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O DISCURSO DO PROGRESSO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX UMA FISSURA RETÓRICA NOS ALICERCES

DISCURSIVA PARA A QUAL SE VOLTARÃO AS ESTRATÉGIAS DE RUI BARBOSA

3.2 O DISCURSO DO PROGRESSO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX UMA FISSURA RETÓRICA NOS ALICERCES

DA BARREIRA

A organização do Estado brasileiro em torno do discurso da ordem traria também como um de seus frutos principais a criação de ambiente favorável ao desenvolvimento capitalista num país ainda não inserido no contexto de modernidade europeia. O Brasil dependeu do Estado, enquanto mantenedor da estrutura social desigual e harmonizador dos interesses das camadas dominantes, para tornar possível o processo de acumulação de capital e de desenvolvimento material baseado no lucro, produto da racionalização da produção. Essa dependência do aparato burocrático estatal, regulador da vida social, é o elemento central que caracteriza a umbilical correlação entre o discurso da ordem e o do progresso. O progresso pressupunha a ordem.

Ao herdar de Portugal um contexto político-econômico de revolução burguesa não somente retardada, mas, sobretudo, interrompida pelo braço forte do Estado absoluto e parasitário, o Brasil foi construído sobre as bases da simbiose entre burocracia e elite econômica. O Estado dependia do dinheiro oriundo da agricultura de exportação, principal fonte de rendas públicas, e também do apoio político das elites locais, uma vez que a

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administração brasileira era incapaz de estender sua estrutura até zonas distantes da corte. Somente com o amparo das camadas economicamente dominantes podia o Estado brasileiro manter seu poder centralizador e fechar seus orçamentos. Por outro lado, a classe economicamente dominante dependia do Estado, primeiramente, para que fosse garantida a estrutura social de exploração do trabalho escravo e de concentração de terras. Além disso, a burocracia estatal apresentava-se como fonte de empregos para os enjeitados do latifúndio escravista: tanto os filhos dos donos de terra, que se formavam bacharéis e não assumiam os rumos dos negócios familiares; quanto os oriundos de classes menos abastadas que, por meio da formação superior, atingiam o status de elite intelectual e, assim, assimilavam os valores da elite econômica. Dependentes do Estado enquanto fonte de renda, esses funcionários públicos, sobretudo os que também integravam o Parlamento, não agiam contra os interesses estatais, por medo de perderem seus empregos. Consequentemente, o governo garantia o consenso na tomada de decisões, cujos resultados refletiam, por sua vez, os interesses dos grupos dominantes. Completava-se o ciclo simbiótico entre burocracia e elite75.

Estabilizado o aparato burocrático, por meio do discurso da ordem e, assim, garantida a estreiteza de relações entre o Estado e as camadas dominantes, sem que houvesse o desvio de riquezas para uma metrópole colonizadora, o Brasil imperial conseguiu criar espaço para seu avanço material. O desenvolvimento, ainda que incipiente, do mercado interno, da industrialização e das cidades e a diversificação das classes sociais introduzem na linguagem comum do Brasil independente, sobretudo a partir da segunda metade do séc. XIX, o discurso do progresso. Comunicava-se a importância de modernizar o País, com vistas a torná-lo “civilizado”, ou seja, aproximado ao modelo europeu de sociedade que progrediu com base no capital. Sem precisar o conteúdo exato da expressão “progresso”, a defesa da modernização tentava incutir na sociedade a necessidade de realizar-se no Brasil, no menor espaço de tempo possível, um processo que, na Europa, levara séculos para se completar, mesmo que para tanto fosse necessário excluir diversos setores sociais do saldo de bônus trazidos pelo “progresso”, mas incluí-los na conta dos ônus.

O discurso do progresso desempenhava, então, em reforço à noção de ordem, o papel de justificar a construção de um Estado economicamente desigual. Ele comunicava o objetivo ufanista de tornar o Brasil “grande”, líder na América do Sul e, principalmente, a necessária vantagem de aproximar o País cultural e tecnologicamente do “ocidente desenvolvido”. A

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CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 13-22, 25-44, 113-116, 229-236 e passim.

difusão desses relatos facilitou a unificação da sociedade brasileira, que agora tinha uma meta comum a todos os estratos sociais, e, por isso, serviu como sustentáculo retórico para a legitimação do Império76. Isso, ao menos nas primeiras décadas do segundo reinado. A partir da segunda metade do séc. XIX a situação se volta em desfavor da monarquia e o próprio discurso do progresso abre brechas para críticas ao sistema centralizador. Inicie-se, porém, pelos avanços materiais ocorridos no Brasil do séc. XIX.

