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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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Nilson Adauto Guimarães da Silva

A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

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A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS:

Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

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FICHA CATALOGRÁFICA

Silva, Nilson Adauto Guimarães da.

A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética/ Nilson Adauto Guimarães da Silva.- Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.

x, 220f.; 31cm.

Orientadora: Celina Maria Moreira de Mello

Tese (Doutorado) – UFRJ/FL Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2008.

Referências Bibliográficas: f. 199 – 210.

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A REVOLTA NA OBRA DE ALBERT CAMUS: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2008

____________________________________________________ Celina Maria Moreira de Mello, Professora Doutora,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________ Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova, Professora Doutora,

Universidade Federal de Minas Gerais

____________________________________________________ Henrique Cairus, Professor Doutor,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________ Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, Professor Doutor,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________ Latuf Isaias Mucci, Professor Doutor,

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________ Ângela Maria da Silva Corrêa, Professora Doutora,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________ Irineu Eduardo Jones Corrêa, Professor Doutor,

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À Professora Celina e ao Professor Henrique, pela confiança e pela cooperação sem as quais não se teria realizado este trabalho;

A meus pais, por me ensinarem a importância de aprender, aos meus irmãos pela fraternidade sincera, ao Rodolfo pelo companheirismo, aos meus amigos pela amizade essencial à vida.

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"On ne trouve de meurtriers que par exception parmi les artistes."

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SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese. (Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

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SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese. (Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

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SILVA, Nilson Adauto Guimarães da. A Revolta na obra de Albert Camus: Posicionamento no campo literário, gênero, estética e ética. Rio de Janeiro, 2008. Tese. (Doutorado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

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1 INTRODUÇÃO ... 1

2 O INTRADISCURSO ... 16

2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS ... 16

2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS ... 22

2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO ... 30

2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA ... 34

3 A PESTE NA CIDADE MODERNA ... 46

3.1 O GOSTO PELO VIVIDO ... 46

3.2 UMA CRÔNICA TRÁGICA ... 58

3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO ... 70

4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO ... 79

4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO ... 79

4.2 A REVOLTA ... 84

5 O INTERDISCURSO ... 92

5.1 CAMUS ET LES TEMPS MODERNES ... 92

5.2 A INTERINCOMPREENSÃO ... 99

6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS ... 106

6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS ... 106

6.2 TIPOLOGIA DOS GÊNEROS ... 112

6.3 A BUSCA DA ORTODOXIA ... 123

6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS ... 141

7 CONCLUSÃO, AINDA UMA LIÇÃO DE ÉTICA ... 161

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1 INTRODUÇÃO

Em 1957, Albert Camus já era um escritor muito conhecido, graças sobretudo a seus romances L'Étranger e La Peste, e graças a seu trabalho no jornal Combat, associado a sua atividade de resistente; entretanto, quando o prêmio Nobel de literatura lhe foi concedido, não era ainda possível imaginar a importância que assumiria o escritor no cenário literário francês e mundial. Camus conheceu um destino literário excepcional e seus personagens adquiriram uma dimensão mítica ao encarnarem, simbolicamente, atitudes paradigmáticas diante de questões prementes e dramáticas, próprias de seu tempo, de maneira sóbria e expressiva; ainda hoje é um escritor muito lido e estudado, sua obra permanece atual, atingindo os leitores de nossos dias e oferecendo aspectos a serem desvelados ou explicitados.

Após optar por trabalhar sobre o autor em nossa pesquisa de pós-graduação em estudos literários franceses, foi necessário escolher o corpus e fazer um recorte dele. Com a necessidade de delimitar o objeto de estudo, levamos em conta uma divisão que o próprio Camus faz de sua obra e a adotamos em suas linhas gerais; trata-se da distribuição de seus textos principais em dois ciclos, o do Absurdo e o da Revolta. O primeiro compreende o romance L’Étranger (1942), as peças de teatro Caligula (1944) e Le Malentendu (1944) e o ensaio filosófico Le Mythe de Sisyphe (1942). O Ciclo da Revolta reúne o romance La Peste (1947), as peças L'État de siège (1948) e Les Justes (1950) e o ensaio L'Homme révolté (1951).

Na pesquisa em vistas à dissertação de mestrado, a qual versava sobre o caráter paratópico do autor, a dimensão poética do ensaio, o Absurdo e suas implicações estéticas, trabalhamos com a primeira etapa da obra camusiana que, em torno do tema do Absurdo, encarna a Negação e se desenvolve nas formas romanesca, dramática e "ideológica" − este

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interesse pela cultura grega clássica, suas opções de gêneros e a noção de Revolta, em seus desdobramentos éticos e estéticos e em sua relação com a problemática do Absurdo − tomamos a segunda etapa da obra de Camus, a tetralogia que desenvolve o tema da Revolta, ou o Positivo, e configura-se também em gêneros diferentes, o romance, as peças de teatro e o ensaio filosófico. Além destas obras, fazemos referência a algumas anotações autobiográficas dos "carnets" do escritor e alguns de seus textos jornalísticos, que definem seu posicionamento estético, corroboram suas posições de defesa da justiça social e atestam a diversidade genérica de sua produção.

O estudo da teoria literária e da história da literatura nos fornece um instrumental teórico valioso para a análise de obras literárias as mais diversas. A experiência pessoal e o contato com os textos também nos sugerem que, para ser melhor compreendido e apreciado, cada grande autor exige um estudo particular, que leve em consideração seu contexto sócio-histórico, seus projetos e suas concepções éticas e estéticas.

As noções básicas do pensamento de Camus, o Absurdo e a Revolta, estão diretamente associadas a aspectos biográficos do autor e ao momento histórico em que foram elaboradas; estas noções remetem a uma reflexão acerca da condição humana, destacando os aspectos existenciais e os limites da própria razão, e se exprimem numa forma ensaística, plena de figuras próprias do texto poético, contraposta à tradição da filosofia sistemática e conceitual. Estas noções, desenvolvidas nos ensaios, constituem o pano de fundo dos romances e das peças de teatro, que se propõem como texto literário autônomo, e não como obras de tese nem simples meio de difusão de uma doutrina filosófica. Os textos jornalísticos, mais diretamente ligados aos acontecimentos da história, constituem espaço privilegiado em que o autor desenvolve uma reflexão relacionada com aquela presente nos ensaios.

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por ocupar um lugar privilegiado no campo da filosofia e, particularmente, no campo da literatura francesa do século XX. O momento agitado e violento no qual viveu, da mesma forma que seu percurso intelectual, refletem-se em seus textos. Por isso levamos em conta a importância dos elementos históricos na obra de Camus e inserimos nossa análise de suas obras no conjunto de sua produção e no contexto de sua biografia. Camus foi extremamente comprometido com seu tempo e engajado politicamente, entendendo-se aqui política em seu sentido amplo. Os textos produzidos por ele, os quais o produziram enquanto escritor, estão articulados com seu itinerário de intelectual que, inicialmente à margem das instituições acadêmicas oficiais, torna-se mais tarde um autor consagrado. Tentamos assim articular os campos da filosofia, da literatura e do jornalismo em Camus com o contexto conturbado no qual ele viveu.

Buscamos desenvolver a noção de Revolta nos seus desdobramentos éticos e estéticos e na sua relação com o Absurdo, ou seja, no movimento de passagem do Absurdo à Revolta. Pretendemos considerar o papel das imagens e dos conceitos nos ensaios de Camus, abordar a questão dos gêneros e do interdiscurso, e levar em conta a noção de campo, buscando as relações entre as produções textuais e as instituições sócio-literárias. Ou seja, buscamos caracterizar o posicionamento do autor nos campos literário e filosófico, compreendendo de que forma, para ele, as origens, o percurso intelectual e a carreira se relacionam com a obra. A liberdade com que Camus ―ensaia‖ suas técnicas de escrita e com que entrelaça gêneros e campos diversos está associada à sua posição no espaço acadêmico. Além disso, sua inserção ―paratópica‖ nos campos literário e filosófico está intimamente relacionada com a dimensão

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tratarmos dos gêneros e das opções de Camus em face deles, valemo-nos, sobretudo, dos trabalhos de Gérard Genette e de Dominique Combe.

