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CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

4.1. A vida é uma luta: os desafios colocados para a participação popular, no

4.1.1. A vida, a sobrevivência e o participar

As relações sociais são permeadas historicamente por relações políticas e de poder:, poder de sobrevivência física e material, poder de reflexão intelectual, poder técnico, poder participativo nas instâncias públicas, estando estas comumente concentradas nas mãos de uma minoria. Aqui, a participação social, seja ela uma participação política, econômica, de trabalho e renda, saúde, educação, do pensar as cidades, também acaba por restringir-se a poucos. As diferentes formas de exclusão, pobreza e miséria dos moradores os coloca impotentes, em que pese sua capacidade criadora. Esses obstáculos apresentam-se de maneiras diversas, e resultam em confrontos que coloca de um lado a busca pela efetivação dos seus direitos, desenvolvimento social e liberdade e a pressão da luta pela sobrevivência do dia a dia. Segundo Teixeira, o exercício do poder de participação não se dá sem “dificuldades objetivas”, e estas podem ser frutos das desigualdades sociais, econômicas, culturais e étnicas. (TEIXEIRA, 2002: 38)

Anete B. L. Ivo, no seu livro “Metamorfose da questão democrática”, explicita a dialética contraditória entre o princípio da igualdade política na democracia e o movimento excludente da matriz sócio econômica de caráter excludente, marcada pelas condições de pobreza e desigualdade na sociedade atual. Para ela, as elevadas taxas de desigualdades sociais, além dos processos contraditórios de formação do mercado de trabalho, resultam de relações políticas e culturais autoritárias que deixaram de fora uma importante parcela da população da comunidade política. Assim, a autora percebe um vazio entre as conquistas democráticas políticas, principalmente no contexto atual, e a dinâmica econômica capitalista que acirra a concentração de renda e aumenta os números da pobreza (IVO, 2001: 17-19). Mas reconhece avanços da democracia na conquista da cidadania, demonstrando ao mesmo tempo em que esta não é linear ou necessariamente virtuosa, demonstrando os limites da participação em arenas públicas distintas, e destacando a heterogeneidade de resultados.

Compreender a situação social das pessoas envolvidas no processo de participação implica compreender as condições históricas de formação deste espaço urbano e social e observar, particularmente, como esta área foi sendo gradativamente ocupada por uma

população caracterizada por renda muito baixa, ocupada com atividades irregulares, com carência de educação formal, moradias adensadas, falta de estrutura urbanística, ou seja, as inúmeras “mazelas sociais” que atingem esses indivíduos e que simbolicamente são mobilizadas como qualificadoras e desqualificadoras desses moradores.

Em relação aos ocupantes da área, temos mais um agravante percebido no trabalho de campo: durante as etapas anteriores de revitalização, percebeu-se que as famílias expulsas de outras localidades deste sítio histórico de Salvador tendiam a reacomodarem-se nas ruas do entorno, ocupando casarões abandonados ou adensando os imóveis já ocupados nas proximidades. Desta forma, as ruas que compõem a 7ª Etapa pareciam, de certo modo, abrigar boa parte desta população que fora retirada de outras áreas, trazendo para a área pessoas marcadas por outros processos anteriores de intervenção, relocação e expulsão. Marcas estas que reforçam o sentimento de injustiça e exclusão, pelas rupturas dos laços sociais anteriores nas suas práticas cotidianas com a vizinhança, amizade, família, trabalho, e que envolveram supostamente agravamento de processos de perda de referência e estigma. O “Diagnóstico Socioeconômico e ambiental da 7ª Etapa do Centro Histórico”, organizado pela CONDER, pode confirma este processo: “Ao analisar o local de residência anterior, observa-se que a mobilidade da população acontece de forma mais intensa dentro do próprio bairro, haja vista que 40,8% já viviam no Pelourinho antes de morar no imóvel atual (CONDER, 2005: 19)

