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Vida e luta: a participação da mulher na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico

CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

4.1. A vida é uma luta: os desafios colocados para a participação popular, no

4.1.2. Vida e luta: a participação da mulher na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico

Dentro da análise sobre os desafios encontrados em campo de trabalho e pesquisa dessa experiência, ganha destaque o maior número de mulheres envolvidas diretamente na organização da AMACH, nas suas reuniões. Não se propõe aqui um aprofundamento do debate sobre os movimentos feministas, de gênero ou identitários, até porque, sendo desta forma, o cruzamento dos indicadores que obstaculizam uma determinada participação teria que dar conta também de outras dimensões como a questão racial, importante e também presente em campo de pesquisa. Trazer aqui o foco de análise para a participação da mulher resulta do destaque da atuação delas, observadas a partir do trabalho de campo, onde se constatou “um conflito” existente entre a sua presença e participação nas reuniões com Governo, assembléias públicas, mídia, nas reuniões da AMACH, em encontros coletivos com

outros bairros, reuniões no Ministério Público, fóruns, seminários, etc.) e as pressões de sua vida privada (cuidado com a casa, com os filhos, família, companheiros).

Esta singularidade da presença feminina não é uma particularidade do caso estudado. Diversos estudos vêm indicando que as mulheres estão em maior número quando se trata de lutas populares por direitos básicos, principalmente no meio urbano: educação, moradia, saúde, saneamento, segurança, geração de emprego e renda, etc. (COSTA, 1998; TOURAINE, 2007; CEAS, 2008; GOHN, 2010). Na busca pela participação em ações políticas de cunho coletivo, analisada sob a perspectiva de gênero observam-se outros desafios e obstáculos nesta caminhada. Segundo Gohn (2010), pode-se distinguir dois tipos de presença das mulheres nos movimentos sociais: os movimentos feministas e os movimentos de mulheres. O primeiro, para a autora, orienta-se para as causas do campo feminista, nas reivindicações centradas nas questões das mulheres. O segundo indica maior número de mulheres envolvidas, porém elas parecem invisíveis como “movimento de ou das mulheres”, pois o interesse, “a bandeira” se orienta para a efetivação de um direito mais geral: a luta pela moradia, saúde, educação, etc.

O Movimento de Mulheres é mais numeroso, mas quase invisível enquanto movimento de ou das mulheres. O que aparece ou tem visibilidade social e política é a demanda da qual são portadoras – creches, vagas ou melhorias nas escolas, postos e equipamentos de saúde etc. São demandas que atingem toda população, e todos os sexos, mas têm sido protagonizadas por mulheres. (GOHN, 2010: 91)

No ano de 2008 a Equipe Urbana do CEAS fez uma avaliação e constatou esta presença feminina marcante em todas as suas áreas de trabalho nos bairros populares da cidade de Salvador onde havia atuado nos últimos anos (2000-2008), a saber: Bairro da Paz, Gamboa de Baixo, Marechal Rondon, Santa Bárbara, Centro Histórico, Alto das Pombas . Esta avaliação foi publicada no artigo “A voz das mulheres na luta popular por moradia em Salvador” que trazia as experiências de grupos de mulheres do contexto popular e associações de moradores, com destaque para a AMACH (CEAS, 2008: 81-100). Relevante trazer os dados estatísticos apresentados pelo CEAS com referência aos indicadores dos anos de 2000 a 2005, período específico da delimitação cronológica desta pesquisa, para entendimento do perfil desta mulher que também luta na defesa de seus direitos em espaços públicos mais amplos de reivindicação dos direitos.

Conforme artigo da Equipe Urbana do CEAS, com base em dados da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (2002) uma das principais mudanças nas

relações de gênero é o aumento da proporção de domicílios chefiados por mulheres. 25,5% dos lares estavam sendo chefiados por mulheres, bem diferente dos 19,3% de chefas de família em 1992 (PNAD, 2002 apud CEAS, 2008: 83). Dentro dos limites da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico, segundo a CONDER no “Diagnóstico socioeconômico e ambiental”, também predominavam as mulheres como Chefes de Família, com 57,3%, destacando-se as faixas etárias de 41 a 60 anos, com 39% (CONDER, 2005: 17).

