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O FEDERALISMO DE RUI BARBOSA ENQUANTO TEORIA NACIONALMENTE INSULAR DESCONTINUIDADE EM RELAÇÃO A RETÓRICAS FEDERALISTAS

ENTRE A TEORIA DE RUI BARBOSA E OUTROS DISCURSOS FEDERALISTAS OS PROBLEMAS DA ORIGINALIDADE E DA CONTINUIDADE

6.2 O FEDERALISMO DE RUI BARBOSA ENQUANTO TEORIA NACIONALMENTE INSULAR DESCONTINUIDADE EM RELAÇÃO A RETÓRICAS FEDERALISTAS

ANTERIORES COMO ESTRATÉGIA

Diferentemente dessa inspiração em modelo estrangeiro, confessada reiteradamente pelo próprio autor, relações de proximidade entre sua teoria e as propostas federalistas anteriormente defendidas no Brasil não foram estabelecidas por Rui Barbosa. Apesar de afeto a longas narrativas sobre o passado histórico nacional, o autor não utiliza em seus argumentos as revoluções pernambucanas do início do século nem o ato adicional de 1834 como exemplos de sistemas cujas tendências federalistas deveriam ser aprofundados e aperfeiçoados. Além disso, a despeito de destacar sempre a existência de forte anseio da população pela autonomia do governo local, Rui Barbosa não cita os casos ocorridos na primeira metade do século como prova retórica da existência de tais demandas. Ao contrário, o passado federalista brasileiro, quando não ignorado, é trazido à tona estrategicamente apenas para ser criticado enquanto símbolo de tentativas acanhadas de constrangimento do poder central, supostamente descomprometidas com os verdadeiros princípios do federalismo. Rui Barbosa, portanto, faz questão de distanciar-se de outras linhas de pensamento federalista nacionais e, por conseguinte, apresenta-se como uma teoria insular. Tal isolamento conferiria, no contexto de suas estratégias argumentativas, caráter ímpar a sua doutrina, apresentada ao público como inovação no nível da retórica material brasileira.

O distanciamento retórico da doutrina ruiana do final do século XIX com relação às revoluções pernambucanas de 1817, 1824 e 1848 e à experiência federal promovida em 1834 e experimentada diretamente pelo sudoeste brasileiro fica, portanto, claro. Com “distanciamento retórico” quer-se significar a heterogeneidade entre os argumentos em defesa da descentralização administrativa apresentados por Rui Barbosa e os utilizados nos outros dois discursos. Em outras palavras, sob o ponto de vista analítico, percebe-se que, apesar de baseado nos mesmos pilares ideológicos liberal-burgueses, a teoria federalista ruiana não interagia linguisticamente com as demais. Não há na federação ruiana marcas retóricas que evidenciem a influência de uma proposta federalista nacional anterior. Ela não integra a tendência de pensamento liberal-autonomista pernambucana nem o conjunto argumentativo justificador do Ato Adicional de 1834. A descontinuidade marca a opinião ruiana.

Entretanto, afirmar tão somente essa descontinuidade não é o interesse deste trabalho, visto que tal constatação pode ser feita a partir da leitura dos artigos de Rui Barbosa ou da obra de seus críticos205. O objetivo analítico aqui é perceber razões para esse distanciamento. Ora, a associação a outros discursos federalistas nacionais poderia trazer benefícios para a argumentação ruiana, uma vez que tornaria mais persuasivas diversas de suas estratégias construtivas. Tal aproximação retórica serviria como reforço estratégico para a tópica do desejo social pelo federalismo e para a da necessidade já antiga de atualização institucional, via minimização do poder central. Por que motivo, então, teria Rui Barbosa abdicado de tal ferramenta argumentativa? Em que medida ser uma teoria nacionalmente insular representava vantagem estratégica? Chega-se ao cerne do problema da descontinuidade. A retórica analítica volta-se para o contexto nacional. Inicialmente o federalismo ruiano é comparado ao pernambucano e, posteriormente, analisam-se as relações retóricas existentes entre ele e a “experiência federalista” de 1834.

