• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

4.5. A construção das esferas públicas: a mediação do conflito pela instância

4.5.1. A mediação jurídica, os embates e as revelações

O ano de 2002 dá início a uma verdadeira disputa judiciária. Primeiramente, serão aqui expostas as representações advindas com a Ação Direta de Inconstitucionalidade com Pedido de Medida Cautelar (doravante ADIN) que o Partido dos Trabalhadores (PT) moveu

perante o Tribunal de Justiça da Bahia. Nesta ação foi contestada a autorização concedida pela Assembléia Legislativa do Estado da Bahia ao Poder Executivo para este doar à CONDER imóveis localizados no Centro Histórico de Salvador. Para tanto a ADIN apresentou como argumento a defesa da permanência dos moradores na área por conta do seu valor cultual que também constitui o espaço do Centro Histórico, preservando assim o patrimônio material e imaterial a um só tempo. Também esta Ação contestava que, se a “Pesquisa socioeconômica e ambiental da 7ª Etapa”, organizada pela CONDER mencionava que esta intervenção deveria dar ênfase a uma política de revitalização social, de educação patrimonial e de geração de emprego e renda para a população pobre da área, visando sua fixação por constituir-se na verdadeira identidade nacional e internacional do Pelourinho (CONDER, 2000: 03), os moradores estariam justamente dentro do perfil colocado para a permanência. Desta forma o PT contestava assim o decreto desapropria tório que atingia os moradores:

Entretanto, a promulgação da Lei 8.128-02, juntamente com a publicação sucedânea de decretos desapropria tórios, veio a esclarecer que se tratou o atual “plano” de intervenção de mero discurso demagógico do Governo da Bahia para atrair recursos do programa Monumenta, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Ministério da Cultura. Com o “glorioso” plano aprovado e já tendo recebido parte dos recursos, os órgãos estatais, em especial a CONDER, deliberaram pela mesma prática viciada das etapas anteriores... (PT, 2003: 05)

Ainda dentro dos argumentos e teses defendidos pela ADIN, ela argui o projeto quanto a relocação dos moradores com base no “Mérito” da 7ª Etapa que fere o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo como fonte normativo-constitucional no Art. 2 da Lei Fundamental da Bahia. Com base nesses argumentos estava um conceito patrimonial de que para promover a proteção do patrimônio histórico cultural o Estado tem que conservar os modos de criar, fazer e viver mantidos no âmbito territorial do Centro Histórico (PT, 2003: 17). Ainda somavam a construção dos argumentos a possibilidades concretas dos moradores tirarem do local seu sustento, seja no biscate, nos comércios, na expressão cultural dos artistas plásticos, capoeiristas, etc., revelando um modo peculiar de uso do espaço para sua sobrevivência:

Tudo é relevante: desde o saber de um vendedor de fitas do Senhor do Bonfim até o singelo sincretismo de idiomas cultuado pelos guias turísticos... desde a forma como se vestem até a linguagem utilizada para a comunicação com outras pessoas têm que ser preservadas, pois constituem patrimônio cultural imaterial local (idem: 19)

Como Arendt argumenta que a esfera pública é o espaço que ilumina e revela o agente diante do discurso e da ação (ARENDT, 1983: 188-199), a contestação da Ação Direta de

Inconstitucionalidade por parte da Procuradoria Geral do Estado acabou por expressar os valores subjacentes ao projeto oficial na sua relação com os moradores locais, diante de uma possibilidade de diálogo ou de mudança nos parâmetros de execução da 7ª Etapa (PGE, 2003). Já de início a referida Contestação questiona a procedência (ou não) de uma cultura nascida exclusivamente das condições de pobreza e carência, e questiona:

existem, na área da 7ª Etapa, um modo de vida ou expressões típicas urbanas específicas que merecessem o reconhecimento como cultura e, portanto, significassem manifestação da dimensão humana do grupo social ali habitante? (PGE, 2003: 15).

