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O TOPOS DO PODER CENTRAL FRAGILIZADO E O USO ESTRATÉGICO DO DISCURSO DO PROGRESSO ENQUANTO PROVA RETÓRICA DO ANACRONISMO

DOGMAS QUE AINDA SUSTENTAVAM RETORICAMENTE O IMPÉRIO: O DIÁRIO DE NOTÍCIAS, VETOR DA METODOLOGIA RUIANA

4.2 O TOPOS DO PODER CENTRAL FRAGILIZADO E O USO ESTRATÉGICO DO DISCURSO DO PROGRESSO ENQUANTO PROVA RETÓRICA DO ANACRONISMO

MONÁRQUICO

Como segundo passo metodológico de sua estratégia desestruturante, Rui Barbosa voltou-se para o ataque retórico contra a crença nos benefícios político-administrativos proporcionados por um poder monárquico forte. Era preciso, saliente-se mais uma vez, aproveitar a brecha aberta pelo discurso da atualização institucional e, assim, destruir o consenso em torno da linguagem de comando centralizadora. Isso, a fim de tornar o debate quanto à nova forma de estruturação do Estado cada vez mais pulsante na arena pública. Era necessário apagar os elementos linguísticos, os quais ainda garantiam a estabilidade do poder imperial. Ora, da mesma forma que a retórica, por meio do discurso da ordem forjado no início do séc. XIX, havia conferido à monarquia legitimidade e credibilidade, ela também poderia desfazer esse processo e atrair a desconfiança para o centro do discurso de comando imperial, a qual é fundamental para desfazer dogmas, na medida em que torna seus conteúdos instáveis112.

Traçada a deslegitimação da monarquia como meta, o autor optou por organizar seu raciocínio tópico-problemático em duas linhas argumentativas: a do desrespeito ao ordenamento jurídico brasileiro e a do anacrônico resgate interno de modelos governamentais superados na Europa. Ambas refletiam de maneira direta, em maior ou menos intensidade, o conteúdo já consagrado no tecido social do discurso do progresso não em seu sentido econômico, mas sim no “civilizador”, representativo da tentativa de criação de uma nação europeizada na América Latina. O esforço para modernizar o País com base no modelo europeu de sociedade tinha como consectário o repúdio à translação de ideias já rechaçadas no berço da civilização moderna ocidental. O absenteísmo estatal tornara-se, conforme detalhado no capítulo segundo, um valor do Brasil, agora, “burguês”. É nesse sentido que Rui Barbosa, por um lado, amplia a interpretação nacional quanto às características do modelo liberal-capitalista, com fins de realçar a noção de respeito às leis e apresentá-la à sociedade como princípio prioritário do Estado moderno e mínimo. A monarquia, então, na exata medida em que violasse as leis por ele mesma postas, negaria o liberalismo e, por conseguinte, o “progresso”, tão socialmente valorizado no nível material da retórica. Por outro lado, o autor associa características dos regimes absolutistas às posturas da Coroa, de forma a

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BALLWEG, O. Rhetorik und Vertrauen. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 127.

provar indutivamente, a partir do exemplo do contexto histórico europeu pré-revoluções burguesas, o caráter ultrapassado do regime nacional.

Quanto à violação das leis internas, cria-se o topos do poder central, descentralizado. A imagem antitética criada por essa estratégia já condensa a contraposição que o autor pretende expressar, qual seja: o posicionamento dos interesses da Coroa e da sociedade brasileira em polos diametralmente opostos. Ora, vivia-se sob um regime unitarista precisamente por ser ele socialmente reconhecido como melhor forma de administração, indispensável à estabilidade nacional. Entretanto, a doença de D. Pedro II tornava-o, segundo o ponto de vista ruiano, ausente na gestão da coisa pública e, assim, inseria no seio da monarquia o elemento “fragilidade” que se chocava com a solidez dela esperada. Apresenta- se estrategicamente ao público um Imperador doente, fraco e que, assim, tornava-se joguete nas mãos de terceiros, somente ocupando o trono, sem, contudo, governar de fato nem defender os interesses da nação. Consequentemente, ao monarca era associada a imagem de pusilanimidade que o tornava inabilitado para o desempenho dos deveres ínsitos a seu papel. Por inspirar desconfiança em seus governados, D. Pedro II não era mais o augusto imperador. A centralização do poder político nacional no final do séc. XIX era, então, somente uma fachada. O topos em questão serve justamente para dar relevo à tensão semântica entre centralização aparente e descentralização efetiva. Assim, Rui Barbosa se manifestava:

Com profundo sentimento de piedade acompanhou esta câmara o discurso, que o ministério acaba de proferir pelos augustos lábios de Vossa Majestade; e, escutando- o com a reverência devida à vossa posição constitucional, deplora ver-se obrigada a reconhecer nesse documento a prova mais óbvia de que o espírito do chefe de Estado se ausentou do governo do país, ou de que no espírito do príncipe reinante se apagou a consciência da monarquia.113

Mas, ao menos, salvem algumas aparências! Seja sequer em homenagem ao Imperador, ainda fisicamente vivo. Se lhe tiram, nos conselhos do govêrno, o poder real, ao menos não acabem de despi-lo de tôda a autoridade moral no meio da rua.114 Do ponto de vista analítico, percebe-se que o autor, a pretexto de defender a figura do Imperador, objetiva evidenciar a situação deplorável em que este se encontrava. Por meio da ironia, figura de linguagem cuja marca é a aproximação de ideias incompatíveis por meio da

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BARBOSA, R. Resposta à fala do trono (04.05.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras

completas de Rui Barbosa. v. XVI. t. II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 245.

Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20% 281889%29\Tomo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013. 114

Idem. Ofícios de justiça (29.03.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de

Rui Barbosa. v. XVI. t. III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 49. Disponível em:

<http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20%281889%29\To mo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013.

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verbalização do sentido contrário àquele realmente intencionado115, o autor sarcasticamente ressalta esse ponto fraco da monarquia, em outras palavras, essa brecha em seu discurso. Os termos “piedade”, “augustos lábios”, “ao menos salvem”, “ainda fisicamente vivo” prestam-se a reforçar a ironia, a fim de destacar o ridículo na condição dual vivida pelo Imperado: figura augusta e impávida de nossa monarquia, mas que, concomitante e contraditoriamente, vivenciava mazela física a qual o tornava decrépito. Mais ainda, a simples menção à tentativa de ocultar-se a “verdade” quanto ao estado de saúde do Imperador, sutilmente encaixada, no segundo excerto, dentro do argumento irônico da proteção à imagem monárquica, funciona como reforço à caricatura do imperador moribundo. Isso porque, de tão ridícula, a situação deveria ser bem encoberta para a reputação de D. Pedro II não ser abalada.

Sem nenhuma piedade, porém, Rui Barbosa tenta ainda explorar o lado cômico da ironia a fim de tornar o público mais receptivo a sua argumentação. Ou seja, trabalha-se com o modo de persuasão pathos, visto que se procura controlar as emoções do auditório e, assim, conduzi-las para uma disposição de ânimo afastada da compaixão para com um homem doente e aproximada da indignação em virtude da ausência de representatividade de um monarca fraco e pusilânime.

A essa fachada de centralização era contraposta a opinião da efetiva descentralização, processada de maneira ilegítima. Alvo de zombaria, D. Pedro II não era mais capaz de centralizar o poder, o que abria espaço para duas mazelas políticas se fortalecerem em detrimento do ordenamento jurídico nacional. Por um lado, tinha-se a corrupção no sistema político-parlamentar, sobretudo, no gabinete ministerial. Por outro, a ascensão de um terceiro reinado ilegal.