A retórica das revoluções pernambucanas da primeira metade do séc. XIX marcou profundamente a retórica material nacional. Dotada de uma organização social complexa, a província de Pernambuco experimentou nesse começo dos anos oitocentos um contexto político marcado por diversas agitações. Não somente a revolta de 1817, a Confederação do Equador (1824) e a Praieira (1848) imprimiram na linguagem comum local a simbologia da luta armada como principal caminho para a efetivação dos interesses de mudança. Além dessas mais famosas, houve outras insurreições como a setembrizada, a novembrada e a

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Oliveira Vianna chama esse caráter insular da teoria política brasileira de marginalismo político. Cf.: VIANNA, F. J. de O. Instituições políticas brasileiras: metodologia do direito público. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 337-407.

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abrilada, entre 1831 e 1832, e também a cabanada, entre 1832 e 1835206. Esses movimentos, apesar de estarem separados em alguns casos pelo sistema de governo almejado, por vezes a república, por outras a monarquia constitucionalista, tinham em comum algumas propostas: a autonomia provincial; a nacionalização do comércio de varejo, a fim de criar mais postos de trabalho para os brasileiros; a instituição de um Estado liberal típico, ou seja, mínimo, o qual permitiria às elites locais progredir sem a interferência da corte e, sobretudo, sem seu peso fiscal207.

Foi essa homogeneidade de ideias justificadoras da demanda por mudanças que criou no nível material da retórica provincial verdades diferentes das compartilhadas em outros pontos do território nacional. Pernambuco, cuja extensão abrangia à época território maior que o atual, formava um dos “brasis” então existentes. Nesse “Brasil local” a estrutura social era mais dinâmica. Historicamente marcada pelo comércio e por importantes ciclos monocultores como o açucareiro e o algodoeiro, Pernambuco possuía uma relação de classe e raça mais flexível, na qual o dinheiro era o meio para o branqueamento de índios e negros e, além disso, no qual diversos proprietários rurais advinham de extratos sociais mais baixos. Nesse sentido, apesar de controlada por uma elite local excludente, a província de Pernambuco era constituída por grande massa de homens livres pobres, os quais integravam a atmosfera retórica reformista que dominava a província e, sobretudo, efetivamente participavam dos movimentos sociais. Criou-se, então, uma cultura de participação da população nas revoltas liberais, não como massa de manobra e sim como reivindicadora de seus próprios interesses. Seria, obviamente, ufanista dizer que Pernambuco detinha maioria populacional consciente, cidadã e militante, especialmente porque os movimentos aqui analisados foram reprimidos quase todos de modo rápido pelo governo central, o que mostra sua relativa desarticulação. Entretanto, não se pode ignorar narrativas da época, em tom

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CARVALHO, M. J. M. de. Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848). In: GRINBERG, K; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil imperial: 1831-1870. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 123-176.

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A corte carioca era muito dispendiosa e seus gastos eram arcados, na forma de impostos, pelas províncias. Esse era um dos maiores motivos de insatisfação da elite pernambucana, obrigada a transferir grande parte de sua renda para o Rio de Janeiro sem que isso se revertesse em maior liberdade de gestão local ou em maiores investimentos infraestruturais. Cf.: MELLO, E. C. de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 25-63. Quanto às demandas típicas de cada movimento social de Pernambuco no início do século, cf.: Ibidem. p. 113-162 e passim; BERNARDES, D. A. de M. O patriotismo

constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo-Recife: Hucitec/Fapesp - UFPE, 2006. p.288-314 e passim;

CARVALHO, M. J. M. de. Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848). In: GRINBERG, K; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil imperial: 1831-1870. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p.123-176.

assustado, referentes à desordem causada na província pela “populaça” e pela “soldadesca desenfreada”208

.

Foi dentro desse contexto retórico material que se desenvolveram as três principais revoluções pernambucanas: a de 1817, a Confederação do Equador e a Praieira. Consequentemente, a retórica federalista presente nesses três movimento foi influenciada pela linguagem comum de reformismo atuante, pragmático. Os revolucionários desses levantes mais do que teorizar sobre a federação, com o intuito de formar uma doutrina nacional fundada em pilares conceituais bem definidos, pretendiam resolver os problemas práticos de seu dia-a-dia. Por conseguinte, a modificação institucional viria como meio para a obtenção de um fim maior, qual seja: a efetiva independência das oligarquias provinciais com relação às indesejadas interferências do governo central. Obviamente que, defensoras de princípios ínsitos à modernidade política, tais revoltas possuíam sim em sua militância membros da elite letrada conhecedora das revoluções liberais europeias e de seus teóricos, os quais eram responsáveis pela homogeneização retórico-ideológica do grupo209. Entretanto, as preocupações revolucionárias eram pouco formais: o importante era aproveitar a distância física com relação à corte e tomar o comando provincial, entregue em geral nas mãos de militares ou de magistrados da confiança do poder monárquico.