Nosso trabalho se divide em cinco capítulos. No primeiro, apresentamos o conjunto das obras principais de Camus e a interação entre tais obras, pertencentes a gêneros e a campos diferentes; fazemos referências à produção de Camus nos gêneros dramático − com as

peças Les Justes e L'État de siège − jornalístico e autobiográfico; buscamos destacar os temas mais valorizados e mais recorrentes e a importância da cultura grega para o autor. No segundo capítulo abordamos o romance La Peste, com três subdivisões relativas a seus aspectos autobiográfico, mítico-histórico e ideológico; no terceiro, o ensaio filosófico, L'Homme révolté. No quarto abordamos as polêmicas que envolveram o autor, sobretudo aquela suscitada pela publicação de L'Homme révolté, em 1951, e tratamos do diálogo tenso de Camus com a tradição filosófica e com o marxismo que predominavam nos espaços acadêmicos da época. No quinto capítulo, enfim, detemo-nos mais detalhadamente na problemática genérica. Na conclusão desenvolvemos ainda alguns aspectos da ética em Camus.

As citações dos textos de Camus são retiradas da edição ―Pléiade‖, da editora Gallimard, o volume contendo teatro e narrativas com publicação de 1962, e o volume contendo os ensaios com publicação de 1965. Trata-se da melhor edição para fins de pesquisa por conter numerosas notas e textos introdutórios. Passamos a enumerar as principais obras de teoria literária e sobre Albert Camus de nossa revisão bibliográfica.

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à Tipasa. A partir de então, Lebesque passa à análise de L'Étranger, de Le Malentendu, de Calígula e de Le Mythe de Sisyphe. Ele aborda, em seguida, a atividade de Camus no jornal Combat e sua atuação na Resistência francesa durante a Segunda Guerra. Na seqüência, trata das obras La Peste, L'État de Siège, Les Justes e L'Homme Révolté, fazendo rápida menção à polêmica de Camus com Sartre. Daí, passa ao estudo de outras obras, como L'Exil et le Royaume, La Chute e as adaptações feitas por Camus para o teatro, voltando ao conflito na Argélia antes da separação da França. Finalmente, discute questões como o pensamento, o estilo e a visão de literatura em Camus. Ao longo do livro, destacam-se aspectos da História do século XX e da biografia do autor.

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Ainda nesta linha bio-bibliográfica podem ser citados Albert Camus tel qu'en lui-même de François CHAVANES (Blida: du Tell, 2004) e Albert Camus et l'Algérie de Christiane CHAULET–ACHOUR (Alger: Barzakh, 2004), autora argelina e atualmente professora em Cergy-Pontoise. Ambos os livros, bastante recentes, foram publicados na Argélia. O segundo apresenta uma análise mais aprofundada e destaca a presença do espaço e de elementos argelinos nos textos de Camus, como em Noces, L'Étranger e Le Premier Homme. Além disso, a autora mostra as relações de filiação, fraternidade ou rivalidade entre escritores argelinos, contemporâneos ou posteriores, com Camus ou com sua obra; mostra ainda de que maneira Camus se tornou uma referência quase obrigatória na Argélia, sendo que muitos autores argelinos, ora o aprovando, ora o reprovando, fazem menção mais ou menos direta a ele, e produzem obras que apresentam uma intertextualidade com as obras camusianas; é o caso de escritores como Mohammed Dib, Taleb Ibrahimi, Blanche Balain, Emmanuel Roblès, Jean Pélégri, René-Jean Clot, Marcel Moussy, André Rosfelder, Mouloud Feraoun, Kateb Yacine.

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Pierre de Boisdeffre, Jean Daniel, Pierre Gascar, Morvan Lebesque, André Parinaud, Emmanuel Roblès, Jules Roy e Pierre-Henri Simon). Também como uma homenagem ao autor, com cinco seqüências de numerosas fotos e ilustrações, este livro, embora retomando aspectos biográficos (como o engajamento, o envolvimento com o jornalismo e o teatro) desenvolve com mais profundidade algumas de suas obras, e apresenta um interesse acadêmico maior do que aquele da NRF.

Em Narrateur et narration dans L'Étranger d'Albert Camus – Analyse d'un fait littéraire (Paris: Archives des Lettres Modernes nº 34, 1960) Brian T. FITCH faz uma análise minuciosa do romance, destacando sua ambigüidade e os aspectos que o tornam "estranho", como a diferença desconcertante entre a narração e o conteúdo desta narração. Embora dedicado a L'Étranger, Fitch faz em seu livro referências a outras obras de Camus e toma como ponto de partida o artigo de Sartre, "Explication de L'Étranger", publicado pela primeira vez em 1943 e retomado em Situations I (Paris: Gallimard, 1947), que constitui uma análise favorável, séria e aprofundada do romance, feita em contraponto com o ensaio Le Mythe de Sisyphe, a primeira realizada por um crítico de renome.

Próximo da análise de Fitch, mas nalguns momentos se opondo a ela, encontra-se L'Art du récit dans l'Étranger d'Albert Camus (Paris: A. G. Nizet, 1996), de M.-G. BARRIER. Concentrando-se em L'Étranger, este autor também faz algumas referências a outras obras de Camus e analisa o romance do ponto de vista da "maneira de escrever e de contar" escolhida pelo autor. Barrier destaca de que maneira o romance parece romper com a linguagem literária e com as marcas típicas do romanesco.

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trabalhos. O autor analisa os escritos de teatro de Camus, fazendo referências a outros textos e a seu pensamento filosófico, sobretudo no que diz respeito à concepção do Absurdo.

Pour connaître la pensée de Camus (Paris-Montréal: Bordas, 1964), é uma obra em que Paul GINESTIER se propõe, a partir da filosofia dos Ensaios de Camus, a mostrar como e por quê o artista produziu uma obra engajada. Ginestier justapõe aos pontos de partida filosóficos variados trechos das obras literárias, buscando assim desvelar os aspectos que considera mais importantes da criação artística de Camus.

Anne-Marie AMIOT & Jean-François MATTÉI são os organizadores de Albert Camus et la philosophie (Paris: PUF, 1997) e também seus colaboradores. O livro é composto de 16 artigos de autores diferentes, mas de mesmo tema. Trata-se de um dos poucos trabalhos, pelo que conhecemos, que, discutindo aspectos lingüísticos, de estilo e de gênero, propõem-se a analisar com seriedade os ensaios de Camus como obra propriamente filosófica. Os ensaios de filosofia de Camus são abordados sobretudo em sua relação com a ética, com a política, com o pensamento sistematizado e com o texto poético.

Outra obra que sublinha a reflexão filosófica de Camus, principalmente sua dimensão ética, é Albert Camus Um elogio do ensaio, de Manuel da Costa PINTO (São Paulo: Ateliê, 1998). O trabalho se divide em duas partes, sendo que na primeira o autor se dedica ao estudo do gênero ensaio, retomando sua origem francesa em Montaigne, passando por Lukács e Adorno e destacando sua dimensão de gênero fronteiriço, entre filosofia e texto ficcional ou literário. Na segunda parte o autor se concentra na análise dos ensaios de Camus, particularmente Le Mythe de Sisyphe e L'Homme révolté.

