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CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

4.3. Os amigos da AMACH e seus papeis diante da esfera pública de

A busca pela participação dos moradores na defesa dos seus direitos, diante da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, contou com a colaboração de instituições e profissionais que se envolveram na defesa e no apoio às reivindicações dos atingidos. Este grupo esteve mais presente nos anos de 2001 e 2002 e, com o passar dos anos, permaneceram apenas três instituições mais diretamente envolvidas: o Ministério Público, acompanhando o desenrolar das negociações acordadas entre as partes, o CEAS e a UEFS. Cabe esclarecer que algumas destas instituições, quando do início da intervenção (UNEGRO, PT, Sindsaúde, SindVigilante), eram da oposição partidária ao grupo político que estava governando o Estado da Bahia (PFL), responsável, consequentemente, pelo planejamento e execução do projeto de revitalização aqui em análise.

Não se pretende aqui detalhar a história e a prática de todas essas instituições e profissionais para analisar a participação popular na 7ª Etapa. Também não vamos refletir sobre a formação, a importância, e as influências ou conjuntura política de atuação das ONGs, dos militantes, voluntários, da pesquisa e extensão universitária, grupos de apoio, que vêm acompanhando as lutas populares, os movimentos sociais, entidades de bairros em Salvador, Bahia ou Brasil. O interesse e foco em analisar a presença desses grupos como amigos da AMACH têm o objetivo de recompor as ações e influências destes atores nos caminhos da participação e na atuação nas esferas públicas de diálogo criadas a partir de uma intervenção urbanística, o projeto de Revitalização da 7ª Etapa do Pelourinho. Definir esses limites analíticos se justifica, principalmente, em função do papel exercido por estes atores na representação dos interesses e do nível da participação dos moradores. Ao mesmo tempo compreender o papel deste atores é de fundamental importância, pois eles tiveram uma responsabilidade decisiva em compor a esfera pública de diálogo com o Estado, a formação política da AMACH e nas diferentes estratégias e ações, como a denúncia, os nexos de articulação entre a condição de moradia popular com a situação de outros bairros de Salvador,

a dinâmica e fortalecimento das demandas nas assembléias públicas, etc. Além destes fatores, a próprio interesse ou aproximação deste grupo, já revela o campo de diálogo e embate constituído.

No âmbito do Direito, inicialmente, destaca-se o papel de um grupo de advogadas, foram quatro ao todo, que prestaram assessoramento aos moradores, quando do anúncio da intervenção da 7ª Etapa, em 2001. Uma dessas advogadas tinha grande aproximação com um dos moradores atingidos e, de maneira voluntária, articulou um grupo de moradores para pedir apoio ao gabinete do deputado estadual Zilton Rocha, já que este tivera uma experiência exitosa no caso de um casarão na rua da Misericórdia ocupado por alfaiates.

Por outro lado a aproximação da escola de capoeira de Mestre Pastinha, representada por um grupo de três psicólogas em apoio à demanda dos moradores também foi importante. Ao se apresentarem na sua primeira reunião, na AMACH, o grupo de psicólogas disse ter tido conhecimento da intervenção da 7ª Etapa, pois perceberam que as crianças frequentadoras desta escola, na faixa etária dos 7 aos 10 anos de idade, estavam com dificuldade de concentração e, muitas delas, com reações violentas com os colegas. Essas psicólogas então passaram a explorar junto às famílias dessas crianças o porquê de algumas delas apresentarem este tipo de reação em tão pouco tempo, apesar dessas reações aparecerem apenas para um número específico destas. Elas concluíram que o processo de relocação e o estresse familiar resultante da possibilidade de perder a casa acabaram se refletindo nos filhos, nas crianças. Assim essas psicólogas se sentiram com vontade de tentar contribuir com aquele grupo de pessoas, algumas delas mães e pais das crianças da escola de Mestre Pastinha e se propuseram a construir um vídeo documentário sobre a 7ª Etapa, para assim, tentar disponibilizar um possível instrumento de denúncia para a AMACH. Foi construído o vídeo Pelôres19, que trazia depoimentos das famílias atingidas, entrevistas com as pessoas relocadas para Fazenda Coutos, bairro de destino da maioria das famílias que aceitaram a relocação, onde elas puderam apresentar ao público a realidade do local: sem transporte público, com casas muito pequenas, violência, ausência de qualquer tipo de possibilidade de um trabalho pontual, um biscate, uma renda. Este vídeo teve uma função importante para mobilizar e sensibilizar a sociedade sobre a questão dos moradores da 7ª Etapa e foi exibido no Liceu de Artes e Ofícios, em escolas públicas, no Teatro XVIII (Pelourinho) para um público de estudantes de

