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A participação popular nos projetos públicos de intervenção urbana: o caso da 7ª etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS

DE INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de

Revitalização do Centro Histórico de Salvador

Salvador 2011

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JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS

DE INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de

Revitalização do Centro Histórico de Salvador

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof.ª. Dr ª. Anete Brito Leal Ivo

Salvador 2011

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Bittencourt, José Maurício Carneiro Daltro

B624 A participação popular nos projetos públicos de intervenção urbana: o caso da 7ª etapa de revitalização do centro histórico de Salvador /José Maurício

Carneiro Daltro Bittencourt . – Salvador, 2011. 167f. : il.

Orientadora: Prof.ª. Dr ª. Anete Brito Leal Ivo

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2011

1. Patrimônio histórico – Salvador (BA). 2. Pelourinho (Salvador, Bahia).

3. Participação social. 4. Preservação. 5. Espaços públicos. I. Ivo, Anete Brito Leal. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDD – 363.69

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TERMO DE APROVAÇÃO

JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS DE

INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia – UFBA, pela seguinte banca examinadora:

Anete Brito Leal Ivo – Orientadora (UFBA) Doutora em Sociologia

Universidade Federal de Pernambuco Ângela Maria de Almeida Franco (UFBA) Doutor em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal da Bahia

Iracema Brandão Guimarães (UFBA) Doutor em Sociologia

Universidade de São Paulo

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Dedico este tempo de estudo, de escrita, em memória a Dona Maria, por seu silêncio que também revelou sua luta, por sua alegria, sua presença, sua amizade, seu carinho.

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AGRADECIMENTOS

Por muitos momentos da escrita desta dissertação fiquei em agradecimento. Agradeci a DEUS, aos santos, por me mostrar caminhos, estradas, me colocar junto às lutas populares, da oportunidade em refletir, dialogar com os conceitos e teorias das Ciências Sociais, da prática à teoria e voltar... e assim pedi para não me tirar desta estrada. Estrada dura, sofrida sim, em ter que objetivar o que sempre foi tão subjetivo em mim; a paixão e a mística.

Ao CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, por ser uma casa, uma escola, uma universidade. Pela oportunidade em me dar tempo, espaço, conhecimento, prática. Da convivência com pessoas especiais e por seus incentivos para com esta minha produção: Maria Ubajareida (Bajinha), Rita de Cássia Santa Rita (Ritinha), Manoel Maria do Nascimento Filho (Manolo), Catarina Lopes, Padre Andrés, Padre Clóvis, Joaci Cunha, estes em especial por conviverem comigo em campo de trabalho.

A AMACH – Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, pela construção conjunta. Pelas lutas e embates com o Governo do Estado da Bahia. Pela troca, por me ensinar sobre a vida, os perigos, as mazelas, a força, as vozes, a resistência: Jecilda Melo (A Pró), Sandra Regina, Dona Maria, Elisângela, Benedita, Chica, Lurdes, Rose, José Carlos, Cícero. Aqui incluo Professora Lysiê Reis, companheira e amiga, por sua contribuição a este trabalho de pesquisa e por todo momento bom e difícil que vivemos no acompanhamento da esfera pública criada com a intervenção da 7ª Etapa de revitalização do Centro Histórico.

Especialmente a Professora Anete Brito Leal Ivo, por sua orientação, por me mostrar os caminhos da teoria. Por sua competência, compromisso e seu incrível poder em responder detalhadamente as minhas tantas questões e angústias. Por me tranqüilizar quando assim deveria ser e por apresentar críticas construtivas nos momentos mais intensos desta minha produção. Anete, outra vez, fica difícil te agradecer!!

A minha família. Aos meus pais, Margarida Maria M. Carneiro Bittencourt e José Pedro Daltro Bittencourt, por tudo. Minha irmã Daniella Daltro, que acabou por me levantar em momento pessoal difícil enfrentado durante o período do mestrado. Aos meus dois filhos, Marina (5 anos) e Pedro (3 anos), por me mostrarem que a vida é para ser vivida de fato. A Maria Pessoa, pelo amor, por nossa construção, nossa caminhada, nossa vida conjunta.

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O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado como no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que virão depois de nós. Hannah Arendt

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RESUMO

Este estudo busca analisar o campo conflituoso dos usos diferenciais do espaço urbano a partir da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico, no Pelourinho (Salvador), observado do ponto de vista da formação de esferas públicas de mediação e encaminhamento dos interesses conflitantes entre os moradores e o Governo do Estado – ambos defendendo o patrimônio histórico, mas cada um de seu próprio ponto de vista. A questão central em análise é a reconstituição de um campo de conflito em formação, e como, ao longo do processo, os moradores vão se transformando em sujeitos de direitos, com suas ambiguidades e contradições, através de um processo reflexivo, não-linear, com avanços e recuos, de avaliação sobre os usos do espaço público urbano. Apesar de se constituir numa experiência que afetou um pequeno número de moradores, foi capaz de mobilizar interlocutores em grande escala, desde moradores locais, técnicos do Estado e imprensa até representantes do Governo Federal e de organizações internacionais. O debate entre moradores e o governo permite observar concepções e valores distintos quanto à abordagem do patrimônio e à concepção da “revitalização”: a racionalidade do planejamento do governo e os interesses constituídos pelos moradores do local, que contrapuseram a “cidade planejada” e a “cidade vivida”, o patrimônio material e o patrimônio imaterial. O detalhamento deste conflito tem como base a documentação elaborada pelo trabalho de assessoria aos movimentos populares de luta por moradia, pelos procedimentos judiciais construídos em defesa dos moradores e por matérias de jornal. A partir desses documentos foram sendo analisadas as ações comunicativas de defesa e contestação elaboradas como justificativas nas arenas constituídas com vistas à construção da participação popular no projeto da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador. O resultado deste trabalho mostra que o processo político não é linear; destaca as lutas no âmbito dos próprios moradores; avalia os limites e alcances do processo participativo e a contradição inerente aos usos do espaço urbano, especialmente nas situações de preservação de sítios históricos.

Palavras-chave: Participação popular. Centros históricos. Pelourinho. Preservação patrimonial. Esfera pública.

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ABSTRACT

This study seeks to analyze the conflicted field of the different uses of urban space within the 7th Stage of the Revitalization of the Historic Center at Pelourinho (Salvador, Bahia), observed from the viewpoint of the formation of public spheres of mediation and routing of conflicting interests among the residents and the State Government – both defending the heritage, but each one of your own point of view. The central question at hand is the reconstruction of a field of conflict in the making, and how, throughout the process, residents are transformed into subjects of rights, with its ambiguities and contradictions, through a reflective, non-linear process of assessment of the uses of public space, with advances and retreats. Even though this is an experience that affected only a small number of residents, it was able to mobilize large-scale actors, from local residents, technicians and state representatives to press the federal government and international organizations. In the debate between residents and State government one can observe different views and values about equity and the approach to the concept of "revitalization": the rationality of government planning and the interests generated by local residents, who countered the "planned city" and "lived city”, the “material heritage” and the “intangible heritage”. The details of this conflict is based on documentation prepared by the advisory work of popular movements fighting for housing, by the judicial procedures on behalf of the residents and by newspaper articles. From these documents it was possible to analyze the communicative actions of defense and disputation as justifications in the public arenas prepared to the construction of popular participation in the 7th Stage of the Revitalization of the Historic Center of Salvador. The result of this work shows that the political process is not linear; highlights the contradictions implicit in the context of the struggles of the residents themselves; assesses the limits and scope of the participatory process and the contradiction inherent in the use of urban space, especially in situations of preservation of heritage sites.