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com Camus, apresentando-o como prestes a se converter ao cristianismo, às vésperas de sua morte. Assim, trata-se de uma obra bastante suspeita, pela tentativa de "cristianizar" postumamente Camus e por um excessivo escrúpulo religioso (por exemplo, fazendo menção à visita do escritor ao Brasil, Mumma se refere ao ritual de macumba ao qual assistiu Camus como sendo um "baile negro").

Camus à Combat, da série Cahiers Albert Camus nº 8 (Paris: Gallimard, 2002), é uma coletânea completa dos artigos de Camus publicados no jornal Combat e não coincide exatamente com aquela publicada na edição da coleção Pléiade. Os artigos estão dispostos por ordem cronológica de publicação, mas a obra apresenta um "agrupamento temático", sendo os artigos classificados em temas como "A libertação de Paris", "A continuação da Guerra", "Política interna", "Política externa","Moral e política", etc., com títulos que remetem à pagina em que se encontram. Esta coletânea traz ainda um longo prefácio, apresentação e anotações de Jacqueline Lévi-Valensi, uma grande especialista de Camus.

Albert Camus une vie, de Olivier TODD (Paris: Gallimard, 1996) é uma vastíssima biografia do autor, a mais recente e completa. De leitura às vezes difícil, devido à profusão de detalhes que podem parecer irrelevantes ao leitor, a obra constitui, porém, um instrumental valioso para os estudiosos. Além da precisão de datas, lugares e acontecimentos históricos ou pessoais, Todd discute várias obras do autor, ainda que um pouco superficialmente, contextualizando-as bem. Além de muitíssimas notas, o livro apresenta uma rica bibliografia seletiva e um prático índice de nomes de autores e personalidades.

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úteis em nosso trabalho quando analisamos as relações deste autor com Camus, em particular a polêmica entre os dois, depois da publicação de L'Homme révolté.

Acerca das relações e da polêmica entre Camus e Sartre, Ronald ARONSON, um especialista norte-americano da obra de Sartre, publicou um vastíssimo livro (Camus & Sartre, amitié et Combat. Paris: Alvik, 2005). Aronson acompanha o contato dos dois autores desde que se encontraram em 1943 até depois da morte de Camus, pois julga que Sartre continua fazendo referências ao adversário já morto, e sublinha que esta relação foi muito mais próxima e muito mais forte do que se tem reconhecido. Trata-se de uma obra importante e esclarecedora em muitos aspectos. Nela, Aronson denuncia o caráter partidário com que a polêmica foi abordada por outros autores, entretanto ele próprio parece não alcançar a objetividade desejada; especialista em Sartre, parece demonstrar uma preferência pela opções políticas de Camus, mas, ao final do trabalho, apresenta como um engano gravíssimo a atitude de Camus, de silêncio e de oposição à separação total em relação à França, durante a guerra de independência da Argélia, atenuando, por outro lado, os silêncios e as "ilusões" de Sartre, quando de sua defesa do stalinismo e de seus métodos, ilusões hoje apontadas por vários autores como Michel Winock.

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A revista Europe publicou um número dedicado a Albert Camus (77e. année – nº 846/Octobre 1999). São cerca de 20 artigos sobre os mais diversos temas presentes na obra de Camus, os quais tratam da juventude do autor em Argel até aspectos de Le Premier homme. Entre os autores, há grandes especialistas de Camus, como Jacqueline Lévi-Valensi, Pierre-Louis Rey, Fernande Bartfeld, Jeanyves Guérin, Anne-Marie Amiot, Raymond Gay-Croisier, Christiane Chaulet-Achour e Olivier Todd.

Écriture autobiographique et carnets: Albert Camus, Jean Grenier, Louis Guilloux (Bédée: Folle Avoine, 2003) é o resultado de um encontro em Lourmarin, em 5 e 6 de outubro de 2001. Os artigos dedicados a Camus destacam a importância da escrita autobiográfica para o autor, que mantinha em seus Carnets numerosas anotações, posteriormente retomadas em sua obra literária.

Em L'Effet tragique, essai sur le tragique dans l'oeuvre de Camus (Champion-Slatkine: Paris-Genève, 1988) a autora, Fernande BARTFELD, volta-se não só para as peças de teatro de Camus, como também para os textos de outros autores que ele adaptou para o teatro; ela analisa ainda outros textos do autor, como L'Étranger, La Peste, La Chute e Le Premier Homme, e concede uma atenção especial aos escritos "perigráficos" e ao tema do mal-entendido, título de uma de suas peças e situação que o autor temia e da qual tentava em vão escapar. A autora faz numerosas críticas a Camus, destacando aquilo que, para ela, torna suas peças, sobretudo Caligula, mais próximas do melodrama do que da tragédia.

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humanismo. Como o título indica, o autor valoriza muito apropriadamente a classificação que Camus fez de sua obra, dividindo-a em três ciclos.

Alguns livros, mesmo não abordando diretamente a obra de Camus, nos ajudaram na compreensão de movimentos políticos, sociais e culturais que compuseram o ambiente do autor, tal é o caso de Condition de l’homme moderne, deHannah ARENDT (Paris: Calmann-Lévy, 1994). A autora desenvolve uma reflexão bastante próxima nalguns pontos daquela de Camus, discutindo as noções de civilização, trabalho, ação, violência, papel da linguagem e fazendo uma análise histórica dos sistemas totalitários, criticados por Camus. A autora, considerando a singularidade da existência humana e ao mesmo tempo a objetividade do mundo, desenvolve uma espécie de antropologia sociológica, destacando o valor da vida como bem soberano e a importância do coletivo, do social e do político, aspectos valorizados por Camus, como no romance La Peste. Na mesma linha do livro anterior, podemos citar Communisme, anarchie et personnalisme, de Emmanuel MOUNIER (Paris: Seuil,1966). Em Malraux Camus Sartre Bernanos L‘espoir des désespérés, (Paris: Seuil, 1953) Emmanuel MOUNIER aborda diretamente Camus, comparando-o com os outros escritores tratados, mas sublinhando bem as particularidades de seu pensamento, sobretudo a reflexão desenvolvida no Mythe de Sisyphe, em torno do Absurdo.

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finalmente, La naissance de la tragédie (Paris: Christian Bourgois, 1991) de Friedrich NIETZSCHE, visto que Camus faz algumas alusões ao autor.

Camus et la politique, sob a direção de Jeanyves GUÉRIN (Paris: L‘Harmattan, 1986) é uma obra coletiva, resultante do Colloque de Nanterre, realizado de 5 a 7 de junho de 1985. No geral, os autores mostram como Camus enfrentou os grandes embates políticos e sociais de seu tempo, com lucidez e coragem, destacando sua atuação durante a Segunda Guerra e pós Liberação e suas posições ante a Guerra da Argélia e o nacionalismo argelino; tratam ainda da relação de Camus com o comunismo e com o socialismo franceses e analisam a recepção das obras de Camus na Polonha, Tchecoslováquia, Alemanha (RFA) e Itália.

Semelhante ao anterior, porém mais recente é o livro Les trois guerres d’Albert Camus, sob a organização de Lionel DUBOIS (Poitiers: Pont-Neuf, 1995). Trata-se também de uma obra coletiva, fruto do Colloque International de Poitiers, realizado de 4 a 6 de maio de 1995 (o 1º colóquio internacional sobre Albert Camus). O encontro foi constituído de mesas redondas temáticas e de conferências públicas, contando com a contribuição de especialistas em Camus vindos da Argélia, Canadá, EUA, China e Europa. Os trabalhos são distribuídos em três pólos, a Segunda Guerra Mundial (que apresenta as atividade de Camus como jornalista e combatente), a Primeira Guerra Mundial (que descreve a juventude de Camus e o itinerário de seu pai, morto em batalha) e a Guerra da Argélia (vista como uma tragédia pelo autor de Noces). Em seu artigo, SHAOYI WU mostra como Camus e seus textos foram proscritos da China popular, de 1949 a 1979.