19 PELORES. Direção, fotografia e produção de Marília Hughes Guerreiro e Aline Frey. Salvador: [s.n.],

escolas privadas, em debates no CEAS, nas universidades, constituindo-se um instrumento estratégico de apoio à AMACH.

Dois outros apoios, estes agora mais relacionados à infraestrutura para as reuniões da AMACH, foi recebido de dois sindicatos. O Sindsaúde, locado na rua da Independência, o ponto de encontro das reuniões semanais da AMACH entre os anos de 2001 e 2002; e o SindVigilante, na rua do Gravatá, que serviu de espaço para as reuniões em 2002 e 2003. A disponibilidade desses espaços físicos foram importante, pois pensar naquele momento em reuniões dentro da “poligonal da 7ª Etapa” significava usar as habitações ou bares e isso aumentaria a rotatividade das presenças na reunião, a dispersão e a possibilidade de a associação assumir compromissos com o proprietário do imóvel, seja ele de moradia ou comércio. Além destes fatores, num ambiente de extrema tensão na área, a todo o momento era colocada a possibilidade de se ter nessas reuniões a presença de informantes do governo, que poderiam levar informações da AMACH para o Poder Público. Por diversas vezes foram então justificadas as reuniões nestes espaços por eles serem mais afastados da área e, assim, diminuir a hipótese de fazer ouvir assuntos ainda internos à AMACH.

Outras entidades se fizeram presentes, no início de formação da associação - AMACH, e contribuíram para a discussão sobre mobilização comunitária, o acompanhamento em algumas audiências públicas com representantes do governo do Estado, animando o grupo ou criando estratégias de denúncias na mídia, defensoria pública e Ministério Público. Dentre estes, não caracterizando uma ação de apoio mais sistemático, encontra-se a Ação Social Arquidiocesana da Arquidiocese de Salvador (ASA) e a Unegro. Ainda dentro deste campo de solidariedades mais amplas encontra-se o Projeto Força Feminina- PFF-, vinculado a obra das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, projeto que acompanhava as mulheres em situação de prostituição dos moradores do local. Por ter ampla ação junto a muitas das moradoras o PFF acabava por ser uma mediadora importante no diálogo entre o grupo de amigos e moradores, especificando em detalhes as questões habitacionais, o número de pessoas que residiam em determinadas casas, as questão de saúde de algumas mulheres e moradores como um todo, apoiando também na mobilização dos moradores, as visitas para explicar às famílias as principais implicações referentes ao projeto e os direitos dos moradores, ajudando também na construção de denúncias na mídia e espaço em rádios da Igreja católica (Rádio Excelsior).

Dentro do grupo de apoio ao grupo de amigos, ganha destaque porém o papel desempenhado pelas advogadas, sendo duas voluntárias e duas vinculadas ao mandato do

deputado estadual Zilton Rocha (PT). Este próprio também se constituiu amigo destacado, o Ministério Público do Estado da Bahia, o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social e a UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) representada pela professora Lysiê Reis. Estas duas últimas representações terão papel desempenhado durante todo processo de acompanhamento e participação nas esferas públicas criadas com a 7ª Etapa, cuja descrição do seu papel será mais detalhada na sequência deste estudo.