Era justamente essa forma de ação aguerrida e, sobretudo, o momento histórico de unificação de um país enorme, formado por regiões bastante diferentes entre si e que até então não experimentara qualquer projeto político de integração nacional, que despertava no governo central maior cuidado com relação ao “espírito liberal” de Pernambuco. Era preciso contê-lo. Mais do que isso: era fundamental para a estabilidade da nova nação extirpá-lo do conjunto de relatos nacionais, a fim de evitar sua filtragem. Formou-se o discurso da ordem, conforme analisado no capítulo segundo, e, legitimadas por ele, vieram as violentas devassas e perseguições com o objetivo de punir exemplarmente os revoltosos. Relatava-se, assim, por meio da ameaça de violência, que nenhuma província deveria aderir à causa pernambucana. A noção de ordem servia para conter a população livre e escrava que reivindicava mais direitos, colocando-a em seu “devido” lugar na estratificação social. Criava-se, então, no imaginário social a crença de que movimentos semelhantes aos pernambucanos eram indesejados e

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BERNARDES, D. A. de M. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo-Recife: Hucitec/Fapesp - UFPE, 2006. p. 25-119, 204-218; CARVALHO, M. J. M. de. Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848). In: GRINBERG, K; SALLES, R. (Orgs.). O Brasil Imperial: 1831-1870. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 139-158.

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BERNARDES, D. A. de M. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo-Recife: Hucitec/Fapesp - UFPE, 2006. p. 121-191.

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prejudiciais ao futuro nacional, uma vez que desuniam a nação para fazer prevalecer interesses supostamente particulares. A retórica da ordem, então, produzia na sociedade brasileira antipatia por revoltas como as federalistas de 1817, 1824 e 1848 em Pernambuco.

É nesse sentido que, eventual vinculação de seu federalismo à imagem negativa das propostas de autonomia provincial pernambucanas significaria para Rui Barbosa sabotar sua estratégia retórica. Acusar continuidade, ou seja, estabelecer relação de pertencimento a uma corrente de pensamento liberal-descentralizadora já repudiada socialmente e perdedora na arena de debate nacional aumentaria o ônus retórico de Rui Barbosa para demonstração das qualidades de sua proposta federalista. Assim, o suposto benefício de demonstrar retoricamente a existência de antigas demandas concretas pela federalização nacional traria a grande desvantagem de abrir flancos na metodologia de ataque aos adversários da opinião federalista. Vincular-se à imagem revolucionária pernambucana significaria, ainda, contradizer a convicção pessoal, apenas aparentemente210 abandonada quando na estratégia construtiva, na importância de realização de reformas pensadas, pacíficas, sem produção de rupturas bruscas no tecido social. Mais: colocar-se ao lado do federalismo pernambucano significaria avalizar sua oposição direta à província do Rio de Janeiro. Isso comprometeria de maneira irreparável a argumentação ruiana, voltada principalmente para o convencimento da população brasileira do eixo Rio de Janeiro - São Paulo - Minas Gerais, em torno da qual se centralizava o jogo político de então. Enfim, a busca por integração com o discurso federalista do nordeste brasileiro seria ação retórica não astuciosa uma vez que afastaria o autor de seu auditório. A força dos símbolos vinculados ao discurso da ordem não poderia ser desconsiderada. Ignorar o passado federalista de Pernambuco era a melhor forma de aproveitar estrategicamente esse poder persuasivo da ordem e, assim, apresentar-se como algo novo, bastante diferente da proposta já rechaçada. Ser uma teoria insular era, portanto, retoricamente vantajoso.

