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18 diagnósticos de câncer estariam sendo escondidos dos pacientes. De acordo com a denunciante, em 2012, a cidade teve 563 casos confirmados de câncer, checados por meio de exames realizados em sete hospitais de diferentes cidades, números negados em audiência pelo então prefeito do município, Olavo Remígio Condé16.

Durante a audiência, foram citados os estudos do CETEM e do INCT-Acqua que negam que a liberação de arsênio seja um risco para os moradores de Paracatu, gerando disputas internas à audiência, cujo efeito foi a instauração de uma sindicância por parte do Ministério Público Federal com o objetivo de investigar as ameaças denunciadas pela referida ex-representante (BARROS, 2015).

Assim, além da mineradora e do poder público, um terceiro grupo de atores emerge no conflito em torno da mineração de ouro em Paracatu: a comunidade científica, que disputa no meio acadêmico, jurídico e político a legitimidade das informações em torno da presença, quantidade e dispersão de arsênio derivado da mineração de ouro local, entrelaçada com os outros atores. A mineradora Kinross, contando com aliados como o CETEM, o INCT-Acqua e empresas independentes, compete com cientistas ligados à universidade e a movimentos sociais a realidade, em última instância, sobre a contaminação dos solos, das águas e da população humana por arsênio.

Considerações finais

Este trabalho versou sobre um dos aspectos presentes no conflito ambiental em torno da mineração de ouro em Paracatu, Minas Gerais. Enfatizou-se a controvérsia cientifica quanto à contaminação por arsênio derivado desta operação em larga escala e a céu aberto, como ponto de entrada no conflito mais amplo. Procurei apresentar os principais atores e estudos envolvidos na controvérsia, de modo a iniciar um mapeamento da rede sociotécnica em que a questão se insere.

Na primeira seção apontei os caminhos teóricos-metodológicos que guiam o esforço de pesquisa que venho realizando atualmente no âmbito do curso de doutorado em Sociologia, utilizando dos pressupostos que a TAR trazem à mesa.

16 Disponível em:

https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2015/09/25_com_dir_humanos_paracatu.html. Acesso em: 22/09/2020.

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19 Nesse sentido, utilizo uma conceituação alternativa para a ideia de conflito ambiental, tratando-o como um conflito ontológico em que as diferentes práticas de atores heterogêneos enactam realidades contaminadas e não contaminadas. Já na segunda seção, descrevi alguns aspectos relevantes levantados sobre a referida controvérsia científica, identificando os principais trabalhos, argumentações e estratégias de convencimento que são mobilizados ao longo da disputa. Foi apresentado o relatório publicado pelo CETEM, que conclui pela não contaminação por arsênio dos solos, águas e corpos de Paracatu, conclusão contestada por outro grupo de atores relevantes: cientistas ligados à luta ambientalista e por órgãos internacionais defensores dos direitos humanos, como a Above Ground e o Justiça Global. Ainda, a empresa Kinross adentra a controvérsia mobilizando cientistas cujos trabalhos corroboram as conclusões apresentadas pelo CETEM, utilizando-se de estratégias de convencimento como a legitimidade dos pesquisadores envolvidos.

Dessa forma, tratando-se de um estudo preliminar, entendo que os próximos passos da pesquisa encontram-se numa maior delimitação da rede sociotécnica que se constitui nas ações, textos e argumentações dos atores aqui identificados, de modo a identificar como se conectam, se movimentam e performam ontologicamente a contaminação por arsênio. Assim, pretende-se compreender os caminhos, cenários e trajetórias do arsênio não só na esfera científica, mas também em outros aglomerados, tendo em vista a complexidade do conflito ambiental estudado, que envolve disputas com comunidades quilombolas, denúncias por parte dos moradores de Paracatu, movimentos sociais atuantes na questão, assim como um controverso processo de licenciamento ambiental.

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