O papel das advogadas ganha destaque pois a mobilização da justiça como ator mediador decisivo nessa luta e os resultados daí decorrentes, foram de suma importância para dar legitimidade à ampliação da participação popular no projeto da 7ª Etapa, como atores de direitos legitimamente reconhecidos. Esse trabalho jurídico se caracteriza por dois níveis de atuação. Uma das advogadas, por ser uma antiga frequentadora da área, com amizade próxima aos moradores, trazia mais um aporte de assistência na mobilização e organização dos moradores, do que uma assessoria jurídica propriamente dita, tendo articulado a visita dos moradores ao gabinete de Zilton Rocha. A segunda advogada, integrava à época a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador – a CJP – e, mesmo que esta instituição não se constituísse em grupo de apoio ou assessoria direta à AMACH, sua aproximação geográfica com a “poligonal da 7ª Etapa” e o vínculo de trabalho e amizade desta advogada com o deputado Zilton Rocha e sua equipe fizeram com ela se aproximasse desta mobilização dos moradores.

O Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) uma organização criada desde 1967, pela Companhia de Jesus, e que busca contribuir para a superação da miséria e da exclusão social iniciou sua aproximação com os moradores em 2002, tendo sua atenção chamada pelas notícias vinculadas na imprensa. Dentro deste Centro analisava-se a importância em acompanhar aqueles moradores por acreditar que, uma possível conquista de direito naquela localidade da cidade, poderia influenciar outros embates por moradia no centro de Salvador. O CEAS por ter acompanhado a AMACH de 2002 a 2008, conseguiu estar presente e acompanhar diversos momentos de participação e construção das esferas de negociação e diálogo, o que contribuiu muito para o conhecimento das informações aqui analisadas, diretamente pela minha condição de assessor à época dessa organização. O trabalho de assessoria realizado pelo CEAS consistiu inicialmente em acompanhar as reuniões da AMACH, construir o diálogo com o Ministério Público, mobilizar e visitar os moradores, incentivar a participação, interpretar e fazer os moradores entenderem os termos e terminologias do projeto, construir denúncias e ações diretas, articular o grupo com as outras

experiências assessoradas pela Equipe Urbana desta instituição. Como resultado dessa ação de aproximação e ampliação da luta através do trabalho CEAS cabe citar a Articulação de Luta por Moradia (ALM) como grupo de apoio à AMACH.

Desta articulação participavam mais associações de oito bairros populares que estavam sofrendo intervenções urbanísticas próximas ao que estava ocorrendo com a área da 7ª Etapa de Revitalização do Pelourinho. Com o diferencial, de que essas oito outras experiências e bairros não se constituírem local de patrimônio histórico, todas tinham a CONDER como agente da intervenção, passavam por problemas de relocação e baixos valores do auxílio- relocação, a falta de diálogo e de informações sobre os projetos de intervenção. Com a participação na ALM, observou-se que um grupo que constituía a AMACH ampliou sua visão sobre os problemas da cidade e das moradias populares, construíram manifestações e ações em conjunto, se solidarizaram com as vivências de cada local, participaram de ações específicas em outros bairros, criaram laços e relações e, por fim, construíram, em parceria com o CEAS, um dossiê com a história desses bairros, tendo como foco a análise das intervenções no momento, no documento “ Como Salvador se Faz: Dossiê da Lutas das Comunidades Populares de Salvador-Bahia pelo Direito de Moradia” (2003).

Com o passar dos anos, entre 2003 a 2008, este grupo de apoio foi gradativamente se afastando, permanecendo o CEAS e a UEFS, na pessoa da professora Lysiê Reis (a próxima a ser apresentada como membro de apoio aos moradores). Foi um período de ampliação do poder e mobilização dos moradores para fortalecer e legitimar a AMACH. Neste anos, o CEAS conseguiu acompanhar e articular diversas ações com a AMACH , destacando-se entre elas a construção da visita do relator da ONU pelo direito à habitação. A entidade acompanhou diversas reuniões da AMACH com o Governo do Estado e Governo Federal, assim como as audiências no Ministério Público. Também ai, com os encaminhamentos da Ação Civil Pública, o CEAS passou a assessorar diretamente a AMACH no Comitê Gestor, esfera pública de discussão dos pontos de impasse do projeto da 7ª Etapa.