Os argumentos que a contraposição normativa sobre o valor dos moradores na ADIN e sua contestação acabaram tendo uma repercussão direta na mobilização dos moradores que, incrédulos com o que observavam dos diálogos ai presentes, passaram a reproduzir as falas desta contestação em todo ato público que participavam, na mídia local e nos documentos produzidos. Se a riqueza da vita activa, segundo Arendt, estava na possibilidade de reconhecer os atores revelados, naquele momento, nem o grupo de “amigos”, nem os moradores esperavam uma resposta institucional tão explícita e de cunho moral tão estigmatizante por parte dos representantes do Governo do Estado da Bahia. Naquele momento observou-se nos moradores um aumento do descrédito sobre as possibilidades da negociação, a tristeza e a revolta pelas imagens reforçadas de marginais e então se buscou novas estratégias para denunciar o governo, que assim revelava seu julgamento moral relativo aos moradores:

Ao mesmo tempo, promove-se a reinserção social da população hoje existente, cujo modo de vida certamente não é cultural e muito menos digno, mediante a oferta de transferência para casas populares (...)

Os moradores não se vestem de forma típica, de baianas ou pais de santo. Vestem-se com roupas que conseguem, a maior parte de andrajos. Tampouco criam dialeto, mas falam simplesmente errado, arremedo de uma língua que desconhecem

Existe tão somente um estilo de vida determinado pela pobreza, indigno de ser considerado como expressão da dignidade da pessoa humana (...) Apenas denota pobreza e marginalidade (...). Não há, na hipótese, cultura popular a ser protegida! (ALM, 2003: 36 e 37 apud PT, 2003: 12, 17 e 18)

A mediação do Ministério Público acabou por mobilizar reuniões, realizar inquéritos civis, Ação Civil Pública, observando um conjunto de denúncias e tentativas de diálogos cujos resultados foram divulgados na mídia, comentados nas esquinas e bares da poligonal da 7ª Etapa e nas reuniões da AMACH. As análises desta relação que culminou na correlação de

forças existentes tiveram resultado no âmbito da participação popular e da efetivação do Direito, e podem ser documentadas a partir de observações e participação direta, da memória da participação, assim como das referências documentais existentes, atas de reuniões, inquéritos, Ação Civil e Contestação do Estado da Bahia.

Segundo consta na análise documental e conforme memória dos relatos e acompanhamento direto, na época, uma das primeiras iniciativas dos moradores com o Ministério Público, veio em função do encaminhamento por parte de uma das advogadas voluntárias, para que eles pudessem expor para o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça e Cidadania, a maneira como estavam sendo tratados pelo Governo do Estado e quais as consequências da intervenção da 7ª Etapa em suas vidas. Conforme consta nos Termos de Declarações, foram ouvidas dezesseis pessoas, entre os meses de maio e agosto de 2002, e todas apresentavam queixas sobre os processos de relocação e negociação com a CONDER (Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça e Cidadania, 2002). Os relatos destas declarações denunciam a situação dos moradores diante do fato da Intervenção Pública que “bateu em suas portas”, ao anunciar o início da reforma e fez emergir reações desses moradores, suas preocupações e busca dos direitos.

...Informou da disposição do poder Público Estadual em promover a desapropriação dos imóveis localizados na Rua do Bispo e adjacências... sendo oferecido R$ 2.090,00 (dois mil e noventa reais) imóvel, ou mudança para o “embrião” de casa no Projeto – “Viver Melhor” – Subúrbio de Coutos, onde neste último se submeteria a um pagamento mensal de R$ 51,00 (cinquenta e um reais) por cerca de 5 (cinco) anos... que tendo em vista sua situação de aposentado recebendo 1 (um) salário e meio mensal de onde provem seu sustento e de toda família obviamente não poderia aceitar a segunda alternativa (mudança para Coutos) que a partir de então começou a receber ameaça por parte de prepostos do Poder Público com objetivo de desocupar o imóvel... (CENTRO DE APOIO Operacional às Promotorias de Justiça da Cidadania, 7 de maio de 2002)

Em nenhuma destas declarações observa-se qualquer menção de que o Governo do Estado tenha oferecido a opção de permanência no imóvel habitado, valor indenizatório “justo” ou relocação para algum outro imóvel próximo, seja dentro do Centro Histórico, ou não. Ainda segundo declarado por estas pessoas, a grande maioria habitava as casas por mais de 25 anos e também nada havia sido comunicado pelo Governo sobre os direitos do usucapião do Art. 10 do Estatuto da Cidade, ou no Art. 6 da Constituição Estadual que rege sobre o direito a moradia. O Ministério Público no momento sentiu a necessidade de ouvir o grupo de moradores que se organizava no momento na AMACH, juntamente com instituições

e profissionais próximos a eles, colocando-os diante dos advogados e técnicos do Governo do Estado da Bahia, representado pela CONDER, para que as situações assim pudessem ser melhor explicitadas. Estava ali constituído um espaço de mediação no âmbito da justiça pela ação do Ministério Público.