A peça central da riqueza brasileira durante o Império foi o café. A cafeicultura iniciou-se na virada do séc. XVIII para o XIX, num redirecionamento da economia nacional para a monocultura exportadora após o período de crescimento da mineração. Com temperaturas mais amenas e chuvas regulares, necessárias para o adequado crescimento da lavoura, a região do Vale do Paraíba destacou-se como centro produtor. Entretanto, não somente em virtude do clima a região era privilegiada. Geograficamente próxima da zona de mineração, a lavoura cafeeira do Sudeste atraiu o que sobrou da mão de obra e do capital oriundos do ciclo do ouro. A cafeicultura era excelente investimento, uma vez que dispensava as exigências de grande infraestrutura interna das fazendas, típicas de outras culturas como a cana-de-açúcar, o que minimizava o aporte inicial de capital e prometia altos lucros, diante da grande demanda internacional e dos baixos custos com a produção. A região do Paraíba era ainda favorecida pelo fato de suas terras serem virgens, portanto, ainda muito férteis e, sobretudo, pelo sistema de escoamento da produção herdado do período minerador. Durante o séc. XVIII foram construídas vias que cruzavam o Vale do Paraíba tanto no sentido norte-sul, quanto no leste-oeste, além de criar-se um complexo sistema de transporte de mulas eficaz para os padrões da época.

Dessa maneira, plenamente adequado ao Sudeste brasileiro, o café começou a ser produzido em larga escala. A meta central era atender ao crescimento da demanda internacional e tomar a fatia de mercado ocupada pelas colônias francesas nas Antilhas e por Cuba. Já consagrado no gosto do mercado do hemisfério norte, o café era produto de luxo e, portanto, consumido de maneira restrita em determinados nichos sociais, como reflexo mesmo de uma produção agrícola inelástica, desenvolvida, sobretudo, na América Central. A massificação do consumo do café passa necessariamente pela inserção do Sudeste brasileiro na rota produtora. A partir da década de 30 do séc. XIX a produção brasileira despontava como líder mundial e, mais do que isso, sua produtividade era elástica o suficiente para

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CARVALHO, J. M. de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 39-48.

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atender à demanda ascendente. Esse domínio de mercado pela cafeicultura brasileira deveu-se principalmente a dois fatores. Primeiramente, a ocorrência de revoluções escravas nos países que concorriam diretamente com o Brasil, por exemplo, o Haiti, levou à desorganização de suas produções e, pois, à queda na produtividade. Por outro lado, a manutenção da escravidão no País, mesmo com toda a pressão internacional, reduziu os custos dos cafeicultores nacionais, que puderam oferecer as sacas de café com preços mais baixos. Estado e elite uniram-se para que os gastos com a produção fossem reduzidos ao mínimo indispensável enquanto a produtividade, ampliada ao máximo. Os cafeicultores contavam com a força do poder central para reprimir qualquer início de levante de escravos e, principalmente, com a leniência da burocracia estatal, que fez vistas grossas ao desrespeito dos tratados internacionais e conseguiu adiar por quase meio século a completa abolição77.

Percebe-se, portanto, que o problema vivenciado pela sociedade brasileira de então era encontrar uma saída para o crescimento econômico dentro de uma economia caracterizada pela baixa diferenciação e pela permanente dependência de um produto que despontasse na balança comercial externa e, assim, gerasse riqueza internamente. A solução situacionalmente encontrada para substituir o centro econômico foi impulsionar a cafeicultura. Consequentemente, a linguagem de comando político-econômica reforçava a dependência da mão de obra não remunerada enquanto caminho para manutenção da competitividade do café brasileiro no mercado externo. Era preciso, porém, justificar a opinião escravista, de forma que a retórica material brasileira não a questionasse. Ora, a busca pela europeização, estimulada pela própria noção de progresso, trazia para dentro da arena de debates nacional relatos quanto à moderna insustentabilidade do modo de produção escravista, tanto do ponto de vista econômico, quanto do jurídico-humanitário. Essas mensagens não poderiam, porém, ser filtradas pela linguagem comum. Sua força persuasiva deveria ser encoberta por uma mensagem mais impactante, mais atraente. A elite reinterpretou, então, a noção de desenvolvimento, ressaltando somente o lado econômico. O Brasil precisava primeiramente ser rico igual à Europa para, somente então, assimilar o elevado padrão sócio-cultural europeu. O ufanismo em busca da riqueza gerava a esperança de crescimento em conjunto