Keywords: popular participation, heritage sites, Pelourinho, patrimonial preservation, public sphere

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SUMÁRIO

1 Introdução ... 10

CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO CENTRO: PLANOS E TRANSFORMAÇÕES ... 35

2.1 Histórico do Centro Histórico... 35

2.2. A formação de um consenso sobre a vocação turística do “Centro Histórico” ... 43

2.3. Reforma urbana, requalificação, revitalização, relocação o que nos “re-vela” os termos ... 53

CAPÍTULO 3 - A IMPLANTAÇÃO DA 7ª ETAPA DE REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO ... 64

2.1. Os objetivos, as metas e as palavras: o que revelam os documentos da implementação da 7ª Etapa ... 65

2.2. A constituição da esfera pública na implantação da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador: a mídia impressa e os primeiros embates entre atores ... 68

2.3. A voz dos moradores diante do anúncio da 7ª Etapa ... 76

CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO ... 85

4.1. A vida é uma luta: os desafios colocados para a participação popular, no projeto de revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico ... 87

4.1.1. A vida, a sobrevivência e o participar ... 88

4.1.2. Vida e luta: a participação da mulher na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico ... 99

4.1.3 O tempo de participação ... 104

4.2. Os caminhos de mobilização e mediação nas esferas públicas de participação na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico ... 112

4.3. Os amigos da AMACH e seus papeis diante da esfera pública de participação ... 114

4.4. As estratégias para construção da participação no projeto da 7ª Etapa ... 120

4.5. A construção das esferas públicas: a mediação do conflito pela instância jurídica e o Comitê Gestor ... 125

4.5.1. A mediação jurídica, os embates e as revelações ... 127

4.5.2. A expansão do conflito: relatos, fatos, revelações, seminários, articulação e reuniões ... 136

4.5.3. O alcance, as aparências e os limites do Comitê Gestor, enquanto esfera de regulação e concertação ... 146

CONSIDERAÇÕES FINAIS. ... 156

REFERÊNCIAS ... 160

2. Documentos ... 163

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1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação busca analisar a constituição de uma esfera pública formada pelos moradores em luta a partir da implementação do projeto de revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador, onde um campo de interesses conflitantes entre moradores e planejadores explicitou usos diferenciados na área do patrimônio histórico de Salvador. O embate entre os moradores locais e os técnicos dos órgãos públicos, responsáveis pelo plano de revitalização da área, expressa contradições que contrapõem moradores locais em luta pela garantia do direito à moradia e o Governo do Estado da Bahia, atores principais deste embate. Gradativamente foram sendo constituídos espaços de negociação e mediação através de diversas arenas públicas de participação dos moradores neste processo. Conquanto essa participação surgisse por uma demanda dos próprios moradores e daqueles que foram se constituindo como sua assessoria em defesa dos seus direitos, essa participação era restrita, seja pelo pequeno número de pessoas mobilizadas, seja quanto às reais possibilidades de mudança do projeto.

A análise dos projetos de revitalização urbana, especialmente em áreas de patrimônio histórico, representa um rico campo de estudo sobre as cidades contemporâneas. Ela permite explicitar os conflitos entre o “pensar” e o “fazer” a cidade, e a capacidade efetiva de constituição desses moradores como sujeitos de direitos, na esfera da participação popular democrática, permitindo observar, por um lado, como o planejamento urbano rompe com as condições de reprodução desses moradores da área onde a intervenção será executada; por outro, possibilita observar a constituição de um espaço público em formação, através dos processos de intermediação de interesses nas arenas de negociação, especialmente no campo da justiça, aonde os interesses divergentes se explicitam, expressando contraposição entre concepção e ações diferenciadas dos atores envolvidos no projeto.

Para analisar estas questões a pesquisa priorizou uma das intervenções urbanas implementada pelo Governo do Estado da Bahia1, o Projeto da 7ª Etapa de Revitalização do

1

A coordenação deste processo foi da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER), uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano, e que tem por finalidade promover, coordenar e executar a política estadual de desenvolvimento urbano, metropolitano e habitacional do Estado da Bahia.

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Centro Histórico de Salvador. A 7ª Etapa, como passou a ser conhecida a intervenção, dá continuidade a uma série de intervenções que o Poder Público da Bahia vem realizando no Centro Histórico de Salvador, mais intensamente desde o início dos anos 90. A etapa pesquisada iniciou-se no ano 2000 e se prolonga até o momento atual (2009/2011). Porém o recorte temporal desse estudo compreende o período de 2000 (ano do anúncio da implantação do projeto de reforma) e 2007, momento de entrega das primeiras chaves das casas reformadas aos moradores.

Este processo, que implicou, ao mesmo tempo, numa demanda de participação popular e na defesa do direito à moradia pelos moradores, explicita os limites e avanços alcançados para a participação dos moradores no projeto sua luta para que pudessem se expressar e serem ouvidos pelo governo. Neste processo observam-se contradições entre “diferentes tempos” vividos pelos atores: o tempo oficial do desembolso dos recursos dos financiadores e dos mandatos executivos, que se contrapõem e confrontam com o tempo necessário para a organização comunitária e popular de forma a poderem absorver essas informações, formular suas propostas, sistematizar e apresentar suas demandas e expectativas, além do desafio de conciliar essas dificuldades às condições efetivas da reprodução e da sobrevivência. O papel das mulheres em maioria, dentro da organização popular, também ganha destaque. As estratégias criadas, a organização comunitária da associação de moradores, o uso da mídia impressa, a busca das parcerias, a construção de documentos públicos e a mediação da justiça, através do Ministério Público do Estado da Bahia, foram observadas como ações desenvolvidas a partir do poder de expressão dos moradores. Esses gradativamente foram descobrindo e reconhecendo, na dinâmica do processo de implementação e de resistência deste projeto de intervenção pública, o seu direito à voz e a necessidade de constituição do diálogo e do conflito.

Considerando que este processo de planejamento do espaço tem caráter histórico, em Salvador a dissertação faz uma reconstituição das mudanças ocorridas no Centro Histórico de Salvador até a etapa específica de revitalização pesquisada. Observa os atores emergentes, os limites e avanços no campo das negociações, bem como recompõe os sentidos da noção de “revitalização”, os julgamentos de valor moral sobre a pobreza dos moradores, o sentimento de justiça que estes formulam em relação ao destino dado ao “lugar”, destacando também como a intervenção afeta a sociabilidade desses moradores.

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De forma a qualificar a natureza da informação aqui apresentada a seguir serão apresentados elementos singulares do processo de conhecimento da área e do movimento, a partir de minha condição de assessor dos movimentos urbanos através do Centro de Estudos e Ação Social – CEAS2, no período analisado.

***

Desde 2001 passei a integrar a Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social - CEAS, entidade de assessoria aos movimentos sociais urbanos e rurais da Bahia, que tem por missão refletir e agir diante das questões que envolvem as lutas populares. Esta equipe, de caráter multidisciplinar, acompanha as lutas de moradores e moradoras de bairros populares para efetivação dos seus direitos, principalmente a garantia da moradia. Durante os meus primeiros anos de assessoria acompanhei processos de enfrentamentos e resistência de moradores em bairros como Marechal Rondon, Cabrito, Gamboa de Baixo, Bairro da Paz, Centro Histórico, todos vivenciando situação de conflito em função da redefinição dessas áreas por novos planos de ocupação e revitalização dos mesmos por parte do Poder Público, seja do Governo do Estado da Bahia ou da Prefeitura Municipal da Cidade de Salvador.