Em setembro de 2002 ocorreu uma reunião, marcada como a primeira, onde as partes se encontravam diante do Ministério Público. Naquele momento a AMACH estava representada pela sua presidenta, e o grupo de “ amigos” como o CEAS, as três advogadas, o Projeto Força Feminina, a Arquidiocese de Salvador (ASA) e, do lado da CONDER pelo seu advogado e uma assistente social. Durante toda reunião foi exposta a situação das negociações, da intervenção e a realidade dos moradores, por parte da AMACH e do grupo de amigos. Pelo lado da CONDER, o advogado sustentava os termos do decreto desapropriatório e as propostas oferecidas aos moradores. Ao final deste encontro, foi afirmado pelo advogado da CONDER verificar a possibilidade da participação de representante da AMACH nas negociações com os moradores, acompanhado de um advogado vinculado a esta associação. O que poderia ser analisado como uma vitória pontual, tamanha a preocupação naquele momento sobre as formas como os moradores estavam sendo submetidos à negociação, foi visto com desconfiança pelo grupo da AMACH e, ao final da reunião, já no lado de fora da sala, todos analisavam que o advogado da CONDER parecia, de fato, não estar atento para a situação de embates criada pois ele acabara de abrir uma possibilidade de diálogo, que não estava sendo cogitada nem pelos moradores nem pelos grupos que os acompanhavam, para o momento.

A avaliação acabou por se confirmar e, na segunda reunião marcada entre as partes, a CONDER apresentou-se com outro advogado. Com uma postura extremamente autocrática, este falava alto, gesticulava e afirmou que a “CONDER não iria fazer qualquer concessão e removeria proprietários e moradores da área da 7ª Etapa de Centro Histórico de Salvador” (Ministério Público da Bahia, Ação Civil Pública, 2002: 09). Foi o bastante para que o Promotor de Justiça, diante de todos na reunião, com um forte tapa na mesa de negociação, falasse em mais alto tom, ainda: “vamos denunciar, nos órgãos internacionais, e vamos abrir uma Ação Civil Pública contra a CONDER de que o Governo do Estado da Bahia está promovendo uma assepsia social no Centro Histórico de Salvador”. O tom da voz, sua postura assertiva foram tão fortes que todos calaram por um segundo. Nos olhos dos moradores e grupo de amigos estava a imagem de que “agora estamos sendo ouvidos” e, ao mesmo tempo, a reação física do advogado da CONDER parecia denotar uma preocupação com o que viria

pela frente; ele afrouxou a gravata, respirou e saiu da reunião para preparar o Governo para a situação de confronto que se formara e suas repercussões.

O Ministério Público então ajuizou uma Ação Civil Pública21 com pedido de ordem liminar contra o Governo do Estado e a CONDER, tendo como objetivo principal conter o processo de expulsão dos moradores. A mídia imediatamente divulgava esses resultados e tornava ainda mais público a trama e as questões inerentes a ela, naquele momento, junto à opinião pública. O jornal A Tarde publicou matéria de uma página inteira com o título “CONDER acusada de fazer assepsia social”, em 21 de novembro de 2002, onde anunciava que o Ministério Público, na construção da sua Ação Civil entendia que o Governo da Bahia estava promovendo uma “assepsia social”, ou seja “[...] uma espécie de faxina em que a pobreza do Pelourinho é a sujeira” (A TARDE, 2004, p.3).

Reis (2004) analisando esses embates, mostra que o Promotor de Justiça e Cidadania do Ministério declarou ser a primeira vez que se deparava com desapropriações realizadas com pessoas dentro dos imóveis e com base na reportagem acima, apresenta o questionamento do promotor: “[...] por que não deixam os moradores no local e cobram deles também uma quantia, como fazem em Coutos?” (A TARDE, 2004: 7, apud REIS, 2004: 05). O Ministério Público considerava que a desapropriação de imóveis para destinação a outra pessoa violava as regras da própria lei de desapropriação, agravada no caso de que dentro do projeto encaminhado aos órgãos financiadores, constava que estas seriam destinadas a uma população de baixa renda. Assim a Ação Civil Pública questionava as diferenças entre o projeto inscrito no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua execução na prática, o que acabou por interromper a execução das obras até que as questões fossem apuradas e esclarecidas. Em duas matérias do jornal A Tarde os objetivos desta ação foram esclarecidos à sociedade:

...O pedido principal da ação é o cancelamento definitivo das ações de retirada de moradores, dando-lhes a oportunidade de se manifestar, exprimindo se querem sair ou permanecer na área. Caso queiram ficar, que seja providenciada a restauração dos imóveis, recomenda o Ministério Público... (WEINSTEIN, 2002: 3).