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Como embasamento teórico, nossas referências principais foram Descartes et l’argumentation philosophique (Paris: PUF, 1996), sob a direção de Frédéric COSSUTTA,

em especial os textos deste autor, a introdução em que ele se pergunta sobre as condições de possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e o capítulo "Argumentation, ordre de raisons et mode d'exposition dans l'oeuvre cartésienne"; e o capítulo escrito por Dominique Maingueneau que tem por título "Éthos et argumentation philosophique. Le cas du Discours de la méthode".

Dos trabalhos de Dominique MAINGUENEAU nos valemos de Sémantique de la polémique. Discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe Siècle (Lausanne: L‘Âge d‘homme, 1983) e Génèses du discours (Bruxeles: Pierre Mardaga, 1984) para o estudo do

texto polêmico e de Eléments de linguistique pour le texte littéraire (Paris: Bordas, 1990), Le contexte de l'oeuvre littéraire (Paris: Dunod, 1993) e Le discours littéraire. Paratopie et scène d'énonciation(Paris: Armand Colin, 2004) para o estudo do texto literário.

Para desenvolvermos a questão dos gêneros foram-nos fundamentais as obras: Théorie des genres, de Gérard GENETTE et alii. (Paris: Seuil, 1986) e Les genres littéraires, de Dominique COMBE (Paris: Hachette, 1992).

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Foram-nos úteis, enfim, os textos publicados por Dominique Maingueneau na internet, no site de seu grupo de estudos, o CEDITEC (Centre d’étude des discours, images, textes, écrits, communications):

http://www.univ-paris12.fr/www/labos/ceditec/maingueneau.html

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2 O INTRADISCURSO

2.1 ELEMENTOS POÉTICOS E TEÓRICOS

Dividindo seus escritos principais em dois ciclos, do Absurdo e da Revolta, Camus desenvolveu uma obra projetada para muitos anos e figurada sob várias formas. Ele se exprimiu em três grandes gêneros: a narrativa sob forma de romances e contos, as peças de teatro e os ensaios filosóficos ou críticos, além dos escritos jornalísticos. No próprio interior da obra narrativa apresenta-se uma real variedade de modos de narração. Tratando em modos discursivos diferentes uma problemática comum que confere unidade ao conjunto, Camus transita pelos campos da literatura, da filosofia e do jornalismo, e seus textos de ficção dão uma versão romanesca da reflexão filosófica que ele prossegue em seus escritos teóricos. Ele conjuga a criação poética com a reflexão ideológica: seus romances e peças de teatro têm como pano de fundo sua visão filosófica do Absurdo e da Revolta, seus ensaios filosóficos apresentam os recursos e as imagens próprios dos textos poéticos.

Camus privilegia uma determinada concepção de literatura e também de filosofia, propõe um diálogo entre os campos do saber e busca se definir por oposição aos romancistas de tese e aos filósofos profissionais. Ele não vê a filosofia como discussão abstrata e sistematizada, como doutrina fechada, mas como reflexão crítica sobre as questões que mais diretamente atingem o homem, como um questionamento que pode estar presente em textos poéticos.

Camus afirma que não é filósofo: ―Je ne suis pas un philosophe et je n‘ai jamais prétendu l‘être‖ (CAMUS, 1965, p.743). É verdade que ele ―não crê o bastante na razão para

crer num sistema‖ e se recusa a entrar nas formas reconhecidas e tradicionais da filosofia. O

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lado, esta afirmação parece funcionar como uma forma de prevenção às exigências que são impostas àqueles que se propõem como filósofos. Antes dele, Nietzsche se propunha inicialmente como filólogo, na busca de ocupar um espaço no campo da filosofia.

Criticando o conceito abstrato e defendendo a imagem, Camus propõe uma imbricação entre os campos. À época de sua publicação, a dimensão poética dos ensaios Le Mythe de Sisyphe e L'Homme révolté foi interpretada como ausência de rigor filosófico, porque prevalecia, na França, a tradição do discurso filosófico de caráter teórico, construído sobretudo a partir de conceitos. No entanto, este ―modelo‖ de escrita filosófica foi questionado, da mesma forma que a exigência de separação definida entre as áreas do saber. Como observa Michel Foucault:

É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a distinção dos grandes tipos de discurso ou a das formas ou dos gêneros que opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc., e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas? Nós próprios não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de discursos, e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram, na época de sua formulação, distribuídos, repartidos e

caracterizados de modo inteiramente diferente: afinal, a ―literatura‖ e a ―polìtica‖ são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura

medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma hipótese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas; mas nem a literatura, nem a política, nem tampouco a filosofia e as ciências, articulavam o campo do discurso no século XVII ou XVIII, como o articularam no século XIX (FOUCAULT, 2002, p.25).

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partir de determinado momento. Ele fala deste plano preciso num discurso em Estocolmo, em 1957, ao receber o prêmio Nobel:

J‘avais un plan précis quand j‘ai commencé mon oeuvre: je voulais d‘abord

exprimer la négation. Sous trois formes. Romanesque: ce fut L’Étranger.

Dramatique: Caligula, Le Malentendu. Idéologique: Le Mythe de Sisyphe.

[...] je prévoyais le positif sous les trois formes encore. Romanesque: La Peste. Dramatique: L’État de siège et Les Justes. Idéologique: L’Homme

révolté (CAMUS, 1965, p.1610).

Mas há anotações datadas de 1947 e outras bem anteriores; assim, em 21 de fevereiro de 1941, Camus escreve em seu Carnet: ―Terminé Sisyphe. Les trois absurdes sont achevés‖ (CAMUS, 1962, p.224). Já invocando o engajamento sócio-político de Camus e sua busca de uma ética, Roger Grenier faz alusão às noções de Absurdo e Revolta, a partir das quais se constrói o plano de conjunto em que se organiza sua obra:

Peut-être parce qu‘il était d‘origine très humble et qu‘il avait dû se battre pour conquérir le droit à la culture, il ne pouvait se contenter d‘être un

artiste. Il n‘a rien d‘un dilettante, ni d‘un sceptique, ni d‘un cynique. Il

cherche à se faire du monde une vision cohérente, dont découlera une

morale, c‘est-à-dire une règle de vie. Si sa première analyse le conduit à

conclure à l‘absurde, ce n‘est pas pour s‘y complaire, mais pour chercher une issue, la révolte, l‘amour (GRENIER, 1987, p.9).

Nas classificações de sua obra, Camus começa com L’Étranger, não mencionando Révolte dans les Asturies (1936), L’Envers et l’endroit (1937), Noces (1938) e La Mort heureuse. Há ainda Lettres à un ami allemand (1945) e as obras que são posteriores a L’Homme révolté: L’Été (1954), La Chute (1956), Réflexions sur la guillotine (1957) (cujo

(29)

Actuelles III (1958). Os textos agrupados sob os dois ciclos são as obras principais do escritor mais conhecidas, lidas e estudadas, os demais textos não obtiveram o mesmo estatuto.

Não abordamos diretamente estes textos, mas consideramos que o fato de Camus não os mencionar em suas classificações não significa que ele os visse como desprovidos de valor literário; certamente não os julgava suficientemente elaborados, sobretudo os do início de sua carreira. Eles têm, contudo, sua importância, principalmente L’Envers et l’endroit, o primeiro

a ser publicado, na Argélia em 1937 e na França só em 1958, que apresenta em esboço os grandes temas desenvolvidos em trabalhos posteriores. Camus via nesta pequena obra a fonte secreta que alimenta tudo mais que escreve, daí sua importância para o estudo de outros textos.

