• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

4.4. As estratégias para construção da participação no projeto da 7ª Etapa

Antes da análise mais específica dos diálogos e embates nas esferas públicas constituídas com este projeto de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, na sua 7ª Etapa, é necessário, para o entendimento aqui proposto, apresentar as estratégias usadas pelos moradores já mobilizados em conjunto com as entidades e profissionais “parceiros”, para o fortalecimento, denuncia e pressão para constituição de um espaço, uma esfera, mais democrática dentro da construção e execução da intervenção urbanística aqui estudada. Neste sentido podemos dimensionar esta estratégia em dois caminhos, um de cunho mais jurídico, com a construção de ações junto ao Ministério Público e outro na forma de organização de um grupo representativo dos moradores que constituíram denuncias na mídia, ações diretas, mobilização de rua, atos, articulações com outras experiências, construção de documentos denuncias, constituição de uma movimentação política por participação, do que os moradores chamavam “do nosso movimento por moradia”.

Conforme analisado anteriormente, existiam dificuldades percebidas em manter uma movimentação e presença mais constante e, ainda, ampliar a possibilidade de construção de um movimento e ações para além das questões imediatas da realidade da vida das pessoas envolvidas. Como se organizar, ter forças para “lutar” e romper toda uma herança histórica e estrutural que levou a que essas pessoas, as bases, o povo, os militantes... vivenciassem um nível de carência e miséria elevados, caracterizada pela fome, desemprego, falta de teto, terra, drogas, saúde, educação...? Dentro deste contexto, as presenças de pessoas, instituições ou organizações externas foram fundamentais para a construção de uma possibilidade de fazer os moradores serem ouvidos nas esferas públicas. Desta maneira, destaca-se a mobilização inicial de uma das advogadas voluntárias, que no início mobilizou e organizou o grupo de moradores, ajudando a constituir a AMACH e, em conjunto com a associação, produziram

uma série de denuncias na mídia, começando um processo de articulação com entidades representativas, políticos, ONGs, profissionais e sindicatos.

“É inadmissível que se faça a recuperação da história sem que haja o compromisso efetivo com o patrimônio humanístico”, disse ontem o bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador, Dom Gílio Felício, ao receber na Cúria uma comissão de moradores do Centro Histórico que foram lhe expor o drama que estão vivendo, e pedir interferência da Igreja no processo (ROCHA, 2001).

Este grupo organizado na AMACH passa a utilizar a imprensa como meio principal para emanar sua voz, como relatado no capítulo anterior. Esta estratégia foi de fundamental importância tanto pela disseminação do conhecimento e informação sobre a intervenção na 7ª Etapa e a formulação dos sentimentos de injustiça sobre os moradores atingidos, como para a sociedade. Valladares, ao analisar o poder da mídia na esfera pública de acordo com Hannah Arendt observa como ali se efetivam a troca de idéias, que permitiam também ao conjunto da sociedade participar (VALLADARES, 2009: 43). Durante todo processo de acompanhamento das ações de implantação do projeto da 7ª Etapa, dentro do recorte temporal analisado, o uso da imprensa como estratégia da AMACH em influenciar nos resultados do projeto foi observado e o grupo parecia acreditar que as informações ou denuncias poderiam ali exercer influência sobre a sociedade. Mas não só a mídia impressa foi utilizada, foram também encaminhados diversos documentos e cartas denúncias por e-mail para as entidades da sociedade civil, Defensoria Pública do Estado da Bahia, Ministério Público do Estado da Bahia, ampliando o raio de ação dentro deste campo da denuncia e eco da voz dos moradores.

Esfera Pública é o espaço de debate entre população e as outras esferas da sociedade como instituições públicas e privadas. Ela deixa de ser livre a partir do século XVIII e passa a ter como mediador a mídia inicialmente, jornais e rádio. Com o advento da Internet, a relação entre a mídia e a política se estreita. A mídia é um dos meios que o cenário da representação política usa para ganhar visibilidade (MARCONDES, 1994: 17 apud VALLADARES, 2009: 42)

Paralelo e/ou somando-se a esta iniciativa de organização dos moradores, denúncia na mídia e com o aumento do número dos “amigos da AMACH”, iniciam-se uma série de atos públicos por parte dos moradores organizados, para continuar a estratégia de denuncia e publicização dos fatos ocorridos com a 7ª Etapa. Com a contribuição do gabinete de Zilton Rocha foram construídas peças com arte gráfica e charges que acabaram por criar uma “marca institucional” da luta dos moradores. Assim foram feitas faixas, banners, camisas, folhetos, de ampla utilização nos atos públicos com estas marcas estampadas. Entre a organização de “feijoada da solidariedade”, participação em passeatas, em debates públicos, destaca-se o

“Dia de Resistência” ocorrido em dezembro de 2003, onde a AMACH, juntamente com a Associação dos Moradores da Rocinha e Associação dos Moradores da Rua do Passo, duas localidades do Centro Histórico que também passavam por problemas de negociação de suas moradias com o Governo do Estado da Bahia, articulados, promoveram um encontro no Viaduto da Sé, para denunciar para toda sociedade os atos cometidos pelo Governo do Estado da Bahia. A ocasião foi importante, principalmente para articulação pontual destes grupos organizados.