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MARQUESE, R.; TOMICH, D. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, K.; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil imperial: 1831-1870. v. 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009. p. 339-383; MATTOS, I. R. de. O gigante e o espelho. Ibidem. p. 15-51; HOLANDA, S. B. de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico, declínio e queda do Império. t. II. v. 4. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971. p. 85-102; CARVALHO, J. M. de. Teatro de

para benefício de toda a nação. Esse era o véu retórico utilizado pela elite para encobrir a associação simbólica entre “barbárie” e escravidão e, assim, justificar a permanência desta.

Difundida essa argumentação, harmonizada ao discurso da ordem no sentido de evitar a necessária desestabilização provocada por eventual revolta escrava, produziu-se a crença, aceita até pelos mais liberais, na escravidão como um mal sim, mas necessário. A nação não poderia abrir mão dos lucros trazidos pela cafeicultura e, portanto, a escravidão deveria ser superada paulatinamente, de maneira a evitar bruscas fraturas sociais. A retórica da nacionalidade, comandada pelo discurso do progresso, comunicava o processo de enriquecimento da nação, proporcionado pela produção em massa da região cafeeira, o qual teoricamente aproximaria o Brasil dos símbolos capitalistas da modernidade liberal europeia do séc. XIX. Tal processo não deveria ser interrompido. Era preciso, então, manter a estrutura do Estado da maneira que estava. Não havia, portanto, espaço para questionamentos acerca do modelo escolhido. O “progresso”, em princípio, legitimava a escolha centralizadora, a ele diretamente associada.

Além de escravos, a lavoura cafeeira precisava de maquinário para beneficiamento da produção e de ferrovias para o escoamento desta. Inicia-se um processo de inovação tecnológica nacional, com o reaproveitamento das máquinas oriundas da revolução industrial inglesa e a construção de diversas estradas de ferro. Estado e elite se unem mais uma vez em torno da “modernização”: a fazenda adquire ares de fábrica empresarialmente organizada e algumas cidades, sobretudo as mais integradas à rota cafeeira, como Rio de Janeiro e São Paulo, experimentam avanço urbanizador. Transformar as cidades em grandes urbes, conforme os padrões de desenvolvimento técnico de então, significava fazer triunfar a civilização e a ciência sobre o “atraso”, sobre a “barbárie”. O discurso do progresso destacava-se mais uma vez na retórica material para a criação de uma sensação geral de crescimento, de mudança que escamoteava a prática cotidiana de exploração incompatível com os valores liberal-burgueses modernos de liberdade, igualdade e fraternidade.

O Rio de Janeiro do séc. XIX era a cidade mais europeizada da nação. Além de centro da vida oficial do País, a cidade era a principal praça comercial e, assim, precisava equipar-se estruturalmente a fim de atrair e facilitar as negociações. Apesar de manter sua conformação básica, com ruas estreitas e tortuosas, o Rio de Janeiro recebeu iluminação elétrica, fios de telégrafo e de telefone, malha ferroviária que ligava a cidade com diversos pontos do entorno, novas locomotivas. Em 1868 inaugurava-se o sistema de bondes, transporte público que serviu para desafogar o centro da cidade e, assim, permitir sua expansão. A urbanização

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significou também o aumento da densidade demográfica. O acesso facilitado e as melhores condições de vida na cidade atraiam a população, aumentando naturalmente o mercado consumidor e, pois, o comércio. A dinamização do Rio de Janeiro no séc. XIX conferiu à cidade aspecto de metrópole. Nesse mesmo ritmo São Paulo tornava-se urbana. Nela, a influência da imigração foi mais presente e iniciou o processo de aceleração do comércio, da indústria, do empreendedorismo em diversos setores, que não somente o primário. São Paulo também apresenta ares metropolitanos, sobretudo, a partir da segunda metade do séc. XIX. Assim, o dinheiro do café e a infraestrutura demandada pela produção cafeeira em massa transformavam o estilo de vida da população brasileira, em especial no Sudeste, que passava a ter contato com cidades em expansão, dinâmicas, comerciais e industriais78.