Camus nunca negou sua origem proletária e destacou mais tarde como os primeiros textos escritos no ambiente da terra onde nasceu e da origem pobre são marcantes para seu futuro como escritor:

Pour moi, je sais que ma source est dans l’Envers et l’Endroit, dans ce

monde de pauvreté et de lumière où j‘ai longtemps vécu et dont le souvenir

me préserve encore des deux dangers contraires qui menacent tout artiste, le ressentiment et la satisfaction (CAMUS, 1965, p.6).

Le Premier homme (1995), sua última obra, de publicação póstuma e bastante tardia, constitui uma obra inacabada e não se pode esquecer seu caráter de redação incompleta e provisória. Além dos temas do Absurdo e da Revolta, Camus pretendia prolongar sua obra numa terceira etapa, que a morte prematura o impediu de concretizar, cujo tema seria o Amor. De acordo com o testemunho de amigos, Camus projetava um grande romance "mais elaborado" e longo em torno do tema do amor. Conforme as palavras de Salvador de Madariaga:

Et puis Camus possédait au plus haut degré une qualité qui marque le génie,

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génie est toujours modeste. Quelques semaines avant sa mort, à Paris, me

parlant d‘un grand projet littéraire qui occupait son esprit, il me dit tout

simplement, avec une gentillesse presque enfantine : "Je ne sais pas encore si je trouverai en moi la force de le mener à bout." Voilà, me disais-je, en

regardant ses yeux droits, l‘attitude naturelle au génie vraiment créateur [...]

(MADARIAGA In : BLANCHOT et alii, 1967, p.148).

Há ainda o testemunho de Giacomo Antonini, que retoma os ciclos em que se divide a obra do autor:

[...] il me traça brièvement le plan de toute son oeuvre. Première étape : L’Étranger, Le Mythe de Sisyphe, Caligula et Le Malentendu, la même idée développée de trois manières différentes dans le domaine du roman, celui de

l‘essai et au théâtre. Deuxième étape : La Peste, L’Homme révolté, Les

Justes, où sa prise de position, sa réaction contre l‘absurde de l‘existence

dénoncé dans les oeuvres de la première étape trouvait son expression. La Chuteet les nouvelles qu‘il allait réunir dans le volume L’Exil et le Royaume étaient un intermède avant la troisième étape, qui serait la plus importante et qui commencerait avec un roman, un véritable roman. De ce roman, il me parla la dernière fois que nous nous vîmes, quelques semaines avant sa fin si affreuse, brusque et inattendue. A ce roman, il attachait beaucoup de prix.

Un essai devait d‘ailleurs suivre plus tard. Comme je lui faisais remarquer

que les offres qui lui parvenaient de tous les côtés auraient interféré dans son travail de romancier en retardant l‘exécution de son projet, il me dit : "Non,

j‘ai tout refusé et je refuserai tout en 1960. Ce sera l‘année de mon roman. J‘ai tracé le plan et je me suis mis sérieusement au travail. Ce sera long, mais j‘y parviendrai." (ANTONINI In : BLANCHOT et alii, 1967, p.172)

Ao receber o prêmio Nobel Camus afirma que não se considera um autor "acabado" e que sua obra ainda está por vir. O projeto de um romance pode ser também deduzido das notas em que projeta, na seqüência do tema da Revolta, o tema do amor. De toda forma, cremos que o romance do qual Camus chegou a falar aos amigos não pode ser identificado com Le Premier homme. Não podemos tecer considerações sobre a obra que ele não pôde concretizar, mas a existência deste projeto, mesmo não levado a cabo, lança uma luz sobre a obra existente.

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obra de Camus, inclusive os dois grandes romances que o tornaram mundialmente conhecido, como ensaios, ou essais, no sentido que o francês revela melhor, por abarcar ao mesmo tempo a dimensão mais geral e corriqueira de tentativa ou "ensaio" e a dimensão de gênero inaugurado na França por Montaigne (mesmo se vai sofrendo modificações ao longo do tempo, a ponto de hoje se poder distinguir entre ensaio filosófico, literário, lírico etc.). Além disso, estes romances, mesmo não constituindo obras de tese, podem ser considerados como portadores de uma dimensão filosófica ou "ideológica" que lhes é subjacente, um pouco à maneira dos romances de André Malraux (na Peste, o Dr Rieux, Rambert e Tarrou são personagens de ação, mas, como os heróis de Malraux, refletem muito sobre o sentido desta ação) ou daqueles de José Saramago (para tomarmos um autor mais recente, e que intitula justamente Ensaio sobre a cegueira um romance que apresenta em alguns momentos semelhanças tocantes com La Peste).

As adaptações de peças para o teatro são textos também particulares, sob certo aspecto. Não são totalmente obras de Camus, visto que ele parte de textos prontos. Mas as modificações por ele efetuadas são sinais de seu trabalho criativo e marcas de seu estilo. Além disso, a própria opção de Camus ao escolher determinados autores e determinadas obras, ao invés de outros, já é significativa. Esta escolha é uma forma de aprovação. Ele adapta La dévotion à la croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953), Un cas intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega (1957), Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, de Dostoievski (1959).

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França em 1935. Como afirma Roger Grenier, "Le Temps du mépris avait le mérite d‘être la première oeuvre littéraire, en France, à traiter du nazisme et des ses horreurs" (GRENIER, 1987, p.39). A opção de Camus por esta peça, encenada em 1936, e cuja arrecadação foi destinada a apoiar um grupo de desempregados, mostra o despertar bastante precoce de sua consciência política. Além disso, Camus faz uma transposição de um gênero para outro, não retoma apenas peças, mas adapta romances para o teatro. E dá características de peças ao romance: vale lembrar a estrutura de La Peste, da qual trataremos adiante, que é semelhante à de uma peça de teatro.

2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS

Buscamos nos concentrar em nossa pesquisa sobre os textos de Camus que compõem o Ciclo da Revolta, mas é preciso evocar de certa forma os textos da primeira fase, do Ciclo do Absurdo, e outros escritos não agrupados nesta subdivisão, porque, da mesma forma que Camus busca associar reflexão e texto poético, há também um diálogo subjacente entre suas obras e as de autores que ele aprecia, como Jean Grenier, Malraux, Gide e Dostoievski, por exemplo. E, finalmente, há um diálogo interno constante entre suas próprias obras que, de alguma maneira, se referem umas às outras.

Em 1937, Camus publica uma coletânea de ensaios, L'envers et l'endroit, em que estão presentes elementos autobiográficos e uma reflexão de ordem moral é filosófica. E ainda temas que retornam em obras posteriores como a vida cotidiana, a solidão, a estranheza para os outros e para si próprio, a beleza da natureza mediterrânea, a felicidade e a infelicidade de viver, a condenação à morte. O ―eu‖ narrador dos ensaios afirma ao mesmo tempo sua

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L'État de siège é muito próximo da Peste e ante alguns críticos que viam na peça uma transposição do romance, Camus afirma que não se trata de uma adaptação e que o projeto da peça precedia o do romance. L'Étranger contém ―a história do Tchecoslovaco‖ que servirá de tema ao Malentendu, e é toda a história do Malentendu, com a diferença de que, na peça, Jan volta sem filho e que ele é dopado e em seguida afogado e não assassinado a golpes de martelo:

Entre ma paillasse et la planche du lit, j‘avais trouvé, en effet, un vieux morceau de journal presque collé à l‘étoffe, jauni et transparent. Il relatait un fait divers dont le début manquait, mais qui avait dû se passer en

Tchécoslovaquie. Un homme était parti d‘un village tchèque pour faire

fortune. Au bout de vingt-cinq ans, riche, il était revenu avec une femme et un enfant. Sa mère tenait un hôtel avec sa soeur dans son village natal. Pour les surprendre, il avait laissé sa femme et son enfant dans un autre

établissement, était allé chez sa mère qui ne l‘avait pas reconnu quand il était entré. Par plaisanterie, il avait eu l‘idée de prendre une chambre. Il avait

montré son argent. Dans la nuit, sa mère et sa soeur l‘avaient assassiné à

coups de marteau pour le voler et avaient jeté son corps dans la rivière. Le

matin, la femme était venue, avait révélé sans le savoir l‘identité du

voyageur. La mère s‘était pendue. La soeur s‘était jetée dans un puits. J‘ai dû lire cette histoire des milliers de fois. D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle. De toute façon, je trouvais que le voyageur l‘avait un peu mérité et qu‘il ne faut jamais jouer (CAMUS, 1962, p.1182).

