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O DISCURSO DA ATUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL A QUEDA DA BARREIRA RETÓRICA E A CRIAÇÃO DE AMBIENTE ABERTO À DISCUSSÃO

DISCURSIVA PARA A QUAL SE VOLTARÃO AS ESTRATÉGIAS DE RUI BARBOSA

3.3 O DISCURSO DA ATUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL A QUEDA DA BARREIRA RETÓRICA E A CRIAÇÃO DE AMBIENTE ABERTO À DISCUSSÃO

A valorização interna de teorias estrangeiras desencadeia um processo de questionamento das instituições nacionais políticas e jurídicas. Na medida em que a estrutura nacional destoava do modelo internacional descrito nas obras de teóricos ingleses, franceses, alemães e norte-americanos, ela era posta em dúvida. Entretanto, o desagrado com o sistema político-jurídico não foi fenômeno simples ou produto tão somente do “natural” transcurso da história. Ele foi gestado no interior do discurso do progresso, mas, diante de sua relevância, em especial para a elite ávida por controlar ainda mais os destinos do governo, tornou-se dele independente. O discurso da atualização institucional foi engendrado e envolveu vários conteúdos em seu bojo, tomando duas direções argumentativas opostas.

Por um lado, a própria monarquia utilizou-se desse discurso para justificar a mudança de algumas regras já consagradas no jogo político com as elites. D. Pedro II, avaliando o risco da ocorrência de revoluções burguesas e levantes de escravos, até mesmo pelos exemplos externos que se tornavam aqui conhecidos, percebe a necessidade de alterar alguns pontos da engrenagem política para a máquina governamental permanecer em funcionamento e manter sua estrutura centralizada. Era a reforma, sem mudanças efetivas sim, mas que de toda forma precisava de uma justificativa para concretizar-se. O discurso da atualização institucional desempenhava essa função retórica legitimadora.

Por outro lado, a elite também se valeu desse discurso, mas com outros objetivos. Conforme se verá adiante, as reformas efetivadas pelo imperador geraram uma crise na complementaridade existente entre o Estado e as camadas dominantes. Essa fratura no pacto político suscita a perda do apoio dado ao governo central. A monarquia passa a ser o alvo do discurso da atualização institucional, de maneira que o debate em torno da estruturação do Estado começa a integrar a retórica material nacional. Cai a barreira retórica à metodologia ruiana e, por conseguinte, Rui Barbosa obtém o auditório necessário para a aplicação de suas estratégias persuasivas. A noção de revisão do sistema político-jurídico nacional criou, assim, um público ouvinte realmente disposto a tomar parte na discussão e a repensar os modelos nacionais. O direcionamento da discussão no que concerne ao conteúdo, será, futuramente, determinado por Rui Barbosa com sua metodologia.

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Antes, porém, de analisar mais detidamente cada um desses dois rumos apontados pelo discurso da atualização institucional, cumpre investigar a razão de ter ele se descolado da noção de progresso. Por que as questões jurídico-políticas basilares, ou seja, constitucionais, agigantaram-se a ponto de forjarem um discurso próprio e, por meio dele, construírem novas demandas e verdades sociais?

Esse fenômeno pode ser compreendido quando se compara a sociedade brasileira do final do séc. XIX com a Europa ocidental da virada do séc. XVIII para o XIX. Em outras palavras, o crescimento de importância do direito enquanto centro de gravitação das questões políticas pode ser percebido como o resultado do processo de inserção do Brasil no contexto do positivismo jurídico e de Estado liberal burguês.