Entre estas experiências fiquei responsável por acompanhar mais diretamente o Projeto de Revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador, objeto dessa dissertação, tendo como meta construir, junto com as famílias que seriam atingidas pela reforma, um canal de diálogo e a apresentação de propostas que contemplassem os direitos destes moradores. Esta vivência como assessor, me levava a observar como os interesses e as preocupações do Poder Público acabavam por impor projetos e intervenções, que nem sempre contemplam a participação mais plural dos diversos envolvidos nestes, especialmente dos moradores em situação de pobreza e de ocupação informal da área. Neste sentido, era possível perceber como a construção informal da cidade com vistas a permanecer em determinados espaços urbanos, historicamente acabou por resultar na própria formação de Salvador. Essa ocupação espontânea e pressionada pelo capital fundiário e imobiliário contradiz com planos urbanísticos de caráter técnico, o que caracteriza tensões entre os moradores de bairros populares, suas resistências e os novos destinos definidos para área.

Ao longo do tempo os atores envolvidos e a história vão construindo um cenário político de possibilidades de ganhos, mas, ao mesmo tempo, um cenário de incertezas que

2 O CEAS é uma entidade fundada em 1967, em Salvador/BA e desde então atua junto aos movimentos

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acompanham o fazer político. No plano pessoal, algumas angústias vividas enquanto assessor, começam a ser formuladas no sentido de sistematizar essa experiência e de apreendê-la do ponto de vista analítico com recurso a uma reflexão acadêmica. Consciente dessa necessidade, me orientei para buscar esse dialogo pessoal com a academia, com vistas a traduzir o conhecimento da prática no âmbito da teoria, que me permitissem um olhar mais crítico e analítico sobre os problemas e processo desde a seleção até a formulação mais clara de um objeto de análise.

Com a orientação e acompanhamento da Prof.ª Anete Brito Leal Ivo o objeto de pesquisa, que no projeto da seleção tinha um recorte mais amplo, e propunha analisar três experiências diferenciadas de intervenção urbana, (Gamboa de Baixo, Marechal Rondon e Centro Histórico), foi sendo detalhado, restringindo-se o projeto à intervenção urbana de revitalização de áreas de moradia popular, tendo como campo empírico o Projeto da 7° Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador-BA A formulação inicial do projeto também tinha um patamar muito amplo e necessitava uma delimitação mais clara coerente com as possibilidades do material existente. Inicialmente, as questões elaboradas pareciam não se afastar das “noções prévias” adquiridas com o trabalho de assessoria e, as diversas dimensões implícitas, como a falta de uma escolha teórica clara dificultavam a delimitação do foco da pesquisa, a abordagem central de análise que orientasse o olhar sobre o problema.

Desta forma, o resultado deste esforço foi definir e restringir o objeto considerando a formação de uma “esfera pública”, e a formação de um sujeito -o morador- que se reconhece como cidadão de direito sobre a cidade, conflitando com outros fins e usos do espaço urbano: a preservação do patrimônio cultural para fins de turismo. A formação dessa esfera pública não é aqui vista como uma abstrata ou preexistente, mas ela se constitui diante da ação de intervenção do Poder Público, que tem poder regulador, mas que traz implicações sobre “o outro” – os cidadãos, moradores da área.

A partir da consciência dos riscos implícitos na intervenção se constitui um campo “conflitivo e comunicacional” entre atores moradores, a assessoria popular e os técnicos responsáveis pelo projeto do governo estadual. Gradativamente, novos recursos vão sendo constituídos com a mediação da assessoria jurídica, que se forma na busca de negociações para os encaminhamentos dos destinos dos moradores, um momento singular onde se pode observar a formação desses sujeitos num campo de luta e negociação em relação ao destino de

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um espaço público. Por outro lado, esse processo foi também ampliado e expresso na imprensa, na mobilização da opinião pública.

De forma a subsidiar a abordagem central dessa dissertação tomou-se por referência a noção de “esfera pública” de Hannah Arendt. Essa perspectiva implica identificar o campo do embate e os diferentes atores que emergem e vão se constituindo nesse processo de luta e resistência, mediados pela “estrutura de diálogos entre atores que se dão num campo do conflito e na busca por justiça”

A pesquisa, portanto, busca responder às seguintes indagações: Como surge a proposta de intervenção, em que momento ela expressa um campo de conflito e como emergem os atores envolvidos? Quais suas estratégias adotadas, quais limites e recursos são encontrados na esfera de negociação formada? Com base nessas indagações iniciais que ajudam a identificar a trama do conflito e os atores que nele se manifestam numa dinâmica de ação e reação intersubjetiva, definimos o recorte do objeto desta pesquisa.

A tensão que envolve a definição dos destinos desta área urbana implica um gradativo processo de formação e informação pública sobre o destino da área, sua funcionalidade em relação ao desenvolvimento urbano e seus efeitos sobre os seus antigos ocupantes. Este processo permite levantar três hipóteses previas: a primeira, a de que o lugar, a sua formação e constituição não resulta apenas dos traços morfológicos dos planos urbanos e desenhos arquitetônicos, mas se constitui diretamente associado à dinâmica das relações sociais. Em segundo lugar, a relação dos habitantes (moradores e trabalhadores) com o lugar, como espaço de uso e de sobrevivência, envolve uma tensão subjacente que resulta do padrão de distribuição de recursos fundiários e bens urbanos sobre o território e sobre os segmentos sociais; e, por fim, uma terceira dimensão, num contexto democrático, envolve a transição e mudança de uma cultura política autoritária, para um contexto que assegura direitos de participação da cidadania nos projetos urbanos da cidade, dispondo à opinião pública projetos distintos. Esse processo envolve operações de denúncia e busca de justiça, pelos quais os diversos sujeitos começam a definir-se e reconhecer-se, são descritos, redefinidos e localizados no âmbito da estrutura social da cidade.

***

O projeto de recuperação da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador tem seu início no ano de 2000. Ele faz parte do Programa de Reabilitação do Patrimônio Cultural e Urbano, do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPHAN), do Ministério da Cultura (MinC),

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Programa Monumenta3 com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Programa das Nações Unidas para educação e Ciência e Cultura (UNESCO) e com substancial participação do Governo do Estado da Bahia, em termos de contrapartida, bem como a complementação dos recursos para o setor habitacional, através da Caixa Econômica Federal (CEF).

O projeto de recuperação tem como órgão executor a CONDER (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) e a previsão para a 7ª Etapa é de abarcar 130 imóveis, com 316 unidades habitacionais a serem reformadas, sendo que destes, apenas 103 serão destinadas aos moradores antigos da área. Serão acrescidos ainda 60 lojas e 08 monumentos, em 08 quarteirões4.

Os limites da “poligonal”, como mostra a imagem abaixo5

, englobam as ruas São Francisco, Sete de Novembro, Guedes de Brito, 28 de Setembro, J. J. Seabra, Rui Barbosa, Rua do Tesouro, Ladeira da Praça, José Gonçalves, Saldanha da Gama e Monte Alverne. As primeiras intervenções ocorreram no Seminário de São Dâmaso, na Igreja D‟Ajuda, na Capela da Ordem Terceira de São Francisco, nos 02 prédios da Rua do Tesouro, na Casa dos Sete Candeeiros e em dois imóveis na Rua Saldanha da Gama, que abrigam hoje a atual sede do IPAC. Até o momento final desta dissertação (outubro de 2011), apenas 30 imóveis haviam sido entregues aos moradores, num total de 103 unidades habitacionais.