Este comentário, em L'Étranger, sobre a história é válido também para Le Malentendu — D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle‖ — e é retomado

quase literalmente na Peste: ―Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à d‘autres, invraisemblables au contraire‖ (CAMUS, 1962, p.1221). Camus inseriu na Peste outra

referência a L'Étranger:

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La Peste também traz uma lembrança do Malentendu, pois aì se lê: ―Compreendi que toda a infelicidade dos homens vinha do fato de que eles não mantinham uma linguagem clara‖, e a falta de transparência na comunicação e na linguagem é justamente um dos temas

do Malentendu. Nos Carnets de Camus, em dezembro de 1938, há observações referentes a Caligula, ao lado de notas ou de fragmentos para La Peste. O próprio Calígula surge como encarnação da peste: ―C‘est moi qui remplace la peste‖ (CAMUS, 1962, p.94), o que mostra

que, para Camus, a noção de flagelo e o símbolo da peste são indissociáveis da representação do mal.

As peças de teatro de Camus que ele inclui na temática da Revolta são L'État de siège e Les Justes. Sobre estas peças, os escritos jornalísticos e os textos autobiográficos, não nos detemos; fazemos referência a estes textos com o objetivo de destacar a diversidade de gêneros com que se faz a produção de Camus.

Em 1935 Camus assumiu a Maison de Culture de Argel e, ainda em Argel, fundou, no ano seguinte, o ―Théâtre du travail‖. Camus era membro do Partido Comunista, ao qual aderiu

em 1935 e no qual permaneceu até 1937. Suas atividades dentro do partido se concentravam no recrutamento em meio muçulmano e na condução da companhia, que se propunha como popular e revolucionária, e nela Camus trabalhou como animador, ator, diretor, encenador e freqüentemente adaptador. Era a primeira manifestação de sua paixão pelo teatro. Seu ingresso no campo do teatro, da mesma forma que sua entrada no jornalismo, está associado a um posicionamento político, o que mostra que as atividades do escritor como jornalista e como dramaturgo são inseparáveis, desde o início de sua carreira, de seu engajamento social.

Camus desenvolveu suas atividades teatrais no ―Théâtre du Travail‖ de 1935 a 1937.

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em parte e dirigida por ele; julgada subversiva pelo prefeito de Argel, teve por isso sua representação proibida. Camus adaptou e montou ainda Le Retour de l’enfant prodigue, de Gide, Le Temps du Mépris, de André Malraux, Le Paquebot Tenacity, de Vildrac, La Femme silencieuse, de Ben Johnson, Le Prométhée, de Ésquilo e Os irmãos Karamazov, de Dostoievski, entre outros.

Enquanto autor propriamente dito, Camus tem uma obra dramática bastante reduzida: Caligula (1944), Le Malentendu (1944), L'État de siège (1948)e Les Justes (1950). A partir de 1952, voltou de forma mais intensa ao teatro e retomou suas adaptações: La dévotion à la croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953), Un cas intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega (1957), Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, De Dostoïevsky (1959). Além disso, o teatro foi para Camus uma de suas paixões, não só como forma de escrita, mas principalmente como lugar de uma comunhão, graças a sua dimensão comunitária e de equipe. Em 1958, numa entrevista, ele destacou a importância que dava ao teatro:

Je retrouve au théâtre cette amitié et cette aventure collective dont j‘ai besoin et qui sont encore une des manières les plus généreuses de ne pas être seul.

[...] Avec la littérature, cette passion est au centre de ma vie. Je m‘en rends

mieux compte maintenant (CAMUS, 1962, p.1713).

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como na Peste, as falas dos personagens assumem freqüentemente o tom de uma discussão ética.

KALIAYEV: Non. Je sais ce qu‘il pense. Schweitzer le disait déjà: "Trop extraordinaire pour être révolutionnaire." Je voudrais leur expliquer que je ne suis pas extraordinaire. Ils me trouvent un peu fou, trop spontané.

Pourtant, je crois comme eux à l‘idée. Comme eux, je veux me sacrifier. Mois aussi, je puis être adroit, taciturne, dissimulé, efficace. Seulement, la

vie continue de me paraître merveilleuse. J‘aime la beauté, le bonheur !

C‘est pour cela que je hais le despotisme. Comment leur expliquer ? La révolution, bien sûr ! Mais la révolution pour la vie, pour donner une chance à la vie, tu comprends ? (CAMUS, 1962, p.322)

"Les Meurtriers délicats", um capítulo de L'Homme révolté, trata dos terroristas russos de 1905, o que nos permite pensar que a peça teve sua origem durante a longa preparação do ensaio.

L'État de siège foi realizado com a colaboração de Jean-Louis Barrault que, após a publicação da Peste, propôs a Camus a realização de um espetáculo sobre o tema. Não se trata de uma peça de estrutura tradicional, mas de um espetáculo em que se busca reunir todas as formas de expressão dramática, não é, contudo, como explicou Camus, uma adaptação do romance. Pelo fato de que o único meio de vencer a peste é não ter medo, o tema da Revolta se manifesta:

LA SECRÉTAIRE: Il y a une malfaçon, mon chéri. Du plus loin que je me

souvienne, il a toujours suffi qu‘un homme surmonte sa peur et se révolte pour que leur machine commence à grincer. Je ne dis pas qu‘elle s‘arrête, il s‘en faut. Mais enfin, elle grince et, quelquefois, elle finit vraiment par se gripper (CAMUS, 1962, p.273).

Ao situar o desenvolvimento da ação em Cadix, Camus fez uma denúncia direta do sistema de Franco na Espanha. A representação da peça, apesar da expectativa criada pela associação entre um diretor e um autor já renomados, não obteve sucesso de público.

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história e se voltam prioritariamente para o momento em que são escritos, mas constituem ao mesmo tempo espaço privilegiado para o autor desenvolver sua reflexão, estreitamente relacionada com aquela presente nos ensaios. Para os estudiosos, estes textos podem despertar um interesse especial e funcionar como fonte de esclarecimento para as demais produções do autor, sobretudo porque transparecem neles, de forma mais direta, as concepções éticas e políticas bem como os posicionamentos do autor na sociedade e nos campos dos saberes, e estes textos jornalísticos refletem igualmente seu engajamento social.

Camus trabalhou como jornalista com entusiasmo e idealismo, esta atividade era para ele uma verdadeira profissão. Ele propunha um jornalismo crítico e sério, criticava os meios de comunicação que se preocupava mais em informar rapidamente do que em informar bem, sem separar os fatos das interpretações, e criticava sobretudo a manipulação possível da informação a que alguns jornais se entregavam. Ou seja, trata-se de um jornalismo crítico da realidade histórica e, ao mesmo tempo, crítico sobre seu próprio papel.