Conforme analisado no subitem anterior, a acumulação de capital e o desenvolvimento econômico inseriram complexidade na sociedade brasileira. A maior variedade de opções comportamentais, de classes sociais, de tipos de elite econômica, que não somente a ligada ao latifúndio monocultor, de fontes de informação e de profissões fizeram com que os interesses sociais se diversificassem e se multiplicassem. Esses diversos pontos de vista, porém, deveriam conviver no mesmo âmbito comunicacional, isto é, a “realidade social”, a arena discursiva da comunidade brasileira precisava abarcar essa variedade de opiniões que lutavam por espaço. A complexidade impedia, então, que o pacto fundado na política de congraçamento entre as elites, legitimador do poder pessoal e hereditário do monarca, prosseguisse em funcionamento bem sucedido. Ora, dentro da própria camada dominante a heterogeneidade de interesses, a divergência de opiniões mostrava-se insustentável, incapaz de ser encoberta. O consenso torna-se difícil de ser produzido e, sobretudo, mais instável, momentâneo. Era preciso substituir a base de legitimação da decisão política a fim de restaurar-se a estabilidade do sistema de dominação governamental. É dentro desse contexto de complexidade moderna que cresce o papel do direito no Estado brasileiro. Associado aos ideais de racionalidade e de segurança, o positivismo jurídico confere ao sistema político uma base de legitimação neutra, objetiva e, sobretudo, previsível. Na medida em que despersonaliza a decisão, apresentando-a como produto da técnica e procedimentos lógicos, o direito a torna aparentemente alheia a interesses particulares. Assim, as investigações quanto à justificação de determinados conteúdos perdem o sentido e cedem lugar para o problema metodológico. O valor é transformado em forma, válida em qualquer contexto, justamente por ser abstrata. Essa abstração é o filtro pelo qual o direito interage com os casos concretos, de modo a permitir a produção autônoma, autorreferente de seu repertório e a excluir as questões

juridicamente irrelevantes. Enfim, a justificação do poder com base no direito permite a coordenação, via procedimentalização e formalização, entre a disponibilidade de conteúdos éticos, elemento ínsito à sociedade burguesa complexa, e a necessidade de emitir juízos para direcionamento das condutas humanas. A suposta racionalidade jurídica escamoteia o arbítrio e, assim, faz crível a argumentação nela embasada84.

Dessa maneira, o direito adquire maior relevância nas sociedades modernas justamente por ser o mínimo ético comum, produzido de maneira neutra, segundo um procedimento previamente fixado, que permite a convivência harmônica dentro da diversidade de opiniões. O Brasil, apesar de não ter vivenciado o processo lento de revolução burguesa e de construção do Estado moderno, tornava-se efetivamente complexo. A coroa, ao perceber o rearranjo das demandas sociais, enxerga no direito o melhor caminho para calibrar as tensões existentes, sem que para tanto fosse necessário derrubar o ordenamento jurídico posto, ou seja, a estrutura unitária imperial. Já a elite insatisfeita utiliza as formas e conceitos jurídicos gerais como molde para aferir a adequação das instituições nacionais e, assim, abrir espaço argumentativo para opiniões questionadoras da “ordem” posta. A crítica embasada no direito trazia, ainda, a vantagem de permitir à classe dominante alterar as regras do jogo político sem ser necessário dar espaço para o desenvolvimento de forças populares. Tudo seria processado no plano abstrato e controlável das formas. O artifício formal, então, poderia ser utilizado estrategicamente por qualquer um dos lados da disputa política do final do séc. XIX. Ele promoveria mudanças sem que se precisasse mexer nas bases sociais de sustentação do País, quais sejam, desigualdade e exploração, o que agradava tanto os interesses monárquicos, quanto os elitistas. Além disso, o argumento formalista detinha grande força persuasiva no nível material da retórica. Isso porque ele, elemento do positivismo jurídico, era um dos símbolos da modernidade “civilizadora”, valorizada internamente.

A razão para a independência do discurso da alteração institucional fica, então, esclarecida. Apesar de coordenado com o discurso do progresso e, de certa forma, dele oriundo, o problema da revisão das instituições políticas e jurídicas nacionais atinge um nível de relevância tal que demanda um debate próprio, um discurso autônomo. Era preciso

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ADEODATO, J. M. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 79-119 e 253-275; CORTEN, O. La persistance de l’argument légaliste: éléments pour une typologie contemporaine des registres de légitimité dans une société libérale. In: Droit et société, Paris, 50, 2002. p. 185-203; ENGISCH, K. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. de J. Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965. p. 92-122; FERRAZ JR. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 173-195; SALDANHA, N. Da teologia à metodologia: secularização e crise do pensamento jurídico. 2. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2005. p. 57-94; WIEACKER, F. História do direito privado moderno. Trad. de A. M. Botelho Hespanha. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 397-429.