A produção dos folhetos, documentos públicos, textos, etc. foi amplamente usada como estratégia de mobilização e “o grupo de amigos” aqui tinha o papel principal de ouvir as questões trazidas pelos moradores nas reuniões, selecionar junto com eles as principais situações que deveriam ser expostas no momento e produzir conteúdos de impacto para os leitores que recebiam tais materiais nas ruas, das mãos dos moradores como, principalmente, fazer mobilizar outros moradores que ainda não participavam da AMACH. Entre os diversos folhetos produzidos, um deles se destacava não só pelo conteúdo, mas pelo resultado que ele alcançou, tendo sido distribuído por todo Centro Histórico em um mês de campanha contra as ações do Governo do Estado da Bahia. Após a AMACH ter conhecido os reais objetivos do projeto de reforma da 7ª Etapa, algumas pessoas passavam a se aproximar desta associação e após a leitura do conteúdo desses instrumentos as pessoas chegavam à reunião com um deles em mãos, querendo saber dos seus direitos ou juntar-se ao grupo para pressionar o Governo do Estado.

A verdade por trás das Tintas...

Pressão para que os moradores abandonem a área inclusive com ameaça de despejo...

O que fazer?

Contra essa violência e pela moradia, estamos nos organizando. Esta situação envolve todos os moradores e trabalhadores do Centro Histórico. Una-se ao movimento dos Moradores e Amigos do Centro Histórico. As reuniões acontecem no Sind (Rua da Independência, Nazaré) às quartas feiras a partir das 19h.

Cuidado, o próximo rodo pode passar por sua casa; sua arma é a mobilização!! (AMACH, [entre set. e out.] 2002)

Para manter os moradores mobilizados ou, pelo menos, informados, era necessária uma regularidade das reuniões da AMACH, semanalmente, mesmo com presença restrita de

pessoas20. Para tanto foi utilizado, pelo um grupo representativo da AMACH e o grupo dos amigos, o recurso alternativo de visitas nas casas para apresentar para as famílias que permaneceram nas casas o que estava sendo colocado dentro do projeto da 7ª Etapa, quais as estratégias pensadas para o embate com o governo e as possibilidades de ganhos e perdas. Um trabalho constante, que teve uma ampla ação entre os anos de 2002 e 2003, onde, principalmente no CEAS foi criada a meta de trazer para dentro da AMACH, pelo menos, um representante de cada rua da “poligonal da 7ª Etapa”, para constituir o grupo constante da AMACH, diretoria ou não. Também neste momento foram intensificados os encontros de formação, com temas de relevância para os moradores, como o Estatuto da Cidade, a educação patrimonial (coordenado pela professora de arquitetura da UEFS) ou a história de outras experiências de lutas populares em Salvador. Ali se constatou os limites da participação popular, determinados pela desconfiança, falta de tempo, descrença nas pessoas envolvidas na AMACH ou grupo de amigos, “falta de vontade”, apatia, comodismo, falta de alteridade, dificuldade em entender o que o grupo tentava passar de informação para elas.

A possibilidade de fazer conhecer outras experiências de lutas e embates nas esferas de negociação criadas junto ao Governo do Estado da Bahia se relacionava com a realidade de moradores de bairros populares que experimentavam as situações de constrangimentos devido às intervenções urbanísticas, foi muito importante para o grupo da AMACH e para os impactos da intervenção da 7ª Etapa na sociedade. Como estratégia de potencializar a participação dos moradores na participação do projeto da 7ª Etapa foram criadas duas estratégias no sentido de fortalecer e ampliar a compreensão e a natureza das reivindicações: a Articulação de Luta por Moradia (ALM) e o encontro da AMACH com os moradores da Rocinha e os moradores da rua do Passo (ambas no Centro Histórico). O CEAS teve influência direta na constituição da primeira articulação, e das nove comunidades que compunham tal articulação, cinco estavam sendo assessoradas pelo CEAS, naquele momento. O que mais foi ressaltado nestes encontros ou articulações foi, conforme formulação de uma moradora de Marechal Rondon, foi uma determinada “Democratização das dores”. Esta moradora quando percebeu que as histórias eram muito próximas umas das outras afirmou que se o governo não democratiza os projetos, eles iram democratizar suas dores ao ver as casas abaixo. Conforme ela repetia em cada fala pública: “A dor de Marechal Rondon é a dor da Gamboa, que é a dor do Centro Histórico...”.