Além disso, o federalismo pragmático da província nordestina não servia ao interesse formalista ruiano. Conforme já destacado, o objetivo de Rui Barbosa era reformar as instituições nacionais, desde que a fôrma federalista servisse de base para caracterização de tais alterações do sistema jurídico. A federação era, portanto, um fim em si mesmo, de modo que os argumentos relativos à maior autonomia das províncias e ao maior controle do poder

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Diz-se aparente o abandono, porque Rui Barbosa apenas passa a defender a inserção imediata do federalismo, sem que fosse preciso um processo de atualização progressiva do ordenamento rumo à federação integral no futuro. O autor não adota postura aguerrida, revolucionária. Ou seja, as reformas por ele propostas continuariam, no fundo, pensadas e, pois, conservadoras, na medida em que pautadas em modelos ideais dentro dos quais não estava prevista a quebra da ordem social excludente.

central eram apenas justificações para defesa da ideia federalista. Era preciso, então, construir uma teoria nacional, doutrinar a população por meio de definições e conceitos precisos. Buscava-se claramente modificar a realidade a partir da retórica teorética.

É precisamente esse formalismo cientificista ruiano que afasta o federalismo de Rui Barbosa do pernambucano, confirmando a tese da descontinuidade. A ausência de pretensões doutrinárias dos movimentos pernambucanos, então, apresenta-se como segundo motivo para Rui Barbosa ter rejeitado qualquer proximidade simbólica entre sua proposta e a nordestina. Ora, ao fundamentar sua ação sobre uma ideia abstrata, o autor precisava explorar estratégia argumentativa conceitualista, conforme já mencionada. Acostumar o auditório com as categorias e com o modo de pensar jurídico tornava-se fundamental para que a linguagem comum assimilasse a noção de poder o plano abstrato determinar a realidade. Em outras palavras, para que todo o discurso ruiano fosse etiquetado com o topos “federalismo” era preciso delimitar o sentido de tal expressão e, assim, construir retoricamente seu conceito. Enquanto lugar comum organizador do conjunto de raciocínios idealistas, a federação ruiana precisava do apoio retórico de um modelo teórico. Daí a opção pelo federalismo norte- americano. Além dos benefícios persuasivos que a citação de discursos estrangeiros “modernos” proporcionava, os federalistas norte-americanos também buscavam essa alteração da realidade de maneira cientificista, reconhecendo na forma jurídica uma vantagem em si mesma, independentemente da realidade. No discurso estadunidense encontrava-se, portanto, apoio estratégico para a objetivação da opinião federalista apresentada como universalmente aceita e respeitada.

Tal amparo não era oferecido pelo discurso dos revolucionários pernambucanos. As revoltas pernambucanas, sobretudo as de 1817 e 1824, enfrentavam o problema da falta de acordo conceitual quanto à federação. Uma vez que, originalmente, o federalismo servira à centralização norte-americana, tendo fortalecido a unidade entre os estados, os adversários dos movimentos pernambucanos tentavam desacreditá-los, ao mostrar para o auditório que a pretensão de autonomia não se adequava ao “verdadeiro” padrão federalista. Ou seja, a insatisfação pernambucana era acusada de fundar-se falaciosamente nos pilares de doutrina a qual, em verdade, serviria para sustentação do discurso monárquico. Consequentemente, líderes como frei Caneca, Cipriano Barata ou Natividade Saldanha, a despeito de se considerarem federalistas, raramente apresentavam em seus artigos as propostas

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revolucionárias sob o rótulo do ideário federalista211. Esse detalhe aparentemente pequeno, mas diretamente relacionado ao poder persuasivo da nomeação, à estabilidade retórica conferida ao discurso pela sua associação a opiniões consagradas, fez com que a inserção dos movimentos descentralizadores pernambucanos na categoria “federação” fosse mais um produto da historiografia, e não de sua militância.

Diferentemente da experiência pernambucana, o federalismo do Ato Adicional deu-se de maneira pacífica e foi efetivado por meio das vias ordinárias do sistema jurídico. Isso significa que não havia qualquer choque entre a retórica descentralizadora das reformas de 1834 e o discurso da ordem. Consequentemente, vincular-se à corrente reformista liberal desse período poderia ser retoricamente útil para Rui Barbosa, que nela encontraria o “eco histórico” para suas ideias. Entretanto, novamente o autor opta por distanciar-se do passado federalista nacional. Chega-se ao segundo ponto do problema da descontinuidade.