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construir uma argumentação capaz de criar na retórica da nacionalidade a crença na importância das normas, no poder atualizador de suas operações lógicas e, sobretudo, no “essencial” papel ordenador social do direito. Isso para que o trato da crise política se processasse dentro do sistema jurídico e, assim, fosse percebido como algo ordinário, como produto do “fluxo natural” da sociedade brasileira rumo à atualização jurídica, e não como estratégia elitista de dominação.

Dentro da esfera do poder central, a expressão “atualização institucional” assumiu o sentido de necessária realização de alterações legislativas. O imperador estimulou a aprovação parlamentar de duas reformas centrais: a eleitoral e a de libertação do elemento servil. Ambas foram promovidas de maneira progressiva, por meio da interferência direta do monarca via sucessivas alterações de gabinetes, de modo a colocar no poder o grupo político comprometido com a promoção das modificações legais desejadas pela coroa.

A primeira reforma se deu no ano de 1856, ainda no período de conciliação entre os partidos, sob direção do Marques de Paraná. O objetivo principal era ampliar a participação das minorias partidárias na Câmara dos Deputados. Estabelecida a vitória dos conservadores e iniciada a fase de congraçamento, precisava-se conferir ao partido liberal um mínimo de representação política no Parlamento, para que as transações partidárias perdurassem sem fraturas. Ou seja, caso o domínio conservador se tornasse desproporcional, a insatisfação liberal traria como inevitável consequência o rompimento do pacto político e, por conseguinte, a desordem tão combatida nesse momento inicial do segundo reinado. Era preciso, conforme já analisado, fingir a existência de espaço político garantido a todo partido, e não somente ao conservador. Assim, positivou-se a lei eleitoral que estabelecia a votação por círculos ou distritos eleitorais, de forma que o voto distrital permitia a eleição de membros das facções provinciais. A bancada de cada partido, então, passava a ser composta não somente pelos já conhecidos chefes nacionais. Tentava-se também abrir o parlamento para as elites econômicas locais, que ansiavam ser também lideranças políticas.

A outra reforma eleitoral relevante do segundo reinado foi a promulgação da lei do voto direto, de 1881. Por meio dessa norma, eliminou-se a eleição em dois turnos, de modo que o cidadão ativo escolhia diretamente seus representantes na Câmara. No mesmo sentido da reforma anterior, a Lei Saraiva, como ficou conhecida, buscava permitir maior diversidade e autenticidade na seleção dos integrantes do corpo político. Ou seja, a coroa tentava aplacar os ânimos do grupo insatisfeito com a pouca representação política das opiniões da elite. A estratégia escolhida para tanto foi interferir diretamente na linguagem de comando jurídica a

fim de se comunicar no nível material da retórica o comprometimento do império brasileiro com a construção de um sistema político mais plural.

Ao mesmo tempo, com vistas a evitar que a eliminação de um turno significasse a conferência de maior força ao voto das classes baixas, o conceito legal de cidadania foi revisto. O argumento da necessidade de minorar a corrupção eleitoral, provocada pela grande quantidade de eleitores e pela facilidade de manipulação da massa ignorante, serviu como justificativa para a instituição de dois requisitos para o exercício do direito de voto. O sufrágio qualificado impedia analfabetos e pessoas com renda líquida anula inferior a duzentos mil réis, por bem de raiz, indústria, comércio ou emprego, de participar do debate em torno da construção do novo governo.