3 O Monumenta é um programa de recuperação do patrimônio tombado pelo IPHAN. Sua atuação no

“Centro Histórico” de Salvador resulta de um contrato de empréstimo firmado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Governo Federal, através do Ministério da Cultura (MinC). A unidade executora do projeto (UEP) está vinculada à CONDER, que é um órgão da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR). Inicialmente, os recursos anunciados para a 7ª Etapa são de R$ 18.341.000,00 (BID/ MinC /Estado) mais R$ 14.500.000,00 (CAIXA/ Gov. do Estado).

4 As informações quanto ao número de edificações a serem inseridas oscilam nos locais em que o

governo da Bahia as publica: sites oficiais, material de divulgação da CONDER e Jornais da cidade.

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Este mapa foi construído pela equipe técnica da CONDER e só foi adquirida pela AMACH – Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico após 6 anos de negociação e embates com o Governo do Estado da Bahia.

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A área de intervenção compõe uma sequência de etapas de revitalizações anteriores no Centro Histórico de Salvador, iniciada em 1992, que culminaram numa mudança das características socioculturais deste território urbano, que será melhor detalhada a partir da reconstituição do processo histórico de construção e Revitalização do Centro Histórico de Salvador.

O advento da 7ª Etapa apresenta, no entanto, algumas singularidades em relação às outras etapas passadas, incluindo uma maior ênfase na habitação, frente às prioridades comerciais das intervenções passadas e, em função desta característica, o processo envolve maior tensão em torno do direito vital à moradia. Essa tensão e a busca da efetivação do direito à moradia por parte das famílias que habitavam a área antes da intervenção têm implicações e dificuldades devido aos critérios de elegibilidade dos moradores segundo os programas de financiamento e estratificação de renda dos beneficiados. Assim, parte dos casarões a serem reconstruídos foi contemplada com o programa habitacional de interesse social, destinado a aqueles que ganham de zero a três salários mínimos, o PHIS – Programa Habitacional de Interesse Social, envolvendo 103 unidades habitacionais. E são justamente os caminhos, embates e diálogos para esta conquista da moradia em confronto com o plano de intervenção público para a área que será o objeto de estudo dessa pesquisa.

Figura 1: Figura 1: Poligonal da 7ª Etapa de Recuperação do Centro Histórico. Fonte: CONDER.

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Em toda parte, indiferença bárbara, dureza egoísta de um lado e miséria indestrutível por outro, em toda parte guerra social, a casa de cada um em Estado de sítio. (ENGELS, 1985, p. 36)

Mesmo considerando os tempos e a conjuntura histórica e social distinta, o uso desta epígrafe traz uma analogia sobre as condições de moradia dos moradores na área aqui pesquisada com as condições históricas do processo de urbanização na Inglaterra em 1845 descritas por Engels (1985) no livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, que faz uma associação entre a constituição do trabalhador para o trabalho e as condições de sua reprodução.

No capítulo “As grandes cidades”, Engels apresenta uma detalhada descrição dos espaços de moradia dos bairros proletários da Inglaterra no séc. XIX. que lembra em muito, tomadas as devidas reservas e guardadas as devidas proporções, os aspectos físicos e sociais da área dos moradores residentes na área da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador. Essa comparação, marcada evidentemente por contextos históricos e regiões totalmente diferentes, mostra a persistência de uma visão moralista e estigmatizada da pobreza e dos bairros populares como “bairros de má reputação”. No caso específico da área da 7ª Etapa em estudo, ela é caracterizada como território “abandonado”, “perigoso”, ou “cracolândia”.

Desde o início das minhas idas a campo, ainda no ano de 2002, percebia o quanto aquela área estava abandonada pelo Poder Público. Descrever as minhas impressões iniciais da área da pesquisa, naquele momento, é de fundamental importância, porque esclarece o cenário encontrado no momento de intervenção da 7ª Etapa. Algumas ruas, principalmente as que delimitavam com o Centro Histórico reformado (Monte Alverne, São Francisco) demonstravam explicitamente as grandes diferenças entre estes dois espaços e, porque não, entre dois territórios vizinhos, arquitetonicamente parecidos, mas social e culturalmente opostos: aquele reformado pelas etapas anteriores de revitalização e já ocupado com as atividades de comércio para o turismo, e a 7ª Etapa, completamente abandonada pelo Poder Público, onde viviam famílias e pessoas em situação de extrema pobreza.

A divisão já começava a ser sentida no próprio ar. A menos de um quarteirão do Centro Histórico reformado nas seis Etapas anteriores, prevalecia o cheiro de esgoto, lixo, mofo que caracterizavam o ambiente apenas da área da 7ª Etapa. O ar, para mim, sempre foi

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um indicador importante de limites da territorialidade daquele espaço. O lixo, produzido em boa parte pelo comércio do Centro Histórico reformado, era depositado a céu aberto na esquina entre a Monte Alverne e a Rua da Oração, e a limpeza pública nunca foi constante naquelas ruas até meados de 2009. Assim, os ratos e pombos também eram personagens sempre presentes na visitas feitas a campo neste momento, seja nas ruas, seja mesmo dentro de algumas residências visitadas. As famosas pedras de revestimento do solo, popularmente conhecidas como pedra “cabeça de negro”, ou paralelepípedo, que compunham as ruas do Centro Histórico, na 7ª Etapa sempre estiveram mal colocadas, com muitas falhas, e às vezes em ruas inteiras, como a Rua da Oração, o barro se fazia o chão. Durante a noite somava-se ainda a esse ambiente insalubre a falta de iluminação pública, tornando o ambiente ainda mais inóspito.

No Pelourinho reformado, palco de eventos onde as classes sociais podem, em tese, se “misturar”, onde as festas ocorrem, onde as lojas, restaurantes e bares de alto padrão de consumo estão implantadas, a realidade parece diferente. O ar não está contaminado pelos odores podres, as ruas estão limpas e calçadas, o policiamento é ostensivo e “educado” para atender ao visitante, as casas encontram-se, em sua grande maioria, bem conservadas. As pessoas transitam neste espaço sem se dar conta da “periferia” deste sítio ou destes “outros” locais degradados, e é comum ver os transeuntes passando por estas áreas, ignorando, muitas vezes, a situação ou se sentindo ameaçados por ela em sua integridade física e moral. A situação aproximava-se da discrição feira por Engels num artigo do Times, de 12 de outubro de 1843 da Inglaterra do séc. XIX.

A riqueza rindo-se do alto dos seus brilhantes salões, rindo-se com uma brutal indiferença, mesmo ao lado das feridas ignoradas da indigência! A alegria, zombando inconscientemente mas cruelmente do sofrimento que geme ali em baixo! (THE TIMES, 12 de outubro de 1843, p. 4, col. 3, apud ENGELS, 1985, p. 44)

A tipologia habitacional também chamava minha atenção nas primeiras visitas. Apesar da área integrar o mesmo patrimônio arquitetônico, o Estado das casas da 7ª Etapa era um sinal iminente das tragédias que geralmente ocorrem nestes sítios abandonados, a exemplo dos desabamentos, incêndios, insalubridade. Os desabamentos eram constantes e, segundo relatos dos moradores, eles reconhecem o momento do desabamento pelo barulho das raspas de tinta e cimento ao chão e o ranger singular das paredes antes da sua caída; quando esta percepção é possível, há tempo para salvar vidas. O chão das casas, geralmente de madeira, estava em situação tão ruim que desafiava os passos dos desacostumados com o ambiente.