Camus iniciou sua carreira de jornalista na Argélia, em outubro de 1938, trabalhando no "Alger Républicain", o jornal do qual Pascal Pia era o redator-chefe e que fora fundado em Argel para se constituir como órgão do ―Front populaire‖. Além de crônicas judiciárias e literárias, Camus publicou comentários polêmicos da vida política de Argel, e fez reportagens politizadas, como ―Misère de la Kabylie‖, de 1939. Por causa da Guerra, ―Alger Républicain‖

se tornou ―Le Soir Républicain‖, do qual Camus foi redator-chefe até inícios de 1940. Após

muitos problemas com a censura o jornal foi fechado definitivamente. Camus, sem trabalho, deixou a Argélia e foi para a França; com exceção de uma estada no ano seguinte, ele só voltará à Argélia de tempos em tempos.

No inìcio de 1940, Camus estava em Paris e trabalhava no jornal ―Paris-Soir‖, como

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do qual foi redator-chefe de 1944 a 1947. Em 21 de agosto de 1944 saiu o primeiro número de ―Combat‖ fora da clandestinidade, com um notável editorial de Camus. Sua participação no

jornal foi intensa: em maio de 1945 protestou contra a repressão dos motins de Sétif, em agosto foi um dos raros a denunciar o horror das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki: ―La civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie‖;

em 1946 publicou uma série de artigos: Ni victimes ni boureaux; em 1949 lançou um apelo em favor dos comunistas gregos condenados à morte.

Durante algum tempo o jornal foi não só o mais lido como também o mais respeitado da França, e a atividade de Camus em ―Combat‖ contribuiu muito para sua popularidade. L'Étranger fora publicado em 1942 e obtivera um sucesso imediato. Dessa forma, a produção literária aumentava o prestígio do editorialista, ao mesmo tempo em que a atividade do editorialista refletia na divulgação de sua produção literária. Esta situação perdurou durante um longo tempo, exceto nos países dominados pelo comunismo, como a Tchecoslováquia, a Alemanha Oriental, a Hungria, a Polônia e a China, entre outros, nos quais o nome e a pessoa do autor foram proscritos, depois que ele foi rotulado de anti-comunista em função de suas críticas ao sistema. Conforme Shaoyi Wu: "À la suite de la fondation de la Chine populaire, durant trente ans, de 1949 à 1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert Camus; et sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays." (WU. In : DUBOIS, 1995,

p.283)

Camus voltou ao jornalismo em 1955, com uma série de artigos no jornal ―L‘Express‖. Seus artigos em ―Alger Républicain‖ e em ―Soir Républicain‖, particularmente a reportagem intitulada ―Misère de la Kabylie‖, sua posição em favor de uma paz verdadeira,

a participação na Resistência, os editoriais de ―Combat‖, são testemunhos de um engajamento

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Os escritos mais diretamente autobiográficos de Camus assumiram a forma de Carnets, que não constituem um diário, tratando-se, às vezes, de simples anotações em vistas à elaboração de seus textos de narrativas ou ensaios. Na verdade, na Peste, as referências à própria biografia feitas por Camus são extremamente discretas e sutis, evitando-se toda forma de subjetividade exacerbada ou de narcisismo. São dados de um escritor engajado, mas comuns a outros escritores engajados que viveram o mesmo momento do século XX. Há ainda o caso de Le Premier Homme, que poderia ser visto como uma espécie de auto-ficção, de romance/autobiografia, como também outros escritores parecem produzi-los, mesmo sem se darem conta.

O primeiro volume dos Carnets de Camus foi publicado em 1962 com o título Carnets I - mai 1935 - février 1942. Suas anotações feitas durante as viagens à América do Norte e à América do Sul foram publicadas à parte, com o título de Journaux de voyage, 1946-1949. Há de se observar que os Carnets de Camus eram, na verdade, cahiers e que o título Carnets foi mantido pelos editores para se evitar confudi-los com os Cahiers Albert Camus, agrupamento de textos de teóricos sobre o autor.

Ao apresentar suas observações e reflexões sob a denominação de Carnets, Camus busca evitar a conotação narcisística ligada ao diário (Journal), principalmente se é qualificado de "íntimo".

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unique d‘un homme se fortifie dans ses visages successifs et multiples que sont les oeuvres‖

(CAMUS, 1965, p.190). E ainda: ―Je ne crois pas, en ce qui me concerne aux livres isolés. Chez certains écrivains, il me semble que leurs oeuvres forment un tout où chacune s‘éclaire

par les autres, et où toutes se regardent.‖ (CAMUS, 1965, p.743), o que mostra que, para o

autor, a interpenetração de suas obras e o diálogo entre elas não é um fenômeno casual, mas corresponde a uma intenção deliberada.

2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO

O tema da morte, relacionado com as noções de Absurdo e de Revolta, é um dos mais recorrentes na obra de Camus. Através dele também se constrói o diálogo entre os textos. Este tema está presente nas quatro peças de teatro: Caligula se estrutura em torno das mortes de Drusila, a daqueles que Calígula manda executar e de sua própria morte; Le Malentendu fala do assassinato por engano de Jan, cometido por sua mãe e sua irmã, que se suicidam; Les Justes discute o assassinato como arma da revolução e questiona a morte dos inocentes; L'État de Siège trata da morte "em massa", numa perspectiva muito próxima daquela desenvolvida na Peste. O tema também é central nos dois romances e nos dois ensaios: L'Étranger se desenvolve em torno de três mortes: a da mãe de Meursault, a do árabe e a do próprio Meursault; La Peste mostra a todo momento a presença da morte como conseqüência do flagelo. Le Mythe de Sisyphe se inicia com uma discussão sobre a morte voluntária, que é vista como uma tentativa malograda de escapar ao Absurdo; em L'Homme révolté se discute a morte imposta aos outros, como crime, muitas vezes justificado por uma ideologia.

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homens. É por isso mesmo que se a morte é sempre um absurdo, mais absurda é a morte que alguns homens impõem a outros.

Essa idéia de ―complicação‖ é evocada por Camus: ―Oui, tout est simple. Ce sont les

hommes qui compliquent les choses‖ (CAMUS, 1965, p.30); ela nos ajuda a entender que na

noção de Absurdo há pelo menos dois sentidos básicos: um primeiro, de gratuidade e de contingência que engloba o aspecto do conflito entre os anseios humanos e a indiferença do mundo (ou em outros termos, o aspecto do caráter não dedutível do mundo, da impossibilidade de uma compreensão exaustiva da realidade e o aspecto do gratuito que emerge na vida humana, aspectos que seriam inerentes à próxima situação humana, mesmo numa realidade própria dos ideais de justiça e de liberdade); e um segundo sentido, de absurdo enquanto ―complicação‖, ou seja, o aspecto ―irracional‖ da humanidade que atenta contra si própria, tanto do ponto de vista individual quanto social, trata-se aqui do absurdo enquanto soma de males que os homens trazem à precariedade já presente em sua existência.

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No romance L'Étranger, duas mortes caracterizam bem essa distinção e são como que reflexos marcando esse duplo sentido do Absurdo. A morte do árabe, mesmo configurando um crime cometido por Meursault, não aparece com a força de um homicídio, por causa das circunstâncias em que ocorreu, sem o elemento de premeditação e com Meursault num estado de atordoamento; tanto que mesmo se ele é capaz, por um lado, de assumir as conseqüências de seu ato, não consegue, por outro lado, explicar, nem para si mesmo, como foi capaz de cometer tal crime; esta é uma das faces do Absurdo. A outra morte é a do próprio Meursault que, mesmo aparecendo sob certo aspecto como uma punição e, portanto, como expressão da justiça dos homens, pode ser vista como uma maquinação do aparelho judiciário e como uma exigência criada pelos homens da lei. Ela aparece muito mais como uma necessidade forjada pelo julgamento em si mesmo do que como uma sanção aplicada ao culpado. Por ser uma pena desproporcional ao crime e por causa da forma como chegam a ela, ela pode figurar mais como uma arbitrariedade de uma instituição do que como aplicação da justiça, de forma que o leitor pode ter a impressão de que Meursault é muito mais vítima do que culpado; esta é a outra face do Absurdo, enquanto atitude de pagar o mal com o mal e, sobretudo, enquanto ―complicação‖ feita pelos homens, no caso, os homens da lei que agem motivados muito mais

pelas convenções sociais e pelo desejo de vingança sobre uma presa fácil do que pelo ideal de justiça.