Quanto à retenção da verba assim foi justificada na imprensa na matéria “Verdades e mentiras do novo pelô” :

21

Enquanto a discussão tramita no Poder Judiciário. A verba está retida para reforma dos casarões na sede do Monumenta BID, em Brasília... O dinheiro só é liberado após a publicação da decisão dizendo se a CONDER está faxinando a pobreza, como defendo o MP... O fato é que, depois que uma parte da verba chegou, algumas promessas viraram pó (A Tarde, 2004, p. 03)

Dentro da Ação, diversos trechos da Pesquisa Socioeconômica e Ambiental da 7ª Etapa, elaborada pela própria CONDER, indicavam para a promotoria a necessidade de esclarecer porque os moradores estavam sendo relocados da área. Para melhor análise deste momento da Ação Civil, segue abaixo parte da Pesquisa acima, citada no corpo da Ação seguida pela conclusão da promotoria:

Neste processo de intervenção do Estado visando a revitalização desta etapa do Pelourinho, não deve ser deixado de lado o elemento humano que ali vive e trabalha, exercendo as mais diversas atividades, como artistas, artesãos, grupos afros, capoeiristas, etc., que caracteriza a área... A Etapa precisa de mudanças que tornem mais digna e sustentável a vida de seus habitantes, permitindo que eles participem dos benefícios dos impactos positivos (CONDER, 2000 apud Ministério Público, Ação Civil , p. 04).

Diante desta argumentação da CONDER, o Ministério Público pontua:

Contudo, no ano de 2001, a CONDER já estava pressionando os moradores de diversos imóveis da área da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador para que os desocupassem... vale ressaltar que os réus jamais informaram detalhes do Programa Monumenta aos proprietários e moradores da área... preferem, pagando mísero valor, jogar na rua da amargura milhares de famílias com as suas crianças, sem a mínima preocupação com o seu destino (Ministério Público, 2002, p. 05)

Não quer a CONDER que a população humilde, que sempre morou no Centro Histórico de Salvador, ali permaneça, e está promovendo uma verdadeira assepsia social (Idem, p. 11)

Os moradores e o próprio Ministério Público questionavam outro fato já confirmado pela CONDER e Governo do Estado, a transformação das casas em apartamentos e a destinação destes para funcionários públicos que recebem de três a seis salários mínimos, a serem beneficiados com o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) da Caixa Econômica Federal. Quando perguntado na entrevista sobre a posição do BID quanto ao envolvimento da Caixa Econômica no projeto da 7ª Etapa o então presidente da CONDER assim respondeu:

O Presidente ..., confirmou que o Monumenta-BID não sabe sobre o envolvimento da Caixa Econômica Federal por meio do PAR... Ele informou que os apartamentos serem priorizados para funcionários públicos era “uma hipótese” (explicitada como real em alguns documentos). (WEISTEIN, 2002, p. 03)

Outro argumento da Ação Civil, recuperando textos da pesquisa elaborada pela CONDER, esta agora próxima da levantada pela ADIN, sustentava a importância em valorizar o patrimônio imaterial presente. Como, segundo o Ministério Público, citando parte da pesquisa, “... a área em questão manteve sua identidade como centro de referencia cultural e de cidadania... e se estruturou com base no movimento cultural negro. Há quem o considere o núcleo simbólico da identidade da cidade” (CONDER, 2000 apud Ministério Público, 2002, p. 15), para a promotoria “ao promover a assepsia social, removendo a população do Centro Histórico de Salvador, da área da 7ª Etapa, os Réus estarão cometendo o maior atentado contra o patrimônio cultural baiano” (idem, p.16)