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Lembro-me que na casa de uma das mulheres que acabou se constituindo numa das lideranças políticas comunitárias, eu sempre era alertado para não pisar no centro do corredor de entrada pois, pisando neste centro, corria-se sério perigo do chão ruir e a queda levaria direto a um subsolo onde a lama, o lixo e os pedaços de ferro e madeira poderiam causar graves ferimentos. Assim, todos se espremiam pela parede para atravessar até os cômodos internos. A tática utilizada pelos moradores para se manterem nessas casas, e manterem suas casas em pé, mesmo sob risco de desabamento, era a realização de pequenas reformas, como a colocação de uma viga de sustentação em uma parede, limpeza interna, pequenas obras de esgotamento, telhados... que de algum modo acabavam também por preservar estes ditos patrimônios históricos da humanidade, sem as quais o Centro Histórico possivelmente estaria em situação habitacional bem pior.

A insalubridade somada à superlotação das moradias, em alguns casos, fazia com que a casa fosse apenas um lugar de abrigo, e não um local de convivência ou habitabilidade. Esta situação insalubre, com muito mofo, umidade e sujeira era responsável por problemas respiratórios que afetavam boa parte das famílias, principalmente as crianças, os recém nascidos e os idosos. As sublocações e o amplo número de entes familiares em um só espaço faziam parte da forma de alojamento destes casarões e sobrados históricos, sendo comum a falta de espaço e os problemas na utilização dos sanitários por um numero maior do que ele suportaria. Abaixo segue parte do relatório que redigi à época, em 2 de setembro de 2002, quando do acompanhamento da equipe de estudantes de engenharia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) para construção das plantas baixas das casas, a pedido da Associação de Moradores:

[...] Ao entrar no casarão de nº. 35, o forte cheiro de mofo, esgoto, as paredes e telhados rachados, as tábuas de madeira no chão que mexia a cada pisada e os olhares desconfiados dos muitos moradores que habitam o local, pareciam, de certo modo, amedrontar aquela equipe de cinco estudantes de engenharia que se disponibilizaram a construir plantas baixas das casas... Uma das meninas segurou logo no braço do rapaz para não cair nas escadarias de madeira antigas que realmente não demonstravam segurança alguma... a outra garota permaneceu o tempo todo com os dedos tapando o nariz para assim se livrar do cheiro do ambiente. A dona do imóvel ia conversando e andando como se não percebesse o incomodo da equipe e eu também fingia que não percebia e aproveitava para brincar com as crianças que se equilibravam nas madeiras “como equilibristas do circo da vida”. A

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situação fez com que uma das meninas, aquela que segurava o nariz, tomasse logo uma decisão: “esta casa fica pro final, vamos!”(CEAS, 2002, p. 01-02)6

Vejamos como o cenário descrito aproxima-se daquele analisado por Engels em relação às habitações do séc. XIX, na Inglaterra:

Por toda parte os edifícios estão em semi ou completamente em ruínas, alguns são realmente inabitáveis e isto é significativo. Nas casas quase nunca há assoalho ou mesmo ladrilhos e as janelas e as portas estão quase sempre partidas e mal ajustadas. Que sujeira! Por toda parte montes de escombros, de detritos e de imundices; em vez de valetas poças estagnadas... (ENGELS, 1985, p. 63)

O olhar e a percepção deste campo de trabalho destacavam os problemas, como também as diferentes formas de viver. As visitas chamavam a atenção para os modos de vida existentes, levavam a refletir sobre os fatores determinantes daquela situação, evitando cair em julgamentos fáceis, do senso comum, caracterizados por uma versão moralista e preconceituosa sobre esses moradores. Assim, mesmo diante de uma realidade tão dura e desumana, algumas famílias se esforçavam para manter seus vínculos familiares, educar seus filhos, manter um relacionamento conjugal. Durante os mais de cinco anos de vivência na área pude constatar que nela existem pessoas trabalhadoras, famílias inteiras criadas em ambientes insalubres e violentos, mas que conseguiram formar seus filhos em universidades, exército, cursos técnicos, mesmo na adversidade. Por outro lado, ali também se efetiva formas de sociabilidade e convivência comunitária, onde as trocas e pequenos favores são facilmente identificáveis, a exemplo do ato de aceitar gratuitamente uma das crianças da vizinha na aula de reforço escolar, nos empréstimos e troca de material de consumo caseiro, na oferta de um almoço ao vizinho que não tem o que comer no dia. Estes foram também argumentos utilizados pelos moradores nas diversas reuniões realizadas de negociação com os órgãos públicos, buscando contra-argumentar em favor de suas resistências e reivindicações em permanência, considerando o papel que as práticas de entreajuda exercia na convivência construída entre essas famílias durante anos.

Christian Topalov (1996), no seu trabalho “Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX”, ao analisar as cidades inglesas do princípio do séc. XX, permite estabelecer outra analogia entre a sociedade inglesa e as reformas urbanas e primeiras intervenções públicas nas cidades, quando ele interpreta as práticas cotidianas realizadas nos bairros populares como argumentos possíveis

6 Este relato etnográfico compõe o relatório intitulado “Pelourinho: uma simples conversa” de 02 de

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dos moradores para não deixar tais áreas. Para Topalov, inclusive, as habitações precárias nunca seriam vistas por estes moradores como uma razão potencial para seu realojamento em outras regiões da cidade, ainda mais quando se tratava das áreas centrais, onde o deslocamento e a facilidade da mobilidade urbana eram fatores facilitadores para sobrevivência e busca de pequenos trabalhos e serviços. Diante da possível ameaça de retirada dos moradores dessas áreas, o autor relata formas de resistência dos moradores de irem para as chamadas “cidades-jardins” que seriam bairros destinados a “acolher” tal população e que sempre ficavam muito distantes do centro.

Este tipo de resistência e de reivindicação tem sua origem nas práticas cotidianas dos habitantes em relação à moradia. Ficar no bairro é a exigência mais comum, já que, no bairro, encontram os trabalhos, os numerosos recursos da grande cidade e a solidariedade entre conjugues, indispensável para a economia doméstica... Ninguém pensa em exigir as “moradas saudáveis” das longínquas cidades-jardim dos reformadores; a oposição é total ainda que, raramente, tenha obtido resultado quando os especuladores ou as prefeituras se propuseram a demolir bairros insalubres (TOPALOV apud RIBEIRO, 1996, p. 31).

Retornando à área de estudo, o lugar de destino da remoção seria a “Morada da Lagoa”, bairro construído pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER) para relocação dos moradores do Centro Histórico, e que fica a 30 km. de distância do centro da cidade. Desta forma, parece que o destino das classes populares diante do processo de Revitalização do Centro Histórico constitui-se num fenômeno que acompanha a história da urbanização e da industrialização no capitalismo. As análises críticas sobre a história da urbanização européia e a formação da classe trabalhadora, na Inglaterra do séc. XIX e início do séc. XX, pode ser reencontrada na similaridade das condições de vida aqui estudadas, ainda que as condições históricas e os constrangimentos sejam distintos poltica, cultural e economicamente.

***

Daqui em diante faremos uma breve recomposição da “cronologia do conflito” referindo-nos ao desdobramento das ações temporais de luta dos moradores como cidadãos com direitos, ações estas que definem os contextos e principais fatos que compõem cada momento, os atores e espaços de mediação constituídos em cada um deles.