Os processos históricos e estruturais desencadeadores da condição de pobreza, desigualdades e perdas sucessivas a cada processo de relocação; o imperativo da busca emergencial pela moradia em locais cada vez mais precários em infraestrutura, sob risco de desabamento, ou adensadas, acabavam por expor os moradores da área a uma realidade onde o estigma por parte da sociedade estava sempre presente e, muitas vezes, incorporados à sua própria representação sobre o seu lugar social. Andar pelas ruas que compunham a 7ª Etapa, principalmente quando dos primeiros anos da intervenção (2001-2002), era se deparar com pessoas que viviam no “limiar da sociedade”: corpos magros, muitas cicatrizes, pés descalços, uso do crack, mendicância. Essas características não se constituíam os traços da maioria dos habitantes, mas era comum a presença de pessoas com esse perfil na área. Essa situação social de população “relegada” acabava por atribuir à área, e consequentemente aos seus moradores, um valor moral de abandono, miséria, pobreza, “marginalidade”. Essa caracterização foi muitas vezes usada nos documentos governamentais, como argumento justificador da impossibilidade dessas pessoas permanecerem no local, na medida em que eles não pareciam

ser os legítimos cuidadores do “patrimônio” ali presente, como se pode observar em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, num depoimento da direção do IPAC:

Marginal tem que ser tratado pela polícia ou órgãos de assistência, não pelo patrimônio histórico... Não pode haver romantismo: marginal não pinta a casa, joga fezes na rua (FOLHA DE SÃO PAULO, 03.10.1994 apud ARTICULAÇÃO DE LUTA POR MORADIA, 2003: 34)

A situação de vida era realmente tão adversa que as próprias pessoas que ali habitavam pareciam não acreditar na possibilidade de se verem dialogando com o Poder Público e participando do projeto da 7ª Etapa, como cidadãos de direito. Pedro Demo (1990), analisando a desigualdade social nos processos de construção da emancipação e cidadania, percebe que não só a questão material é limitador para este alcance. Segundo o autor existem outras formas de desigualdade e o desigual não seria apenas quem não tem, mas quem “não é”, ou “não sabe”, ou “nada espera” (DEMO, 1990: 59).

Essa afirmativa de Demo pode ser observada em parte dos moradores, quando do início do processo de participação para a discussão do projeto e defesa dos seus direitos. Um sentimento de impotência diante da sua sobrevivência física, da convivência com uma realidade dura de falta das condições mais básicas (banheiro, água, esgoto, teto, comida), de não acreditar na possibilidade de construção de uma organização gerida por eles próprios, a desconfiança com o outro, as estratégias de busca de oportunidade de renda para atender a uma necessidade imediata e assim fazer “negociações” com o Governo. Seguindo esta linha de reflexão o questionamento de Elenaldo Teixeira sobre os desafios para a participação de grupos populares com esta realidade de vida se faz relevante:

Como inserir no processo os excluídos que não dispõem das condições mínimas sequer da sobrevivência material, quanto mais de informações e condições psicológicas para tomar parte num processo demorado, complexo, sem possibilidades de atendimento imediato de suas necessidades (TEIXEIRA, 2002: 35)

Essa condição de atendimento das necessidades emergenciais remete à iminência do risco ou a observar as oportunidades e possibilidades de negociação desses moradores com o governo sobre a saída da moradia e, assim, conseguir um recurso financeiro para a sobrevivência. Esse acabou sendo um aspecto muito importante para a análise da negociação, os limites de participação e ganhos futuros com a intervenção da 7ª Etapa: as condições limites da sobrevivência os levam a perceber essa condição como possibilidade de renda. Durante os anos iniciais do trabalho de campo, na condição de assessor da CEAS constatou-se que o morador, quando acabara de receber o chamado “auxílio relocação”, pago pelo Governo

para que as famílias que não tinham documento de posse e habitavam o imóvel a ser recuperado pudessem sair, estas passavam a ter um registro de negociação cadastrado na CONDER e perderiam o direito de permanecer no local. Consequentemente, o interesse a busca da participação no Projeto de Revitalização, também consistia não só na resistência de permanência, mas na possibilidade de ter o valor do auxílio relocação em mãos. Para pessoas que viviam na base da sobrevivência diária o acesso a um valor monetário era um grande atrativo, o que levou à saída da maioria das famílias da área motivadas por esse recurso. Lysiê Reis (2007) descreve bem este processo:

Conclamar todos a uma ação conjunta tornou-se impossível. Grande parte dos moradores está desempregada, vivendo de pequenos bicos. Por consequência, acabam aceitando o “auxílio-relocação” pago pela CONDER para que deixem o local. São quantias que variam entre R$ 700 e R$ 2,8 mil, nada além dos R$ 3 mil, já que estas famílias não têm escritura de posse do imóvel. E, apesar de não garantir a compra de outra moradia ou mesmo o compromisso com um aluguel, os moradores a aceitam. Resultado: gastam tudo e passam a morar em piores condições e, muitas vezes, na rua... (SANTOS, 2002 apud REIS, 2007)

Este movimento de saída dos moradores, por “auxílio relocação”, era tenso. Muitos deles, incrédulos da possibilidade de uma outra negociação mais justa, sem interesse em ir “morar em bairro” (como muitos expressavam sobre a alternativa da ida para outros bairros como Jardim Valéria, Coutos...), sentindo-se acuados com a pressão do Governo, e a pressão por sobrevivência aceitavam a oferta mas permanecia um sentimento de injustiça, e se sentiam excluídos e expulsos. Algumas destas pessoas moravam na casa há mais de 50 anos e não tiveram qualquer direito de interpretação diante da lei. Foi, por exemplo, o caso exposto no capítulo anterior sobre uma moradora idosa, que aceitou o auxílio relocação para poder comprar remédio pra filha, que estava em Estado terminal de câncer. Deixou a sua casa e, logo depois, a filha veio a falecer, ficando sem casa e sem filha. Alguns trechos de três matérias diferentes de jornais locais podem resumir o nível de diálogo estabelecido com o Governo e o sentimento gerado nas pessoas que se viam diante da possibilidade de saída de suas residências.

A CONDER estima que, ao longo da 7ª Etapa, gastará R$ 2.180.190 só com relocações. Em relação à quantia liberada por conta do auxílio relocação (de R$ 1,4 mil a R$ 2,8 mil), o órgão alega que não é possível elevar a verba por conta de obrigações com a Lei de Responsabilidade Fiscal dos Municípios (CASTRO, 2004: 03)

Sobre a Lei de Usucapião, ele [referindo-se ao então presidente da CONDER] disse que vão ser tratados de acordo com aspecto jurídico concernente. “Mesmo que tenha direito a usucapião nada impediria do

Estado desapropriar. Você conhece bem a área, têm casas onde têm 50, 60, 70 pessoas morando. Nós já tiramos cerca de 1.500 pessoas de lá de dentro, tranquilamente, sem nenhum problema... Há pessoas morando de forma degradante. Não são famílias, são pessoas que com R$ 2 mil podem voltar pra suas terras de origem”, avaliou. (WEINSTEIN, 2002: 3)

Os moradores apresentavam outra versão e interpretação para o jornalista em relação à possibilidade de saída com o auxílio-relocação:

...“dependendo de mim eu queria ficar, mas o dinheiro que a CONDER fornece mal dá pro pessoal comer quanto mais comprar uma casa”, comenta dona Antônia Maria de Jesus, 62 anos, 35 deles vividos no n 18 da Rua 7 de novembro (CASTRO, 2004b: 3)

Os moradores passaram a chamar o auxílio relocação de “cala a boca”, denotando que este tipo de negociação era uma estratégia do Governo para fazer calar as pessoas que tentavam, ainda que de maneira incipiente, questionar a saída da sua moradia. Não existem dados seguros, nem documentos que possam comprovar, mas sempre foi de conhecimento das pessoas da área, como também dos técnicos do Governo que por muitos momentos mencionavam este fato, que a negociação do auxílio relocação gerava também uma espécie de mercado, de negócio, sendo tudo acompanhado de perto pelos órgãos públicos competentes. Neste processo, existiam pessoas que não moravam de fato em algumas casas, mas eram incluídas como moradoras quando do cadastramento, por outros moradores, estes sim residentes, que “barganhavam” um percentual do auxílio recebido pelo terceiro. Também constatou-se que algumas pessoas receberam por mais de uma vez o auxílio, vindas de outras etapas de revitalização. Esta relação também era uma estratégia de acelerar o processo de retirada das pessoas frente à urgência de ter a casa vazia e, para os moradores, uma possibilidade de sobrevivência diante dos baixos valores pagos, demonstrando o nível de incerteza que orienta as ações no trabalho de relocação.