As alterações na participação partidária, porém, refletiram diretamente sobre as regras do jogo de congraçamento. Com o espaço aberto no Parlamento para as minorias partidárias, elas puderam ascender no cenário político. Por um lado, tornaram-se menos dependentes do governo central e de sua atuação harmonizadora e garantidora do equilíbrio entre partidos. Por outro lado, a conciliação foi posta em cheque. Isso porque, ainda que permanecessem minoria, os partidos liberal e, posteriormente, republicano faziam-se mais presente na Câmara e, assim, adquiriam paulatinamente mais força enquanto oposição. Ou seja, apesar de não conseguirem efetivamente aprovar seus projetos, visto que não obtinham maioria nas votações, esses grupos puderam, por meio da representação cada vez mais volumosa, divulgar suas opiniões no principal nicho de produção da linguagem de comando jurídico-política. As ações políticas conservadoras eram embaraçadas, na medida em que o dissenso parlamentar fazia-se frequente. Em suma, as reformas eleitorais promovidas pela monarquia como estratégia para manutenção de sua legitimidade acabaram por gerar a fragilização da maioria conservadora, principal pilar de apoio do poder central.

Assim, a estratégia para criação de uma imagem de administração comprometida com os ditames da modernidade e para impedimento da ruptura na política do congraçamento, que mantinha a força do trono, acarretou o acirramento das disputas partidárias e, principalmente, o questionamento da estrutura jurídico-política posta. Os liberais tornaram-se oposição mais numerosa e valente, que não se satisfazia com o segundo lugar na competição pelo poder e, assim, criticava mais acidamente a ingerência do monarca na esfera do Poder Legislativo. O antigo procedimento simples para a tomada de decisões foi posto em xeque diante da ausência de consenso. O imperador precisaria agora fundamentar melhor suas opções, de modo a aparentar neutralidade na atuação enquanto Poder Moderador. A patrulha dos luzias, nome

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pelo qual era conhecido o grupo liberal, voltava-se contra o Imperador, justamente porque ele assumiu para si o dever de calibrador do sistema. O lugar comum “atualização institucional” começa a apresentar outro viés significativo, aproximando-se da noção de revisão do pacto político como um todo, e não somente de algumas normas pontuais. A monárquica passa a não ser vista como instituição atual.

Na tentativa de responder a essas novas demandas existentes na arena de debates nacional, D. Pedro II utilizou seu poder pessoal de maneira ainda mais frequente. O imperador derrubava sucessivamente diversos gabinetes sempre que a pressão sobre si fosse insustentável. Alternar periodicamente os partidos a frente do governo era a última estratégia da monarquia para tentar pacificá-los e, assim, garantir o poder central. Tentava-se resgatar o passado de anulação das disputas partidárias, uma vez que a força do monarca advinha da fragilidade dos partidos. Entretanto, mais uma vez as estratégias empregadas para sanar os problemas governativos voltaram-se contra a própria coroa. A constante modificação dos gabinetes, que em média não duravam mais do que um ano e meio, alguns, inclusive, duraram apenas poucos dias, impedia a continuidade das políticas traçadas pela própria monarquia. O governo aparentava, então, fraqueza, uma vez que, a despeito de determinar a formação dos gabinetes, não conseguia efetivar seus projetos. Essa aparência de fragilidade favorecia a plausibilidade de relatos sobre o anacronismo da monarquia brasileira: a elite percebe a oportunidade de explorar o discurso da atualização institucional contra a monarquia. Críticas ao governo monárquico eram difundidas na linguagem comum com a finalidade de mudar a percepção da sociedade quanto à legitimidade do sistema político. Parecer fraco e ser fraco eram os dois lados da mesma moeda.

Com o passar dos anos o agravamento da crise política, a instabilidade e a falta de continuidade gerada pela troca de gabinetes incomodou também os conservadores. Por durarem em média o dobro do tempo dos gabinetes liberais85 e por serem historicamente o grupo de sustentação do Império, os saquaremas assumiram a responsabilidade de aprovar as principais alterações legislativas liberais do segundo reinado. As leis da abolição do tráfico negreiro, do ventre livre, da abolição da escravidão e de terras foram todas produto do trabalho de chefias parlamentares conservadoras. Essa situação, então, gerou divisões internas no partido. Uma parte do grupo não aceitava aprovar projetos que historicamente foram repudiados pelos conservadores e, pior, chocavam-se com os interesses dos latifundiários

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CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 210.

exportadores, principal base social do partido. Outra parte, os “moderados”, via a aprovação desses projetos como instrumento para manutenção do poder, uma vez que se realizava a vontade do imperador e, assim, atraia-se a confiança de quem determinava os rumos da vida política nacional. A unidade partidária foi comprometida de forma a criar novo grupo de oposição governamental, o que representa, sob o ponto de vista analítico, o surgimento de mais uma fonte de relatos antimonárquicos a inundar a linguagem comum de então e, assim, a desestabilizar a retórica imperial.