Sem domínio sobre os destinos do País, D. Pedro II torna-se vítima da exploração por parte da camarilha perdulária, dos ministros e dos políticos, especialmente o chefe de Gabinete, o qual não era mais controlado fortemente por um poder moderador atuante. Assim, a majestade era anulada de modo a permitir a livre realização de operações ilícitas como demissões arbitrárias, nomeações de apadrinhados e gasto exorbitante com a manutenção de uma máquina pública ineficiente. Perceba-se, assim, que Rui Barbosa mais uma vez faz suas

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Diferentemente da lítote, figura de palavra, a ironia é figura de pensamento. Ou seja, a primeira depende do jogo estilístico com os significados dos signos empregados pelo sujeito. Já a ironia deriva seu poder persuasivo do jogo de ideias para o qual ela remete o leitor, não se fixando em uma palavra específica, mas sim na mensagem como um todo. Uma lítote pode possibilitar a construção de uma ironia como no exemplo dado por Reboul “Não, o doutor X ainda não matou todos os seus doentes.” (a declaração por meio da negação de seu contrário (“não matou”) reporta-se à ideia irônica de incompetência do médico em questão). Entretanto, isso não ocorre necessariamente. Cf.: REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 123-124 e 132-133.

interpretações e ilações particulares parecerem simples descrição neutra de fatos. Essa pretensa narração fática, porém, pode ser analiticamente contraposta a outras mensagens difundidas no nível material da retórica e, inclusive, mais estáveis. Ora, o discurso da atualização institucional, conforme analisado no capítulo segundo, relatava justamente o oposto de Rui Barbosa: supervalorizado politicamente, o monarca precisava ser contido, seu poder precisava de constrangimentos. Dessa maneira, nota-se que a argumentação de Rui Barbosa não pretendia descrever a realidade, mas sim criar uma relação de causalidade entre a corrupção imperante na política nacional e a doença do monarca. Nesse sentido:

A reação republicana contra a monarquia procede, direta e beneficamente, da reação monárquica contra as leis. [...]. Sua origem está nesse vasto reservatório de cóleras populares, que o desgoverno público enche, há cinquenta anos, solapando as instituições constitucionais pela prática habitual do abuso. A história das duas primeiras gerações de dinastia reinante resume-se num conflito contínuo entre a dominação do arbítrio protegido nas alturas do poder e a majestade do direito consagrado nos códigos escritos. Mas, depois que a incurável apatia mental do chefe do Estado entregou, sem contraste, a administração a certas influências palacianas [...], a violência desembuçou-se [...], e caminha de fronte alta por sôbre os destroços da nossa organização legal [...]116.

Quando o imperador ocupava, realmente, a chefia do Estado, sua personalidade absorvente dominava tôdas as situações, resolvia todos os problemas, amolgava todos os partidos ao interêsse do poder, que lhe pendia do gesto soberano117.

De modo que a ferrugem da ganância particular acabou por invadir tôdas as molas do govêrno, e é hoje a explicação de tôdas as coisas118.

Estabeleceu-se, então, relação de implicação direta entre a doença do Imperador e o desrespeito à lei. Do ponto de vista analítico, pode-se dizer essa forma de organização dos dois argumentos opinativos desempenhar a função estratégica de relacionar conteúdos já presentes no nível material da retórica, mas que formavam discursos autônomos. A corrupção política, tipo de violação legal praticado no governo, passa a ser reconhecida socialmente como consequência imediata da fragilidade de D. Pedro II. Cria-se uma relação de causa e efeito em prejuízo direto da monarquia.

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BARBOSA, R. O direito de reunião (14.03.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras

completas de Rui Barbosa. v. XVI. t. I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 65.

Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20% 281889%29\Tomo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013. 117

Idem. Instituições e príncipes (30.04.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras completas

de Rui Barbosa. v. XVI. t. II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 208. Disponível em:

<http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20%281889%29\To mo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013.

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Idem. Ofícios de justiça (29.03.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de

Rui Barbosa. v. XVI. t. III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 50. Disponível em:

<http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20%281889%29\To mo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013.