A questão da propriedade tem sido, até agora, o cerne do embate que mistura moradores que se apropriaram do que estavam esquecido (mas que são chamados de invasores pelo Governo), proprietários desaparecidos, inquilinos que viveram sublocando espaços e pessoas que receberam o “auxílio-relocação”, mas retornaram, ou seja, aqueles que o Governo achava que estavam satisfeitos. (REIS, 2007)

No ano de 2004, a assessoria aos movimentos populares urbanos do CEAS, elaborou uma pesquisa junto aos moradores participantes da AMACH e grupo de parceiros (UEFS e advogada voluntária), para conhecimento possível do universo de famílias que poderiam ser, dependendo da pressão exercida, ser contempladas no projeto. No momento desta pesquisa, sabia-se que mais da metade dos moradores já haviam saído sob pagamento do auxílio-

relocação, sendo que no dia do mutirão para aplicação dos questionários foram entrevistadas 105 famílias.

Dados processados desta pesquisa indicam que 46,2% disseram estar ocupando o imóvel que residia sem pagar qualquer tipo de aluguel nem ter os documentos de posse, 38,7% moravam de aluguel e 13,2% eram proprietários. Quanto à negociação e proposta do Governo as respostas dos moradores informavam que: 68,9% já tinham sido procurados pelo Governo para negociar a saída, sendo que o órgão público mais presente nestas negociações, segundo os entrevistados, foi a CONDER, com 86,6% das repostas, seguido do IPAC, com 12,% e da CODESAL, com 1,4%. Mais da metade afirmou (60,6%) ter acertado a saída com o pagamento do auxílio-relocação; 3% a saída sem auxílio relocação; 9,1% aceitaram a relocação para outro bairro; 27,3% não fez qualquer tipo de acordo e 81% afirmaram querer permanecer em seu local de moradia (CEAS, 2004)

A rapidez do processo inicial da intervenção, com um número elevado de pessoas relocadas, fez com que a AMACH e seus parceiros tentassem acelerar os mecanismos jurídicas para sustar a ação do Governo antes que não existisse mais “viva alma” para “contar a história” do local. Para os que permaneceram e demonstraram-se mobilizados para conhecer realmente o projeto e tentar propor alternativas de sua permanecia, o desafio estava posto: sobreviver no local, buscar a valorização enquanto seres humanos, conhecer e reconhecer os direitos e leis e estar disponível (tempo, recursos, saberes) através da construção de um tipo de organização popular que possibilitasse algum diálogo com, ou no caso, contra o Governo do Estado da Bahia. Desta forma, a condição social das pessoas envolvidas rebatia diretamente na sua condição de ator político participativo.

Para compreender o perfil socioeconômico dessas famílias, e, assim, poder analisar as reais motivações e desafios que envolvem essas pessoas no processo de luta, como partes de uma organização, de um grupo que, de imediato não lhes garantiria um retorno material, o “Diagnóstico socioambiental”, elaborado pela CONDER pode elucidar algumas questões. Mesmo que os dados fossem relativos ao ano de 2005, quando a maior parte dos moradores já estava fora da área, pode-se identificar algumas características do perfil dos moradores, encontrado na 7ª Etapa de Revitalização do Pelourinho. Conforme os resultados deste diagnóstico, o nível da renda familiar dos moradores, levantado pela equipe da pesquisa, que os tratou como “comunidade da 7ª Etapa” era muito baixo, com 40,8% das famílias auferindo renda mensal de menos de um salário mínimo, 71,9% ganhavam menos de 2 salários da

época, sendo que 10,9% mencionaram não ter renda alguma (CONDER, 2005: 21). 32,0% eram empregados sem vínculo, sendo que 9,7% eram biscateiros, 11,7% camelôs, 13,6% trabalhadoras do lar, e 6,7% se disseram desempregados (CONDER, 2005, p. 29).