Mesmo iniciando com um resgate histórico das principais intervenções que compuseram o Centro Histórico de Salvador, durante toda sua construção e reformas, o movimento de reforma referente à 7ª Etapa de Revitalização, inicia-se efetivamente no ano de

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2000 e prossegue até os dias atuais (2011). Porém, para efeito desta pesquisa restringimos o trabalho de análise ao período de 2000 (de anúncio da intervenção) até 2007, quando ocorre a entrega das primeiras moradias para as famílias.

Sendo assim, a dissertação busca levantar e sistematizar os diversos fatos e iniciativas que compuseram o conflito ao longo destes sete anos, num esforço de síntese da dinâmica de reconstrução da resistência e onde o morador vai se constituindo um sujeito de direito: os moradores da área e a constituição da luta por moradia.

O projeto de recuperação da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador tem início no ano de 2000, com o anúncio da reforma. A 7ª Etapa foi anunciada no final daquele ano, em dezembro de 2000, quando os moradores foram visitados pelos órgãos competentes pela intervenção e foi-lhes informada a impossibilidade da sua permanência na área e em suas moradias em função do novo uso e interesse público dado ao local. O que marca então este primeiro ano é justamente uma “ruptura” entre a situação vivida e a situação futura (o destino do morador) diante da implantação com o projeto da 7ª Etapa e as primeiras ações do Poder Público (CONDER).

Segundo consta nos documentos públicos pesquisados e publicados nas matérias de jornal com depoimentos da CONDER, a previsão para a 7ª Etapa era de que 130 imóveis com 316 unidades habitacionais seriam reformadas e disponibilizadas para funcionários públicos, acrescidos ainda de 60 lojas e 08 monumentos, em 08 quarteirões7.

De forma a organizar-se e mobilizar-se em defesa da moradia foi criada logo no primeiro momento uma associação em defesa dos moradores, a Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico - AMACH, fundada em julho de 2001 com vistas a mobilizar recursos a favor dos moradores. Essa associação vai se constituindo gradativamente em representante dos interesses dos moradores frente às autoridades oficiais e técnicos responsáveis pelo projeto de “intervenção” (revitalização) da área, desenvolvendo diversas ações, como a mobilização de autoridades (Deputados) e ocupando espaço na mídia através de denúncias que contrapõe aos objetivos da reforma e recuperação do Pelourinho, outros conceitos e problemas inerentes ao projeto, especialmente na defesa do direito dos moradores e contrário às interpretações e juízos morais que desqualificam os moradores que serão afetados pelo projeto, criminalizando-os como “marginais‟.

7 As informações quanto ao número de edificações a serem contempladas oscilam nas diversas fontes em

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Diante da consciência do início das ações oficiais de reforma da área, um grupo de moradores e mais uma advogada voluntária se organizam e iniciam uma mobilização para expor o problema dos moradores afetados pela 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico na mídia, conclamando apoios. Procuraram então o gabinete do deputado Estadual Zilton Rocha (PT- Partido dos Trabalhadores), partido então de oposição ao Governo do Estado da Bahia (regido então pelo extinto PFL, hoje DEM), pois sabiam que este deputado Zilton já havia acompanhado algumas lutas de resistência de moradores do Centro Histórico, no Prédio dos Alfaiates8 e poderia sensibilizá-lo para apoiar a luta comunitária dos residentes nesta área. Foram essas denúncias na mídia que fizeram com que a Equipe Urbana do CEAS, e eu pessoalmente, tomássemos conhecimento do processo de intervenção na área. O que mais caracteriza este momento foi exatamente a ameaça do risco de relocação e o sentimento de injustiça que aflorava desta organização popular diante da desapropriação dos imóveis, e da falta de diálogo e informações do Poder Público (governo do Estado) referentes ao Projeto da 7ª Etapa. Desconhecia-se detalhes do projeto, os valores oferecidos como auxílio-relocação pago às famílias que “aceitavam” pagamento para deixarem os imóveis eram baixos, temia-se a possibilidade de relocação para bairros distantes, como Coutos, que fica a 43km do centro da Cidade e, o mais grave, a impossibilidade de permanência no Centro Histórico.

O Ministério Público do Estado da Bahia, por solicitação da AMACH, consegue através de uma liminar o acesso aos textos e documentos públicos do Projeto da 7ª Etapa. Em um destes documentos, por exemplo, aquele encaminhado para os órgãos financiadores internacionais (Programa Monumenta – Banco Mundial), foram conhecidos os termos dos objetivos especificado para o projeto para as agências financiadoras. Este período foi marcado principalmente pela análise destes documentos, formulação de teses estratégicas e demandas da Associação dos Moradores – AMACH e a formulação de um gradativo sentimento de injustiça por parte dos moradores exatamente pelo conhecimento explícito do conteúdo dos próprios documentos oficiais. Nestes, estava previsto textualmente que o Estado reconhecia os erros nas intervenções passadas, quando a prioridade foi transformar as casas para o comércio em detrimento das moradias e o fato de não ter incluído os moradores locais como principais beneficiados pela intervenção. Mas, na prática, não houve mudança, e os moradores

8

A desapropriação do imóvel, conhecido como “Prédio dos Alfaiates”, teve início com o Decreto n.º 7722, de 20/12/99, do Governo do Estado da Bahia, que o declarou de utilidade pública para fins de incorporação ao Projeto de Reforma e Recuperação do Centro Histórico de Salvador. Houve organização e diversas ações culminando na vitória destes profissionais do direito ao prédio. < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/32540/public/32540-39613-1-PB.pdf>.

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continuavam, na nova etapa, diante apenas de duas opções: a relocação para o Bairro de Coutos ou o valor do auxílio-relocação, já que as casas em que moravam seriam destinadas para a habitação de funcionários públicos através de programa habitacional da Caixa Econômica Federal. Intensificavam-se as ações jurídicas junto ao Ministério Público, que se materializaram na construção da Ação Civil Pública contra a CONDER, e com o PT (Partido dos Trabalhadores), este último responsável pela elaboração de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, gerando assim as primeiras arenas jurídicas de embates, que vão marcar todo conflito nos anos subsequentes.

Em 2002 também se observa uma expansão da ação da AMACH, com a busca de estratégias de trocas e articulação com outras experiências de organização populares diante do Poder Público na cidade de Salvador. Neste ano, foi criada a Articulação de Luta por Moradia, composta por representações dos bairros de Marechal Rondon, Gamboa de Baixo, Alto de Ondina, Sussuarana, São Marcos, Bairro da Paz e Centro Histórico, grupo responsável por diversas denúncias públicas, passeatas, ocupação de órgãos públicos, debates e que acabaram elaborando um Dossiê de Luta por Moradia, documento que denuncia os conflitos vividos pela comunidade de tais bairros.

Este é um momento em que se aprofundam as dificuldades de interlocução entre os técnicos do Estado e os moradores. De um lado, a grande maioria dos moradores tinha dificuldade de entendimento das informações contidas nos documentos públicos, seja pela linguagem escrita, dificuldade de leitura, interesse imediato, descrença numa possível correlação de forças, seja pela ambiguidade entre os objetivos contidos nos textos oficiais e a realidade imperiosa da ameaça de expulsão e remoção. Este fato exigia dos grupos de assessoria, que incluía o CEAS, um papel fundamental de desenvolver atividades e reuniões para socializar e transmitir em linguagem mais accessível os conteúdos dos documentos e mobilizar o grupo na busca de efetivação dos seus direitos. Neste momento faltava ainda aos técnicos do governo a “predisposição” ao diálogo com os moradores, seja em assembléias ou em reuniões mais restritas, sendo o Ministério Público então órgão principal de “estímulo” e reconhecimento do direito ao diálogo entre as partes.