Por outro lado, os liberais também desunem-se. A dissidência formou-se justamente em virtude da positivação, pelos conservadores, das tradicionais plataformas políticas do partido. Parte dos liberais uniu-se aos conservadores moderados e adquiriu tendências conciliatórias. Era a Liga Progressista. Já os liberais históricos permaneciam na oposição tanto ao poder pessoal do monarca quanto aos saquaremas. Assim, a formação de dissidências tornou-se comum a partir de meados do séc. XIX no Brasil e indicou o estado crônico da crise política nacional. O discurso da ordem, ainda consagrado na retórica da nacionalidade, adapta-se e passa a situar a “ameaça desordeira” no trono. A ruptura da ordem era promovida pelo próprio imperador, que não somente fomentou, por meio das alterações legislativas, a disputa partidária, fonte de instabilidade, como também impediu, pela via da reiterada alternância de gabinetes, a continuidade política no Brasil.

O marco temporal proposto pela historiografia tradicional como símbolo da insustentabilidade do pacto político legitimador do Império é o ano de 186886. Nele D. Pedro II substitui precipitadamente o gabinete liberal de Zacarias de Góis pelo conservador do Visconde de Itaboraí e, assim, condena os liberais a um ostracismo de dez anos. As razões que justificaram a substituição, porém, não têm tanta relevância para a presente pesquisa. O que se deseja ressaltar é a proximidade cronológica entre a aprovação da primeira reforma eleitoral, de 1856, e o ápice da crise política por ela fomentada. A tentativa imperial de promover reformas modernizadoras das instituições nacionais enfraqueceu a coroa e, em seu desfavor, gerou o aproveitamento do discurso reformador pela elite insatisfeita.

Antes de ser utilizado contra D. Pedro II, o discurso da atualização institucional serviu ainda de justificativa retórica para a aprovação das leis referentes à progressiva extinção da escravidão. Esse lento processo abolicionista, que se estendeu por mais de 60 anos, provocou

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HOLANDA, S. B. de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico, do Império à República. t. II. v. 5. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 7.

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ainda mais dissidências internas, especialmente no grupo conservador. A abolição cindiu de vez os interesses do polo burocrático e do econômico.

A abordagem institucional dessa questão iniciou-se em 1826. Nesse ano o Brasil assinou tratado internacional com a Inglaterra por meio do qual reconhece o tráfico internacional de escravos como pirataria. O recém formado Estado assume esse compromisso tendo em vista somente o apoio inglês ao reconhecimento da independência. Não havia efetivo interesse governamental em acabar com o trabalho escravo, alicerce da lavoura cafeeira nacional. Assim, durante todo o primeiro reinado e no início do segundo não houve ação estatal voltada à repressão do tráfico ou qualquer postura oficial que estimulasse a adoção do trabalho livre assalariado como forma de mão de obra. Nos anos que se seguiram ao tratado, porém, a pressão inglesa sobre o governo brasileiro aumentou consideravelmente. Em nome dos interesses comerciais a coroa fez aprovar, então, a lei de proibição do tráfico negreiro, em 1850. Entretanto, mesmo após o início da vigência dessa norma a postura imperial sempre foi favorável aos interesses dos grandes proprietários rurais, de maneira que não havia grandes impasses entre o Estado e a elite econômica.

Vinte anos mais tarde, a situação alterar-se-ia. Em 1871 foi promulgada a lei do ventre livre por iniciativa e pressão de D. Pedro II. Já estabilizada a produção em massa da lavoura cafeeira e garantido seu sucesso financeiro, as preocupações imperiais voltaram-se para a onda de revoltas escravas ocorridas no exterior, sobretudo, na própria América. Havia receio de que o exemplo internacional influenciasse os escravos, o que levaria à desestabilização