Apesar do avanço nas formas de participação das mulheres em diversos aspectos, no âmbito do mercado de trabalho, as desigualdades por sexo ainda se constituem uma condição de vulnerabilidade das mulheres. Para a Região Metropolitana de Salvador – RMS, as mulheres responsáveis por famílias tiveram expressivo crescimento nos períodos analisados (1991-2000): enquanto no Estado da Bahia, elas passaram de 22,4% para 29,3%, no período de 1991 a 2000, na RMS o aumento foi ainda mais significativo, de 27,9% para 38,1%. Segundo a pesquisa do DIEESE (2003) “A mulher negra no mercado de trabalho metropolitano: inserção marcada pela dupla discriminação”, 52,2% de mulheres negras e 39,9% de mulheres não-negras se encontram nesta situação, contra 39,9% de homens negros e 32,35 de homens não-negros, em Salvador. Em relação aos dados apresentados pela Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED da RMS, relativa aos trabalhadores domésticos e que cruza variáveis de raça e gênero, 93% dos trabalhos domésticos são realizados por mulheres, sendo que neles a presença majoritária (94,8%) de negros e negras no setor, sendo que 69,1% não têm carteira assinada e 28,3% moram no domicílio em que trabalham. As disparidades são latentes e muitas vezes os dados são alarmantes, uma babá branca tem rendimento mensal médio de R$185,00 enquanto uma babá negra ganha em média R$98,00 (PED-RMS). O desemprego feminino na RMS também é mais alto que o masculino, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE. Entre janeiro e outubro de 2006 a taxa de desocupação das mulheres variou entre um mínimo de 15,8% e um máximo de 18%. ( IBGE, 2000 e 2006; DIEESE, 2003 apud CEAS, 2008: 84-85).

É esta mulher, com este perfil de maior vulnerabilidade expresso nos números e estatísticas que compõe a maioria das pessoas representativas na busca pela participação no projeto da 7ª Etapa. São vendedoras ambulantes, cozinheiras, biscateiras, trabalhadoras autônomas, comerciantes, pedintes, desempregadas, mulheres em situação de prostituição, mulheres envolvidas com atividades ilícitas, donas de casa, costureiras, artesãs, mães de santo, que estiveram e continuam em parte presentes em busca do diálogo e requerendo um lugar de participação no projeto da 7ª Etapa. São mulheres com baixo grau de escolaridade,

em sua quase totalidade desempregadas, mas que cuidam da casa, do bairro, da associação de moradores. O CEAS assim expôs sua realidade de vida, lembrando aqui que esta parte da análise se refere diretamente às mulheres que compõem a AMACH:

... sem renda, tendo que tomar conta da casa (muitas vezes sem casa), dos filhos, dos maridos, da comida (ou falta dela), as mulheres transcendem o espaço da casa e ampliam sua preocupação para com o bairro, a rua, a comunidade, a cidade, o outro. O papel da mulher acompanhada pela equipe é, principalmente, um papel político e a predominância das mulheres na AMACH, nos grupos organizados, nas comissões de moradores... refletem esta afirmação (CEAS, 2008: 86)

Gohn chama atenção para o fato de que o número e a participação das mulheres é tão expressivo nas lutas populares que seria mais legitimo tratar de “atrizes sociais” das ações coletivas (2010: 95). Esta observação é bastante pertinente também à AMACH, Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, que poderia muito bem chamar-se Associação das Moradoras e Amigas do Centro Histórico, tamanha a predominância das mulheres. Nos seis anos de observação, trabalho e pesquisa (2001-2007) as principais pessoas que estiveram à frente da associação mostravam a presença de duas presidentes e de um grupo composto por 15 mulheres e 5 homens, sendo que este número sofreu variações no decorrer do tempo, mas em nenhum momento foi percebida uma presença maior ou mais intensiva dos homens dentro ou protagonizando a participação popular na Etapa.