Nesse contexto, nota-se que a urbanização desenvolve-se atrelada ao comércio e à indústria. O fim do tráfico negreiro, em 1850, permitiu que os capitais antes gastos na importação de escravos africanos fosse reinvestido no País. Ou seja, a realização de tráfico de escravos dentro do próprio território nacional fazia com que o dinheiro permanecesse no mercado interno e, consequentemente, pudesse ser utilizado em atividade produtiva. Aquecia- se, então, a economia e os capitais disponíveis eram destinados à industrialização e à compra de produtos das mais variadas origens, oferecidos no comércio internacionalizado das metrópoles. É a era Mauá, que, além do progresso nos transportes, na comunicação e na indústria, comunica a transformação “civilizatória” promovida pelo capital no mercado de consumo nacional. O Brasil passa a ter acesso mais rápido e fácil à cultura europeia e norte- america tanto por meio da arte e do teatro, que agora incluíam o Brasil na rota de turnês internacionais, quanto por meio dos produtos “refinados”, comercializados mais facilmente nos grandes centros urbanos79.

Essa febre pela acumulação de riquezas estimula a diferenciação do trabalho, o crescimento do setor de serviços e a formação de camadas sociais intermediárias. Fortalece-se no cenário social brasileiro a figura do profissional liberal e dos trabalhadores assalariados, que progressivamente formam o mercado interno consumidor e também de mão de obra

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HOLANDA, S. B. Capítulos de história do Império. Org.: Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 15-22, 70-76; NEVES, M. de S. Uma cidade entre dois mundos: o Rio de Janeiro no final do século XIX. In: GRINBERG, K.; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil imperial: 1870-1889. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 119-153; OLIVEIRA, M. L. F. de. Uma senhora na rua do Imperador: população e transformações urbanas na cidade de São Paulo, 1870-1890. Ibidem. p.155-198.

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HOLANDA, S. B. de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico, reações e transações. t. II. v. 3. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. p. 297-319; Idem. História geral da civilização

brasileira: o Brasil Monárquico, declínio e queda do Império. t. II. v. 4. São Paulo: Difusão Européia do Livro,

diferenciada. Esse processo é potencializado ao final do século, com a vinda de imigrantes e a abolição da escravidão. Assim, apesar de ainda precipuamente patriarcal e antidemocrática, a sociedade brasileira passa a apresentar traços mais flexíveis. O discurso do progresso, nesse viés de rápido avanço econômico-tecnológico, difunde valores burgueses, que influenciam diretamente a forma de interação humana. Ou seja, ritmo social intensifica-se, de modo que a liturgia típica da sociedade estamental/feudal é superada pelo paradigma da dinamicidade burguesa80. Surgem outros setores sociais, que não somente o senhor de terras, o pároco e o negro, o que torna a sociedade mais complexa e diversifica os interesses sociais e, pois, as opiniões em disputa na arena política. Novos relatos são inseridos no contexto comunicativo nacional e lutam igualmente por espaço para influenciar a criação das verdades sociais. A homogeneidade ideológica da elite começa a esboçar fragilidade. As demandas sociais, desencadeadas pela nova forma de interação social, alteram discursivamente a “realidade” nacional: a retórica material do Brasil, “modernizado” pelo discurso do progresso, difunde novos interesses e opiniões.