Pesquisadores, nacionais ou estrangeiros, a própria mídia, e os interessados sobre as intervenções nos Centros Históricos começavam a se aproximar da situação e a procurar a AMACH ou o CEAS (que a assessorava) em busca de informações. Foi um ano caracterizado

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pelo aumento significativo das denúncias na mídia, das cartas denúncias enviadas aos diversos órgãos públicos, instituições da sociedade civil e ao público em geral, de manifestações e atos públicos (incluindo aqui a participação da AMACH junto a Articulação de Luta por Moradia na mobilização contra a CONDER) e das constantes audiências junto ao Ministério Público.

Neste ano foi lançado o Dossiê de luta por Moradia, tendo contribuição marcante da AMACH. Também foi um ano de intensa troca de experiências entre os moradores de vários bairros. As principais lideranças foram fortalecidas com o aprendizado político, que as influenciou na construção de uma visão mais ampla sobre os problemas da cidade como todo, baseada nesta troca de informações, onde todos puderam conhecer a realidade e problemas dos bairros envolvidos, com seus principais problemas e demandas frente ao Poder Público. Estes laços, estas trocas, perpassam aspectos da representação política, mas ganham ao mesmo tempo a dimensão de formação da cidadania, onde principalmente as mulheres acabam demonstrando maior aproximação umas com as outras e desenvolvendo um sentimento de identidade como “modestas” protagonistas dos espaços de resistência. A análise do papel da liderança dessas mulheres é de fundamental importância, já que explicita os avanços e obstáculos à participação popular nos projetos de intervenção urbana, onde conflitam os imperativos e constrangimentos da lida cotidiana dessas mulheres e os seus papeis como lideranças comunitárias.

2004 foi marcado pela vitória da Ação Civil Pública que, somada às outras ações e acontecimentos que envolveram a organização comunitária, resultou na ampliação de espaços de discussão e embates importantes entre o Poder Público e os moradores da 7ª Etapa.

A organização da audiência pública, promovida pela Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa da Bahia ("Qual o Centro Histórico que queremos"), seguida da visita dos representantes do Ministério da Cultura do Governo Federal e posterior visita do Relator para o Direito a Moradia da ONU (Miloon Kothari), foram algumas das consequências do processo de denúncias e organização no primeiro ano e demandaram dos moradores que estavam à frente da luta por permanecer no Centro Histórico (Casa 48 no Passos, comunidade da Rocinha e 7° Etapa de Revitalização) uma série de reuniões, organização de um dossiê, exposição dos contra-argumentos em defesa dos seus interesses, sendo este um rico momento de análise da experiência aqui estudada.

Com o resultado da vitória da Ação Civil Pública que, entre as diversas solicitações da AMACH, obrigava o Governo do Estado da Bahia a dialogar com as famílias até que um

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acordo fosse firmado entre as partes (AMACH e Governo), começa, então, uma série de reuniões com a CONDER. Para firmar o Acordo, o Ministério Público constrói um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, assinado em junho de 2005, obrigando o governo do Estado a cumprir uma pauta de questões e demandas da AMACH. Esta pauta foi resultado do documento produzido pelos moradores, junto com o CEAS, na Articulação de Luta por Moradia, o “Dossiê de Luta Por Moradia: Como Salvador se Faz”.

O ano de 2005 foi marcado pela Assinatura do Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) entre o Ministério Público e o Governo do Estado da Bahia onde constam cláusulas com demandas importantes da AMACH. Esse documento regulava um espaço de mediação entre os diversos representantes do governo e dos moradores- o Comitê Gestor9. Este se constituía numa arena de diálogo e mediação de interesses e conflitos, sendo ao mesmo tempo um campo de tensões e negociação entre os órgãos governamentais, a AMACH e sua assessoria (CEAS, UEFS), com caráter deliberativo e paritário. Este ano foi de muitas reuniões, muitas informações a serem analisadas, corrigidas e socializadas com os moradores. A AMACH ganha maior presença de moradores em suas reuniões, ávidos pelas informações vindas das reuniões travadas com o governo no Comitê. O Ministério Público afasta-se, deixando o TAC como instrumento de pressão sobre o Estado da Bahia.

Neste mesmo ano, o PT ganha as eleições estaduais para governador (Jaques Wagner), vindo a assumir o mandato em 2006. É um período em que se registram algumas vitórias na pauta de demandas dos moradores.

A vitória de Jaques Wagner para o Governo do Estado da Bahia trazia em si uma expectativa para os moradores do centro Histórico, pois toda concepção e execução de todos os projetos de revitalização, até a 7ª Etapa, era liderada pelo grupo político majoritário na Bahia, o PFL, liderado pelo Senador Antônio Carlos Magalhães há muitos anos no poder. O governo do PT assume, mas não modifica os termos acordados no TAC em relação ao projeto de intervenção na área, ou seja, apenas 103 famílias teriam o direito de permanência. Não houve mudança quanto aos objetivos do projeto, mas altera-se a natureza do diálogo. O governo do PT ampliou as esferas de diálogo com os moradores, o que não necessariamente

9 O Comitê Gestor foi instituído pelo Ministério Público como espaço de diálogo entre as partes

envolvidas para definição de questões e entraves na negociação. Ele se constitui como espaço consultivo e deliberativo, de caráter paritário, composto por três organizações da sociedade civil (AMACH, CEAS e UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana) e três representantes dos órgãos públicos (CONDER, IPAC, SEDUR).

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significou mudanças quanto aos benefícios almejados e imediatos antes definidos para a maioria das famílias.

Só no ano de 2006, depois de muita pressão dos moradores, foram realizadas oito apresentações públicas do projeto, as primeiras visitas às casas com uma comissão de moradores junto com os representantes dos órgãos públicos de engenharia competentes e as empreiteiras responsáveis, quando as mulheres puderam, finalmente, sentir o como serão suas novas moradas. É um momento de muita curiosidade, felicidade e novos questionamentos. As reuniões de discussão durante esse ano se orientaram mais para os projetos arquitetônicos das casas e das propostas sobre possíveis projetos sociais, com os moradores.

Em 2007 o governo Wagner chama a AMACH para realizar uma festa de entrega das primeiras chaves das casas aos moradores. Era evidente a construção do “palanque político” do governo neste momento, mas a AMACH também identificou nesse espaço uma oportunidade para continuar suas ações, fazendo dele também um campo de luta onde foi elaborado um texto denúncia pela presidente da AMACH, com todas as demandas e limites dessa vitória diante das autoridades presentes. A entrega das chaves reorienta a pauta da luta comunitária até os dias atuais, expressando-se em termos na forma de cobranças e de denúncias dos problemas de infraestrutura que as primeiras casas já apresentavam, do atraso no cronograma de obras, da regularização jurídica da documentação da casa, da definição da área para comércio informal, creche, lazer, o acompanhamento e proposição dos projetos sociais para as famílias envolvidas, o valor a ser pago pela moradia e a finalização de todas as outras residências, já que foram entregues apenas em torno de 18 apartamentos até o momento de elaboração desta pesquisa (2010). É importante lembrar que cada um desses aspectos envolve diversas reuniões com órgãos públicos como a CONDER, Ministério Público, AMACH e diversas formas de luta: abaixo-assinados, mobilização comunitária, denúncias na mídia.