Em reunião ocorrida em 12 de novembro de 2004, em um bar na Rua Monte Alverne (Pelourinho), a AMACH apresentou a 80 moradores presentes o seu novo quadro de diretoria, composto por uma presidenta, nove diretoras e três diretores. Naquele momento, ao passar a presidência da AMACH para a próxima responsável, pôde-se observar nas falas da então presidenta, para o grupo presente nesta reunião, as dificuldades que as mulheres enfrentavam para manter a organização da associação e participar das atividades de cunho político dentro do projeto da 7ª etapa:

Em 31 de Junho de 2002 surge a AMACH. A nossa intenção era unir forças para irmos ao embate contra o Governo... O Governo coloca e colocou muito dinheiro no Pelourinho e o povo negro está empatando este processo por seu padrão de vida. Aqui eles nos ofereceram quantia irrisória e fomos expulsos daqui. Nossa organização é composta de um pequeno grupo, nós mulheres negras que com nossos netos e filhos enfrentamos o governo. No começo da luta éramos eu e a Pró na frente, sem dinheiro pra transporte, sem participação de outros moradores, com nossas famílias, esperando em casa e nós colocando a cara na rua pra brigar por nossos direitos... Hoje somos uma pedra no sapato deles (Presidenta da AMACH, 12 de novembro de 2004)

Para esclarecer o ponto aqui tratado, as dificuldades alegadas neste discurso referiam- se a fortalecer a organização do “movimento pró-moradia”, mantido basicamente por mulheres que convivem com o desemprego, as casas em risco de desabamento, cuidado com a família, preconceito de raça e gênero, violência, tráfico de drogas. Foram muitos momentos em que elas se faziam presentes nas reuniões com suas crianças no colo, que saiam para preparar a mesa de casa ou os afazeres domésticos e ainda assim encontrar tempo e criar estratégias, junto com as entidades e grupos de apoio, para mobilizar uma área onde o desemprego e/ou subemprego, o alto índice de uso e tráfico de crack e a prostituição eram uma realidade. O desafio estava não só em criar as condições para a participação ou conquista de direitos de moradia, mas de conciliar este desafio com a administração, ou presença, de aspectos da sua vida privada, do conviver com os companheiros, do cuidado com sua casa, da educação, acompanhamento e formação dos filhos e netos.

Ana Alice Alcântara Costa (1998), em seu estudo “As donas do poder; mulheres e política na Bahia” revela esta trama e o poder das mulheres frente ao processo de construção da sua participação política associada aos cuidados com a família. Para a autora o espaço da mulher tem sido sempre o exercício na esfera privada e, por isso mesmo, para analisar sua participação na esfera pública é necessário perceber sua presença nas duas esferas, já que a mulher tem assumido papeis concomitantemente nestas (COSTA, 1998: 11). Ela ainda pontua algumas condições que se constituem obstáculos da esfera privada para participação da mulher na esfera pública, com destaque para:

1) Sua condição de gênero oprimido as impede e obstaculiza o exercício pleno da cidadania; 2) sua vulnerabilidade física, no medo da violência sexual e a possibilidade de serem golpeadas no lar, obstaculiza o seu envolvimento nas atividades públicas e as exclui do exercício dos direitos civis; 3) ao não dispor de ingresso monetário próprio, estão submetidas à vontade e às ameaças dos maridos; 4) a ideologia da feminilidade, á qual estão submetidas, é contraditória com a racionalidade do mundo político; 5) a dupla jornada de trabalho lhes deixa com menor disponibilidade para dedicar-se à vida pública como cidadã (JAMES, 1992 apud COSTA, 1998: 71-72)

As mulheres, portanto, se dividem entre as dimensões do espaço público e o privado, com seus tempos e esforços disputados entre estas duas esferas. O trabalho na esfera privada, assim como a sua participação e trabalho na esfera pública criada com a luta por direitos e participação na 7ª Etapa de Revitalização, agravam-se ambas as participações não se traduzem em renda imediata para as mulheres e famílias, com “o porém” de que, no trabalho doméstico, o ganho encontra-se na simbologia da casa arrumada e limpa. O tempo destinado ao trabalho

comunitário (não remunerado), o desemprego e a pressão familiar para a manutenção econômica e o cuidado para com a casa, filhos e companheiros se tornavam cada vez mais constantes quanto mais a participação destas mulheres se intensificava.