Esse processo de propagação de valores diferentes desenvolve-se no bojo de um novo sentido dado ao “progresso”, o de descolonização intelectual. A sociedade brasileira, agora mais complexamente estruturada, almejava construir uma identidade própria, desatrelada da imagem de ex-colônia portuguesa. Por meio dessa retórica de emancipação cultural o País tentava tornar-se livre das amarras que ainda o prendiam ao colonizador. Concatenavam-se harmonicamente os discursos centrais da retórica material: à independência formal, consagrada pela defesa da “ordem”, seriam pospostas a econômica e a cultural, fundadas no incentivo ao “progresso”81

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Essa construção da “identidade brasileira”, porém, não se deu com base em uma tradição latino-americana. Repudiavam-se modelos portugueses, sim, mas a cultura europeia não. O velho mundo e a América do Norte serviriam como padrões de progresso intelectual. Assim, o Brasil foi colonizado por uma avalanche de ideias francesas, inglesas e norte- americanas, reconhecidas pelo imaginário social como produto do desenvolvimento racional dessas nações, que deveria ser seguido no contexto nacional. O discurso do progresso forjava, assim, o ethos nacionalmente valorizado das ideias internacionais. Assim, diante da maior complexidade social do Brasil da segunda metade do séc. XIX, a produção linguística da

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VEIGA, Gláucio. A história das idéias da Faculdade de Direito do Recife: período Olinda. v. IV. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1984. p. 117.

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MATTOS, I. R. de. O gigante e o espelho. In: GRINBERG, K; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil imperial: 1831- 1870. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 15-51.

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identidade nacional vai ser filtrada pelo embate das diversas opiniões e interesses, cada um justificado retoricamente com base em alguma teoria estrangeira. Portanto, o avanço material evidencia a diferença de interesses dentro da camada politicamente dominante, a despeito da tentativa de ocultação do dissenso. A aparência de congraçamento desmorona. Os sentidos econômico e civilizatório conferidos à noção de progresso começam a provocar fissuras na relação entre elite econômica e aparato burocrático.

Esse ambiente de disputa argumentativa incrementa o papel social desempenhado pela imprensa. A vida política nacional, conforme já mencionado, era pobre no que concerne à discussão em torno dos projetos políticos a serem executados no País. A política da conciliação, por um lado, deixara de herança um sistema partidário desprovido de pautas específicas. Por outro lado, a simbiose entre Estado e classe dominante deu origem à apatia dos representantes de cada setor da elite quanto à defesa de seus próprios interesses, uma vez que, por integrarem o parlamento, mas serem ao mesmo tempo empregados da burocracia estatal, eles não se opunham às decisões estatais. Dentro desse contexto, os jornais tornavam- se o fórum alternativo à tribuna parlamentar. Eram eles os responsáveis por aquecer a batalha política no Império e por difundir as manifestações da opinião pública. A imprensa tornava-se instituição socialmente influente82.

Obviamente, a relevância do agir argumentativo de redatores, editores, leitores e autores circunscrevia-se a um nicho diminuto da sociedade brasileira, visto que apenas cerca de um décimo da população era alfabetizado. Entretanto, esse grupo “letrado” era, num País mais dinâmico, mas ainda excludente e patriarcal, o setor dirigente da sociedade. Consequentemente, fazia-se necessário difundir entre eles a cultura e os valores da nova identidade brasileira “intelectualizada”, visto que as crenças por eles assimiladas eram mais facilmente tornadas linguagem de comando. As publicações participavam, assim, diretamente do processo de filtragem de conteúdos e de massificação de ideias entre os integrantes da elite. Primeiramente elas aumentavam a amplitude do debate, expandindo-o do eixo Rio de Janeiro - São Paulo para as demais províncias do Império. Ao atingir outros pontos do Império, os jornais influenciavam a “comunidade de sentido” da elite local, a qual propagava oralmente a mensagem transmitida nos textos e, assim, por meio desse controle público e da autoridade reconhecida pela população em sua opinião, produzia a realidade nacional.

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CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 51-59, 121-141; Idem. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 74-84.

É essa arena de discussão oferecida pelos jornais que, especialmente a partir da década de 60 do séc. XIX, as elites utilizam como instrumento para expressar sua insatisfação com o governo centralizador. Conforme destacado no subcapítulo relativo ao discurso da ordem, a política nacional começava a dar sinais de desestruturação que refletiam diretamente no monarca, a quem cabia manter a harmonia do sistema político. Sobre sua pessoa e, por via direta, sobre o regime monárquico recaiam as críticas. Essa situação foi potencializada pelo