Conforme analisado no capítulo primeiro, a abdicação de D. Pedro I configurou momento favorável para a esquerda liberal tentar influenciar o projeto político nacional. As elites provinciais de então, sobretudo do Sudeste brasileiro, estavam geograficamente afastadas do centro responsável pela tomada de decisões políticas, mas desejavam igualmente ter seus interesses representados junto à corte imperial e, sobretudo, incluídos nas políticas públicas nacionais. Dessa maneira, era-lhes fundamental instituir mudanças na estrutura de governo, as quais lhes permitissem uma maior participação no processo decisório. Tais alterações jurídicas foram promovidas por meio de reformas “federalizantes”, instituídas pelo grupo liberal vitorioso em 1831. As províncias passaram, então, a gozar de maiores competências legislativas e de maior autonomia administrativa: possuíam Poder Legislativo próprio, liberdade para gestão de obras públicas e para criação de empregos provinciais, autonomia tributária e força policial própria212. O Ato Adicional de 1834 foi o instrumento normativo dessas alterações. Favorecidas por esse “avanço descentralizador”, as elites locais fortaleceram ainda mais seu poder provincial e sua capacidade de barganha com o governo central, tornando-se mais capazes de impor seus interesses. Foi exatamente esse agigantamento das elites locais que, ao final do séc. XIX, as tornou interessadas na retórica federalista ruiana.

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MELLO, E. C. de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 11-24, 65-112.

212

DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. p. 155-221 e passim.

Contraditoriamente, esse avanço federalista retrocedeu. Implantado de maneira incipiente e mais voltada para o atendimento de necessidades concretas e imediatas das elites locais, a reforma constitucional promovida pela norma de 1834 não delimitou precisamente as competências das províncias e as do governo central, a despeito do ensaio legislativo feito nos artigos 10º e 11213 da norma. A inexistência de tal separação rígida entre as esferas de atuação específica e geral provocou grande sobreposição de ações administrativas e usurpação de competências. O grupo centralizador reconheceu nessa situação oportunidade para efetivar medidas do “regresso conservador” e, assim, conseguiu aprovar a Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei nº 105/1840). A nova norma tratou especialmente de questões relativas ao Poder Judiciário, em torno das quais se concentrava a maioria dos choques de competência, uma vez que as Assembleias Provinciais passaram a ter poder para intervir no funcionamento da magistratura, principal tentáculo do governo central nas províncias214.

Entretanto, mesmo a norma revisora não conseguiu responder bem a questões como a responsabilidade pelo pagamento de aposentadorias, o recrutamento forçado da força policial e os impostos de exportação e de importação215. Os problemas agigantavam-se principalmente na será fiscal. Ao adquirir autonomia tributária, as províncias passaram a arcar sozinhas com seus gastos administrativos. As receitas provinciais eram, porém, diante do pequeno espectro de espécies tributárias adquirido, muito pequenas e em geral inferiores às despesas. Precisava- se, então, apelar para o poder central cujo sistema para suprimento de verbas podia ser acessado pelo governo local desde que o déficit fiscal fosse justificado216. Ou seja, apesar de legalmente consagrada, a autonomia administrativa provincial tinha sua efetividade comprometida em virtude da dependência financeira. Além disso, a reforma federalista de 1834 possuía mais um entrave centralizador. O Ato Adicional, em seu texto original não alterado pela Lei de Interpretação217, previa a nomeação do chefe do poder Executivo

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BRASIL. Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de Outubro de 1832. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM-16-1834.htm>. Acesso em: 15.01.2014.

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BRASIL. Lei n 105, de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da Reforma Constitucional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM105-1840.htm>. Acesso em: 15.01.2014; DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. p. 125-154. 215

DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. p. 223- 242.

216

HOLANDA, S. B. Capítulos de história do império. Org.: Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 169-175.

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Artigo 10º, parágrafo 7º, que exclui da competência provincial matérias referentes, dentre outros, ao cargo de Presidente da Província. Cf.: BRASIL. Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de Outubro de 1832. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM-16-1834.htm>. Acesso em: 15.01.2014

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provincial pelo governo central. Era a figura do presidente da província, que funcionava como representante dos interesses imperiais em nível local e ainda detinha poder de veto sobre as decisões das Assembleias Provinciais. Apesar de supostamente existirem mecanismos jurídicos para diminuição da discricionariedade do presidente ao tentar impor seu veto218, a simples previsão normativa de tal instrumento de intromissão imperial direta sobre a gestão provincial já representava claramente o tipo de federalismo proposto pelo governo