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Além disso, a busca irrefreável por obter o máximo de proveito próprio com a situação de ausência de fiscalização imperial, retirava a capacidade de autoavaliação do governo. Rui Barbosa argumentava, então, que a crise do sistema político nacional e as demandas da sociedade, ansiosa por mudanças, eram desconsideradas pelo grupo controlador do poder, o qual, pior, tentava as encobrir, apresentando ao Imperador, já sem capacidade de discernimento, e à sociedade uma aparência de legalidade. A essa imagem de inepta autoconfiança eram associados todos os males sociais causados pela trágica administração volta apenas para os interesses particulares dos governantes. Consequentemente, para a Coroa passam a convergir “naturalmente” todas as críticas formuladas contra quaisquer falhas presentes na administração pública e no parlamento. Isso, sem que se precisasse reiterar permanentemente o topos do poder central descentralizado. Sua força permanecia como premissa latente em outros raciocínios. Assim, quer narrasse os problemas de abastecimento d’água no Rio de Janeiro, de saneamento e de saúde pública, quer denunciasse a suposta demora na aprovação de leis consideradas fundamentais para o progresso nacional, quer questionasse os motivos dos gastos públicos, Rui Barbosa concluía que o excesso de confiança na estabilidade do Império provocava má gestão e a ausência de políticas públicas continuadas, uma vez que não mais havia cobrança nem qualquer obrigação de prestação de contas. A falha do monarca, então, em reconhecer sua própria incapacidade física gerava a fragmentação do poder central em vários polos de corrupção e de poder arbitrário. Esse suposto simulacro de Estado de Direito, porém, seria denunciado pelo “trabalho comprometido” do Diário de Notícias, veja-se:

Por nossa parte, ao menos, teremos cumprido, através de tôdas as dificuldades, o nosso dever, procurando mostrar aos nossos concidadãos que, no governo do país, não há segredos para o povo. Os que de outro modo procedem, estão preparando à república a mais irrefragável das justificações; porque, se a monarquia se põe fora da lei, abdicando positivamente nas mãos de uma camarilha clandestina, ficará claro que o movimento republicano constitui uma aspiração de legalidade contra a revolução de galões brancos.119

Aqueles que procuram estudar na vida das nações, as leis que lhes regem o progresso, têm ocasião para observar analogias tão notáveis, [...], que facilmente incutem no espírito investigador a precisão, a quase certeza da iminência de fenômenos consideráveis, uma vez dados os mesmo sinais prenunciadores. No momento atual esse estudo comparativo mostra o Brasil em uma fase, na qual as resultantes de muitas fôrças acumuladas no curso de longos anos tendem a encontrar-se em direções diferentes, neutralizando-se algumas, e adicionando-se outras, de modo a produzir o grande abalo [....]. Um ano, ou dez ainda, o dia da luta aproxima-se com a passagem para o terceiro reinado. [...]. Mostremos, portanto, com

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BARBOSA, R. A moléstia do imperador (30.03.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras

completas de Rui Barbosa. v. XVI. t. III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 163.

Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20% 281889%29\Tomo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013.

verdade e clareza, o modo por que pèrfidamente se solapam instituições das mais essenciais à vida nacional, no afã de perverter caracteres, para saciar condenáveis ambições120.

Percebe-se que Rui Barbosa adota aqui mais uma vez a estratégia de colocar seu discurso numa posição de aconselhamento ao trono com vistas à promoção do bem da nação e à busca da verdade. Esse posicionamento das próprias opiniões na zona de conforto retórico da admoestação, associado ao argumento da inépcia governamental, desempenhou o papel persuasivo de “prova” da má intenção monárquica. Uma vez avisada da necessidade de revisão de suas atitudes e princípios e informada, com riqueza de detalhes, dos casos específicos de corrupção e má-gestão pública, a Coroa mantinha o mesmo grupo político corrupto na chefia de Gabinete, nos ministérios e no Conselho imperial por pura vontade de persistir no erro. Assim, Rui Barbosa promoveu a divulgação na retórica material de relatos, por ele mesmo criados, quanto ao esmero da monarquia brasileira em ser tortuosa e violadora da lei, em destruir as instituições nacionais.