Para o Ministério Público, o próprio Decreto nº 8.170, de 25 de fevereiro de 2002, do Governo do Estado, que declarou de utilidade pública os imóveis da “poligonal da 7ª Etapa, era inconstitucional. A argumentação do MP considerava “inadmissível que os proprietários residentes na área tenham seus imóveis desapropriados para que outras pessoas possam morar, pois a desapropriação que justificaria reforma do bem desapropriado, segundo consta na Ação Civil, seria para urbanização (Art. 5, “i”, do Decreto-lei nº 3.365-41), mesmo assim sem a intenção de assepsia social, “pois a doutrina e a jurisprudência são unânimes em defender a prioridade para os antigos moradores, uma vez que não se vise a especulação imobiliária” (idem, 20)

Por fim, a Ação colocava a necessidade de “estancar, urgentemente, a expulsão dos proprietários dos imóveis”. Para tanto, indica doze questões, das quais, dentre eles destacam- se:

- Seja determinado aos Réus a imediata suspensão de toda e qualquer atividade que implique na remoção ou expulsão...

- Seja determinado aos Réus a transferência temporária dos proprietários e dos moradores dos imóveis que estejam em situação de risco...

- ...garantia de permanência dos proprietários e moradores que assim desejarem...

- A condenação dos Réus na obrigação de fazer consistente na garantia de presença de advogados na negociação dos Réus com os proprietários e moradores...

- Condenação dos réus no pagamento de danos matérias e morais causados aos proprietários e moradores da área (idem, p. 24-27)

Da mesma forma como ocorreu na ADIN, o Estado da Bahia manifesta-se dentro dos procedimentos jurídicos, e oferece, “tempestivamente”, Contestação à Ação Civil Pública (PGE, 2003). Nesta Contestação, o Estado responde a todas as questões levantadas na Ação Civil Publica e entre estas argumenta que a situação a que foi relegada o Centro Histórico tem ampla responsabilidade dos moradores locais que passaram a significar local de pobreza e periculosidade (PGE, 2003, p. 03). Desta maneira a Contestação contra-argumenta o abandono dos imóveis, resultante da ação e impossibilidade dos seus moradores manterem eles de pé e a situação desumana em que moravam as famílias, argumentos que justificavam a intervenção do Governo e a relocação dos moradores do local:

A situação é tão deprimente que basta uma mera visita a área para perceber a veracidade desses dados (referindo aos dados de insalubridade das moradias, grifo meu)... Diante da escassez de verba pública..., logrou o Estado da Bahia incluir a restauração e revitalização da 7ª Etapa no projeto Monumenta..., importando em afluxo de nova clientela e criando expectativa de comerciantes e agentes imobiliários... (PGE, 2003: 05 e 06)

Nas palavras do governo do Estado nesta Contestação, a remoção seria uma ação legítima para com estes moradores. Sem reconhecer na área e nos moradores qualquer tipo de cultura imaterial a ser preservada, considerando que as pessoas que ali habitavam apenas exibiam a face “ da pobreza e miséria” e que os símbolos culturais a serem valorados apareciam nas indumentárias (roupas, culinárias, dialetos, formas de expressão) do que nas próprias pessoas propriamente ditas, os termos da Contestação do governo à ADIN, reforça mais uma vez uma visão moral desqualificadora desses moradores da perspectiva do seu valor cultural. Naquele momento, diante da representação social que os técnicos do governo e o próprio Estado explicitaram foi importante entender a reação dos moradores sobre a situação. Eles se reconheciam enquanto pessoas no limiar da pobreza, sabiam que existiam muitas famílias que viviam do tráfico e da prostituição, mas que elas não eram a maioria e que a cultura, ora colocada nestas peças jurídicas como patrimônio imaterial, era, para eles, a sua forma de viver no e do local de moradia. Muitos deles eram catadores de latinha para reciclagem, mestres de capoeira, eletricistas, mães de santo, cabeleireiros, baianas de acarajé, comerciantes, artistas plásticas, cozinheiras, poetas, costureiras, desempregados, guardadores de carro, músicos.

Diante da mobilização e organização para que os moradores permanecessem morando no Centro Histórico, um local cuja simbologia remetia ao valor patrimonial cultural, esses mesmos moradores acabavam por se apropriar do discurso oficial para a área, transpondo para

suas pessoas os valores culturais a serem preservados in loco. Naquele momento, muitos deles afirmavam que eles seriam o patrimônio a ser preservados, chegando a ponto de um dos