Dificultava a participação das famílias, cujas pessoas estavam envolvidas numa condição e realidade material de pobreza. Por inúmeras vezes foram justificadas as ausências em reuniões da associação com o governo, Ministério Público, assessorias, etc., por que estas reuniões atrapalhariam o ganho do dia, a busca imperativa do dinheiro para suprir a alimentação da família imediatamente. Assim, presenciamos mulheres saindo da reunião para catar latinhas para reciclagem, outras que entravam durante as reuniões com isopor de água e logo saiam para continuar a venda na praça, além daquelas que tomavam conta de bar, vendiam bonecas de pano, homens que faziam biscates, pintores, atividades ilícitas, prostituição, reforço escolar (este último mesmo durante reuniões da associação). Na sua reflexão sobre a participação social, Pedro Demo reconhece que esta é uma conquista, não só diante da real condição de expressar-se, mas em relação à própria busca por participação envolver desafios que fazem com que a conquista seja árdua quando se trata de pessoas do meio popular.

Em nosso meio, a intensidade organizativa da sociedade civil é muito baixa..., a proposta de associação em defesa de interesses específicos aparece estranha, quando não temida. Ao mesmo tempo emerge aí a dificuldade de motivar processos participativos por falta de organização mínima. Sequer são sentidos como necessidade básica, até porque, em situação de pobreza socioeconômica extrema, pensa-se mais na sobrevivência imediata, do que na necessidade de garanti-la como direito definitivo. (DEMO, 1988: 33)

O nível de escolaridade ou grau de instrução também se constituiu em fator importante para a participação popular neste projeto de intervenção urbana aqui estudado. Quando se iniciaram os debates, tendo os documentos públicos interessados em mãos (Projeto inscrito, Ações Jurídicas, termos de responsabilidade, assinatura de documentos...) ou mesmo para trabalho de formação política com o grupo já constituído, os dados facilitariam o processo, caso os envolvidos tivessem boas condições de leitura e interpretação dos documentos. O grupo, no entanto, apresentava recursos de conhecimento e informação que dificultava a capacidade de reflexão na leitura e interpretação de dados, já que, ainda segundo pesquisa da CONDER, 20% eram analfabetos, sendo que 51,2% tinham o primeiro grau incompleto (CONDER, 2005: 27). Fazer com que as pessoas entendessem as Leis, projetos arquitetônicos, propostas escritas, orçamentos, envolveu um grande esforço do trabalho das entidades e profissionais integravam a AMACH. Uma dos desafios estava em fazer o grupo

entender, refletir e construir sua fala, quando de uma diferença do poder de participação dos indivíduos. Para os que conseguiam avançar na sua compreensão da situação ficava a impaciência com os limites do outro e, para este último, o sentimento cada vez mais intenso de que o caminho para a participação ou seria impossível ou estaria em designar e legitimar o poder nas mãos da AMACH, das lideranças populares ou do grupo de “amigos”, onde a desconfiança, seja pelas relações interpessoais conflitavas, pelas experiências de vida, não deixava espaço para positivar ações coletivas, pela falta de esperança no outro, que muitas vezes estava ai também presente.

Estes dados sobre trabalho, renda e educação, somados ainda aos aspectos da insalubridade da forma de morar, da baixa autoestima, do estigma de “miseráveis, marginais e relegados” parecem trazer para as estas pessoas envolvidas a não aptidão necessária para a participação em esferas públicas, em espaços de diálogos políticos. O que pode parecer aqui como um problema afeto à esfera privada, acaba por ter uma relação direta com a esfera pública, que se constitui diante do projeto de intervenção urbano, aqui estudado. Adriano Correia (2008), no artigo sobre “A questão social em Hannah Arendt”, sugere alguns dilemas da participação: “realmente a liberdade, a vida política, a vida do cidadão é um luxo; uma felicidade adicional para se tornar apto apenas depois de as solicitações do processo vital terem sido satisfeitas” (ARENDT, 1997: 106. apud CORREIA, 2008: 103). Ainda segundo Correia, existem críticas que pontuam que Arendt distingue radicalmente em sua análise as relações econômicas da política (M. P. D‟ ENTREVÉS, 1994; BENHABIB, 1996, apud CORREIA, 2008: 105). Porém, o que se percebe é que Arendt não elucida como as questões sociais, de interesse ou vividas por uma coletividade, possam ser admitidas no domínio político sem converter o espaço público em busca das demandas ou interesses privados (CORREIA, 2008: 110). Esta, que aqui podemos considerar uma “ambiguidade da participação”, apresentava-se no caso em estudo num dilema entre o esforço coletivo de luta ou participação nas esferas públicas e os interesses emergenciais e individuais das pessoas