A Universidade Estadual de Feira de Santana, representada pela professora Lysiê Reis, teve contato mais direto com a AMACH a partir da sua presença em um seminário ocorrido no CEAS, quando a presidente da AMACH estava compondo a mesa de debate. O ano também era 2002 e, a partir daí, Reis, arquiteta e urbanista, mestre em conservação e restauro e doutora em história trouxe suas contribuições teóricas para a construção do conhecimento dos moradores quanto aos direitos urbanísticos e o valor patrimonial do local. Seu papel foi de

fundamental importância não só para a mobilização e formação política do grupo, como também para aproximar este das discussões de caráter extremamente técnicas, quando referentes à arquitetura, obras e engenharia. Ao mesmo tempo, sua vivência em outros caminhos de participação popular nas políticas de intervenção, fez com que ela desempenhasse também papel importante na organização e sensibilização da AMACH.

Os desafios e as ambiguidades da presença desses “amigos” no campo da participação também eram latentes. O risco em se construir uma associação ou um grupo de reivindicação que, mais do que estar representado por seus próprios moradores, estaria sendo representado por “pessoas de fora”, estava presente. Os amigos, por alguns momentos, principalmente quando do início da intervenção, eram a maioria em número nas reuniões da AMACH. Por todo momento era necessário distinguir, por mais evidente que fossem as diferenças, os moradores do grupo dos amigos, os parceiros em seu apoio. Este grupo não estaria lá, se as casas soterrassem a família e seria muito difícil estar justamente no momento em que a polícia chegasse para “negociar” uma relocação. Eles não passavam necessidades básicas, não sofriam as mesmas pressões familiares. Para os moradores existia uma relação de confiabilidade, talvez por conhecer o histórico destas instituições e pessoas, quanto de desconfiança por tentarem por outro lado entender o que eles ganhavam com esta atuação.

Os que confiavam, o faziam diante da experiência vivida no dia a dia. Confiavam quando percebiam “o poder” ou os conhecimentos que podiam ser “apropriados” por eles, pelo movimento por moradia, pela AMACH. Confiavam por ter nestas pessoas e instituições um apoio “possível”, uma alternativa do que estava sendo posto para eles. Mas também com o risco de, como afirma Pedro Demo: “desmobilizar a comunidade no sentido de que lhe basta confiar no tutor” (DEMO, 1988, p. 48). A desconfiança vinha, por outro lado, por tentar entender qual seria o “real interesse destas pessoas aqui”. Desconfiança por entender que não haveria possibilidade de ganho particular e de este fato mobilizar outros contra este desejo subjetivo, seja o governo, a AMACH os grupos de apoio. Desconfiança, ainda, pela relação de classe social, de raça, de gênero.

A esfera pública criada tinha então características de atores do meio popular, acompanhados de um grupo de pessoas e instituições que refletiam e criavam estratégias de ação. Do outro lado, estavam os representantes do Governo do Estado da Bahia com sua política pública e seus técnicos para negociação e diálogo. A postura buscada para a AMACH era de tornar-se protagonista, mas os riscos das falas serem feitas pelo grupo de amigos ou da

própria formação de um grupo de atores restrito, em detrimento de uma necessária participação de todos envolvidos, tornara-se presente. O governo, conforme observado nos diálogos futuros, aproveitou esta ambiguidade para reforçar e legitimar a AMACH, em detrimento da construção de um diálogo mais plural com todos os moradores. A AMACH passa a ser o canal privilegiado de diálogo, sendo esta uma vitória do grupo de moradores, ao mesmo tempo em que acarretava atenção para a natureza e alcances das esferas mais amplas de diálogo.

4.4 AS ESTRATÉGIAS PARA CONSTRUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NO