20 Durante o ano de 2003, a maioria das reuniões da AMACH ocorriam em média com quatro moradoras

De ambas as articulações surgiram dois dossiês que tiveram divulgação e publicização, ampliando o conhecimento em várias escalas (mídia, academia, órgãos internacionais de direitos humanos, como a ONU). Quando da entrega de parte do “Dossiê de Luta por Moradia” produzido pela Articulação de Luta por Moradia (2003), restrito a intervenção da 7ª Etapa, a AMACH assim explicou aos órgãos responsáveis os seus objetivos em fazer chegar às suas mãos, tal documento:

A meta principal é elucidar para os órgãos financiadores e apoiadores de tal projeto sua responsabilidade (ou irresponsabilidade) na forma com que o Governo do Estado da Bahia, na gestão do então governador Paulo Souto, e tendo como entidade executora a CONDER (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia) vem desenvolvendo esta Etapa de Revitalização, pontuando, principalmente, as disparidades entre o projeto inscrito e o projeto na prática (ARTICULAÇÃO DE LUTA POR MORADIA, 2003: 01)

Por último, e com um grau de importância também fundamental, esteve a mediação e o recurso à justiça a partir da colaboração das advogadas voluntárias, vinculadas ao mandado do Zilton Rocha, junto ao Ministério Público do Estado da Bahia. Essas advogadas encaminharam duas estratégias jurídicas. A primeira foi uma contestação da autorização concedida pela Assembléia Legislativa ao Poder Executivo para que este doasse a CONDER os imóveis da 7ª Etapa, para posterior alienação à iniciativa privada. Desta forma o PT constituiu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), com pedido de medida cautelar perante o Tribunal de Justiça da Bahia, em face da Lei Estadual nº 8.218, de 08 de abril de 2000 e Decreto nº 7.881, de 06 de dezembro de 2000, por inconstitucionalidade na desapropriação indevida de imóveis onde residiam famílias para construção de um “espaço urbano” (Partido dos Trabalhadores, ADIN, p. 02). A construção desta ADIN estava estruturada com base em duas argumentações: a) que a retirada dos moradores ia de encontro aos direitos humanos adquiridos na Constituição do Estado da Bahia, e b) que era dever do Estado preservar o patrimônio material (as casas e sobrados históricos), assim também como o patrimônio imaterial, dos valores culturais das pessoas, das duas tradições e vivências, os “modos de criar”, as “formas de expressão” próprias ao local tombado (Art. 216 da Constituição Federal).

A segunda estratégia no campo jurídico consistiu num diálogo com o Ministério Público, na 2ª Promotoria de Justiça e Cidadania. Para esta estratégia foram realizadas uma série de encontros entre o promotor responsável, o grupo de amigos e os moradores, sendo também encaminhado para ele, um conjunto de documentação analítica e jurídica que

pudessem elucidar os fatos para a Promotoria. O Ministério Público passa então a ser forte aliado da AMACH e, em consonância com as outras instituições e moradores que se faziam presentes inicia uma série de exigências e questionamentos ao Governo do Estado da Bahia, representado na situação pela CONDER. Foi só através das ações do Ministério Público que o grupo da AMACH teve acesso aos escritos dos projetos da 7ª Etapa. Foi justamente o conteúdo contraditório deste projeto que fez com o Ministério Público ajuizasse Ação Civil Pública, com pedido de ordem de liminar contra o Governo do Estado da Bahia. Ambas as estratégias adotadas no campo da justiça geraram fortaleceram a esfera pública de embate cujas ações serão apresentadas abaixo. Ressalta-se aqui que essas advogadas voluntárias que atuaram no início também acabaram por ter papel importante na mobilização dos moradores, nas denuncia da situação na mídia, em ações diretas, manifestações públicas, etc., expressada também na matéria “Pobres fora do pelô”:

Além da Ação Civil Pública ajuizada pelo MP, uma Ação de Inconstitucionalidade (ADIN) ajuizada pelo PT, também questiona o decreto estadual de desapropriação da 7ª Etapa. Foi arguido na ação que os moradores compunham “patrimônio imaterial”, mas o Tribunal Pleno, em novembro de 2003 e presidida pelo desembargador Eduardo Jorge Magalhães, indeferiu a ADIN (CASTRO, 2004, p. 03)

4.5 A CONSTRUÇÃO DAS ESFERAS PÚBLICAS: A MEDIAÇÃO DO