Este estudo limita a análise ao período de anúncio e conhecimento do projeto pelos moradores (2000) até 2007, ano da entrega das primeiras 10 moradias. O esforço será de recompor e caracterizar o fluxo dos acontecimentos, a constituição desses moradores como ator coletivo (sujeito de luta), as mediações dos conflitos e os espaços de diálogos na luta pelo direito à moradia.

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A análise do processo de revitalização pressupõe a constituição histórica do Centro Histórico de Salvador com o objetivo de analisar o espaço como o resultado no tempo da tensão entre o destino público da área, tendo como referências bibliográficas estudos anteriores realizados por Milton Santos (2008), Gey Espinheira (1972), Ivanilde Nobre (2000), Lysiê Reis, documentos do Instituto Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC, 1988). Esta produção bibliográfica existente permite observar como os planos urbanos vão reconfigurando o papel e usos da área central da cidade, obedecendo a constrangimentos políticos e econômicos, e tendo efeitos sobre o destino das populações locais de moradores. Mostra-se no decorrer da análise também como as esferas públicas são resultado processual do confronto das lutas urbanas.

Como esta participação está condicionada de um lado pela capacidade dos cidadãos em mobilizar-se e de outro pelo contexto político do governo em suas diferentes escalas retomaremos a uma noção de cidade, de Milton Santos, Henri Lefebvre, David Harvey, observando as teorias higienistas do séc. XIX, que condicionaram muitas das perspectivas ainda vigentes nos projetos oficiais e assimiladas pelo senso comum inclusive pelos próprios moradores.

O professor Milton Santos, ao introduzir a noção de “urbanização corporativa” ligada à expansão capitalista, chega a afirmar que o próprio Poder Público torna-se “criador privilegiado de escassez” (SANTOS, 1993, p. 95). Ou seja, a ideologia de crescimento e modernização das cidades pode implementar políticas públicas não demandadas pela maioria da população: “estimula a produção de espaços vazios dentro das cidades e empurra a maioria da população para periferia” (SANTOS, 1990, p. 111). Assim, parece ocorrer com as inúmeras famílias expulsas do Centro Histórico nos processos de “revitalização” do patrimônio (1990 – 2001) e as que ainda resistem em permanecer, na Ladeira da Montanha, Ladeira da Preguiça e Gamboa de Baixo e em diversos outros exemplos de luta, resistência e conflitos urbanos na cidade de Salvador.

Santos e Lefebvre se aproximam ao analisarem a formação do tecido urbano como malhas desiguais resultantes da disputa entre processos de interesse hegemônicos da cidade, fundamentados pelos interesses de grupos industriais, pelo capital imobiliário e fundiário, e a própria dinâmica da práxis de construção da cidade via sobrevivência da maioria da população. Essa relação conflitiva sobre os usos do solo urbano e seus fins sociais, prevalecendo projeto entre uma ideologia da cidade ideal, da cidade sonhada, da utopia

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urbana, que sempre acompanhou a concepção de cidade, nem sempre próximo da cidade vivida.

Aqui retorna-se título do seminário “Como Salvador se Faz”, que referenda o dossiê organizado por um grupo de lideranças de oito comunidades populares de Salvador, todas ameaçadas de despejo forçado em função de intervenções do Poder Público no ano de 2003 (Articulação de Luta por Moradia, 2003) em processos que suscitam a reflexão do termo de gentrificação (gentrification). Neste documento a “dor” se torna práxis das lutas destes oito bairros e, em uma das reuniões deste grupo de lideranças, surgiu a idéia democratizá-la como a condição possível, em Salvador:

“Se não há democratização das políticas públicas, vamos democratizar nossas dores; a dor da Gamboa de Baixo é a dor do Centro Histórico, que é a dor de Marechal Rondon...” (Pronunciamento de uma liderança feminina presente).

Analisar um projeto de intervenção urbana significa entendê-lo como um episódio público que interfere no cotidiano dos cidadãos e provoca uma ruptura na dinâmica da vida desses moradores residentes da área da intervenção. Em reação a esta intervenção e aos efeitos que ela traz sobre os moradores, estes buscam reagir aparecendo como cidadãos de uma luta em defesa de seus direitos por moradia. Como este processo se forma?

Para entender esse processo tomamos por referência analítica a noção de “esfera pública” de Hannah Arendt (1989), que destaca a importância estratégica da avaliação e reavaliação de um acontecimento e das ações consequentes, processo pelo qual vão aparecendo as diversas concepções entre os atores, seus julgamento de valores sobre o outro, que orientam práticas e percepções distintas sobre os sentidos do espaço e o lugar social dos moradores. Aqui retemos a distinção feita por Arendt entre o que ela denominava de “mundo público” ou “esfera pública”. É neste espaço sempre em construção e que emerge efetivamente das formas dialógicas entre os atores envolvidos num embate os atores “compartilham” suas opiniões, pela necessidade de impor uma posição e definir sua pauta e demandas e assim acabam se mostrando, se revelando.

O presente estudo irá analisar este “espaço que ilumina” e revela “onde eu estou”, “com quem estou” e “com quem dialogo” na dinâmica de um processo intersubjetivo. O anúncio da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador seria então o objeto desta reflexão, suscitando poderes entre atores envolvidos que se apresentam, avaliam e

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definem constantemente “quem eu sou”, o que quero, o que eles querem, o que é justo, desenvolvendo ações orientadas para a consecução de suas demandas.

Outro aspecto importante diz respeito à pluralidade e singularidades; igualdades e diferenças entre os atores envolvidos no processo, no espaço público criado, analisado por Arendt. No caso estudado, o processo de avaliação pelos moradores sobre a intervenção envolve ao mesmo tempo um mecanismo de construção de sua igualdade como cidadãos moradores da cidade que especifica sua singularidade quanto à condição histórica que o levou à ocupação dessa área de patrimônio, no centro da cidade. Hannah considera que toda vida humana está imbricada na vida em conjunto, e a ação está dentro da vida. Este processo nos mostra os seres em reconhecimento onde diferenças e aproximações podem ser percebidas nos seus enunciados discursivos (ARENDT: 1983). A dinâmica aqui estudado nos leva diretamente à análise das condições e limites da participação social, das ações e da organização para se fazer presente e ser ouvido pela sociedade mais ampla, diante de uma situação de disputa e embates entre o Governo do Estado da Bahia e a organização popular constituída diante do próprio Projeto de intervenção da 7ª Etapa de Revitalização.

Este processo revela uma correlação de forças distintas, os limites encontrados à participação e os seus obstáculos à efetivação deste processo. Neste sentido, a realidade de vida nas esferas privadas dos moradores e suas estratégias se confrontam com problemas para participação nas esferas públicas constituídas. Menos que os problemas mais formais sobre a natureza da representação nesses processos participativos, um dos problemas enfrentados estão nas diferenciações entre atores, delimitadas pela dimensão da temporalidade dos processos, do fator "tempo", seja o tempo popular ou aquele pressionado pela racionalidade do planejamento e de execução das políticas públicas, que aparecem como um dos obstáculos para a efetivação de uma participação social mais democrática.

Neste sentido, analisar a participação dos cidadãos dos bairros populares nos projetos públicos de intervenção implica apreender também as formas e os tempos de processamento das organizações de base existentes. A participação requer tempo de maturação, tanto de acesso às informações ditas públicas, muitas vezes só conseguidas com ações no Ministério Público, como o tempo demandado pelo imperativo da própria luta pela sobrevivência e construção da mobilização comunitária, que disputam com os ritmos impostos pelo tempo tecnocrata e político, que impõem e pressionam por resultados rápidos e imediatos.

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