Afora a corrupção, a afirmada fragilidade física e mental do Imperador também dava azo ao surgimento do terceiro reinado de fato, nascido na ilegalidade. O que deveria ser representação temporária do Imperador por sua filha, a princesa Isabel, tornara-se, ante a efetiva incapacidade do monarca, uma entronização ilegítima, visto não respeitar os pressupostos e princípios constitucionais referentes à sucessão monárquica. Rui Barbosa vai além e deixa transparecer em sua argumentação dois preconceitos. O clichê machista da subordinação feminina e o receio infundado quanto ao estrangeiro, Conde D’Eu, príncipe consorte. Quanto ao machismo, Rui Barbosa posicionava-se, ainda que não direta e enfaticamente, conta a sucessão do trono para mãos femininas, mesmo que ela ocorresse conforme as determinações constitucionais. Seus argumentos principais eram a fragilidade ínsita à delicadeza feminina e a necessária subordinação de uma mulher a seu marido. Essas duas características do ser “mulher” eram estavelmente compartilhadas no senso comum brasileiro, numa sociedade de homens e para homens. Isso fazia com que a argumentação do autor, voltada para a afirmação de que a princesa Isabel terminaria manobrada por seu marido, fosse reconhecida como verossímil de forma a dispensar qualquer demonstração dos seus fundamentos. A simples enunciação da mensagem já a fazia digna de crença.

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BARBOSA, R. Assuntos militares: expedição ao Mato Grosso I (10.10.1889). In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Obras Completas de Rui Barbosa. v. XVI. t. VII. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 89-90. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=ObrasRuiMP& pasta=Vol.%20XVI%20%281889%29\Tomo%20I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2013.

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Cumulada a essa linha de raciocínio, foi estabelecida outra, a qual direcionava a opinião pública contra a ideia de o governo brasileiro passar a ser de fato controlado por um não brasileiro. Assim, sem criticar o príncipe consorte por outras razões que não sua aproximação com o comando militar nacional, Rui Barbosa acusa-o permanentemente de arvorar-se imperador, quando na verdade era um subalterno, na medida em que o poder legítimo passaria, conforme as leis internas, somente para sua esposa, herdeira do trono. O autor ressuscita no imaginário nacional o medo de um governo estrangeiro dentro de terras nacionais. O objetivo ruiano aqui era fazer predominar no nível material relatos sobre o imperador, ainda vivo, ser cotidianamente deposto ante a atuação governamental efetiva de sua herdeira e, sobretudo, diante do suposto agigantamento do príncipe consorte. Veja-se:

Só um pacto reservado com os herdeiros do trono explica razoàvelmente a imutabilidade provocadora de uma política, que, quanto mais desacreditada, quanto mais ulcerada, quanto mais aborrecida, tanto mais confiada se mostra em sua duração; de uma política que parece fortalecer-se na gravidade mesma das duas culpas, crescendo na confiança imperial, à medida que desce no desprêzo da nação. [...]. O público observa desconfiado a inversão, que se entrevê, a troca de papéis constitucionais, que se rastreia entre a herdeira presuntiva da coroa e o príncipe que a desposou. A natureza fá-lo chefe do casal; mas a constituição não o admite a chefe de Estado; e, no dia em que a fraqueza da mulher e os interesses do paço se confundirem, no príncipe consorte, funções como essas, que a índole das nossas instituições insuperavelmente distingue, a mal esclarecida ambição receberá, na ruína de seus planos, uma lição, de que não sabemos como se poderia salvar a monarquia brasileira. [...] É como se a abdicação lhe pusesse a coroa na cabeça, como se o Orleans fosse o descendente de nossa dinastia constitucional, e a sereníssima princesa um disco lunar gravitante em torno do esposo. Êsse aniquilamento da coroa na pessoa do seu marido, essa preeminência da casa estrangeira sôbre a dinastia nacional colocará o príncipe consorte numa situação