Na Peste, a doença é a imagem de tudo que causa a morte. Há quem veja na condenação à morte o tema central da obra, como Rachel Bespaloff, que afirma: ―le thème central de son oeuvre [La Peste], c‘est la condamnation à mort. Peu importe, ici, que ce soit la nature, le destin, la justice ou la cruauté humaines qui prononcent la sentence‖ (BESPALOFF,

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combate contra a morte, e o personagem Tarrou justifica sua luta contra o flagelo afirmando: "J'ai horreur des condamnations à mort!" (CAMUS, 1962, p.1321) A relação estreita entre La Peste e L'Homme revolté, do qual trataremos abaixo, manifesta-se pela recorrência do tema da morte e pela crítica ao crime e à condenação à morte.

No Mythe de Sisyphe, Camus fala da morte voluntária, que é vista não só como uma expressão do Absurdo, mas como uma busca vã de escapar a ele. O ensaio se inicia com uma discussão sobre o suicídio, que é visto, da mesma forma que a esperança, como uma tentativa de negar o Absurdo. O suicídio atesta a absurdidade da existência, ele é um sintoma de que o indivíduo se dá conta de que a existência não tem sentido, entretanto, ele não se justifica. Embora pareça, à primeira vista, que a conclusão mais lógica à descoberta da absurdidade seja o suicídio, a reflexão do Mythe de Sisyphe se esforça para demonstrar que esta lógica é falsa. Para Camus, é um erro supor que recusar um sentido à vida conduz necessariamente à conclusão de que ela não vale a pena ser vivida (Cf. CAMUS, 1965, p.103). Assim, Camus vê no suicídio uma tentativa de escapar ao Absurdo, mas defende que o Absurdo exige a resistência e não o consentimento:

On peut croire que le suicide suit la révolte. Mais à tort. Car il ne figure pas son aboutissement logique. Il est exactement son contraire, par le

consentement qu‘il suppose. Le suicide, comme le saut, est l‘acceptation à sa limite. [...] A sa manière, le suicide résout l‘absurde. Il l‘entraîne dans la même mort. Mais je sais que pour se maintenir, l‘absurde ne peut se résoudre

(CAMUS, 1965, p.138).

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contestação. O importante é enfrentar este Absurdo, e ultrapassá-lo de certa maneira, através do engajamento com a comunidade histórica.

2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA

O diálogo com a cultura grega clássica presente em diferentes obras de Camus faz com que estas obras se refiram umas às outras, reforçando assim o diálogo também entre elas. Camus se interessava pelos gregos, conhecia os clássicos e muitas reescrituras de textos clássicos por autores modernos. Os autores da Antigüidade são marcantes na formação intelectual e na produção literária do escritor, que buscou entre os gregos modelos e motivos de inspiração.

Admirador da Grécia clássica e estudioso de sua herança cultural, Camus associa a cada ciclo de sua obra um mito grego e cada etapa se desenvolve à luz de uma figura mitológica: Sísifo encarna o Absurdo e Prometeu, a Revolta; ao tema do Amor corresponderia a figura de Nêmesis. Além disso, o "mito" constitui o fio condutor através do qual se articulam imaginação e reflexão, como base da estética camusiana; e sua ética também é marcada por elementos oriundos do pensamento grego, principalmente pela noção de "limite".

No Mythe de Sisyphe, a referência à mitologia está presente desde o título do ensaio. Ao final desta obra, Camus desenvolve de maneira própria a versão grega do mito, ressaltando alguns aspectos que ele valoriza de maneira especial: o gosto de Sísifo por este mundo, pelo mar e pelo sol, seu desprezo pelos deuses, seu ódio contra a morte e seu amor pela vida, enfim, sua lucidez: ―Si ce mythe est tragique, c‘est que son héros est conscient. Où serait en effet sa peine, si à chaque pas l‘espoir de réussir le soutenait?‖ (CAMUS, 1965,

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Sísifo foi condenado principalmente por se mostrar astucioso a ponto de enganar a própria morte. Ele a prendeu de maneira que ela não pôde levá-lo aos Infernos. Ao se dar conta de que ninguém mais morria, Zeus mandou que soltassem a morte. Mas Sísifo tinha outros estratagemas e havia de antemão instruído sua esposa a não lhe fazer funerais adequados. Assim, ele pôde convencer Hades a deixá-lo partir de novo para o convívio entre os vivos. Uma vez de volta ao mundo, Sísifo se recusou a retornar para junto dos mortos. Foi preciso que a morte viesse buscá-lo à força. Ele é condenado, então, a empurrar sem fim um rochedo até o alto de uma montanha. Ao chegar a alguns passos do cume, suas forças lhe faltam e a pedra rola de novo para baixo. Ele deve então recomeçar seu esforço, sem fim, pois sempre suas forças acabam no último momento.

Camus retoma a figura mitológica de Sísifo para fazer dele o símbolo da condição humana e propõe que o imaginemos feliz. Camus qualifica Sísifo como último herói absurdo, no ensaio em que busca demonstrar por que a vida, apesar da absurdidade do destino, merece ser vivida. A pena de Sísifo seria uma metáfora da própria vida, percebe-se a absurdidade do personagem tanto no desespero de tentar escapar a uma morte inevitável quanto na tentativa de concluir um trabalho interminável.

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clemência e foi libertado. Para Camus, Prometeu é o grande amigo dos homens, o philánthropos por excelência.

Nêmesis, na mitologia grega, é a deusa da proporção e da vingança dos crimes. Ela representa a justiça distributiva e o ritmo do destino, encarnando a indignação face ao excesso ou exagero. Ela castiga aqueles que "ultrapassam o limite", ou seja, que vivem um excesso de felicidade entre os mortais, ou o orgulho excessivo entre os reis. Nas tragédias gregas Nêmesis aparece principalmente como aquela que pune a hibris, o pecado da desmedida.

Associando diretamente as noções de Absurdo e de Revolta a personagens mitológicos e cifrando os ciclos pela mitologia, Camus remete o conjunto de sua obra à cultura grega clássica. Os mitos gregos fazem parte de seu universo intelectual: o Absurdo e a Revolta tomaram definitivamente para ele as faces de Sísifo e de Prometeu. Na verdade, Camus se interessou muito cedo pela antigüidade clássica e a presença dos gregos se manifesta em sua concepção do teatro e também diretamente em outros textos, inclusive seu primeiro trabalho acadêmico, uma monografia universitária que já revela um contato com o pensamento grego e um interesse pelos clássicos. Em 1936, para a conclusão de seu curso universitário de filosofia, ele escolheu como tema de sua monografia as relações entre helenismo e cristianismo, abordando especificamente Plotino e Santo Agostinho; através do neoplatonismo, é a Grécia que se revela objeto de sua escolha.

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orgueilleux d‘accepter, court la résonance d‘une sensibilité toute moderne. Aussi bien prend-elle sa source dans le problème du mal‖ (CAMUS, 1965, p.1253).

Abordando Santo Agostinho, Camus o imagina dividido entre a sensualidade, o gosto pelo racional e o desejo de fé que nasce da descoberta do mal. No trabalho, já aparecem as reações pessoais de Camus, configuradas no Mythe de Sisyphe. Plotino fortalece nele o desejo de compreender, Santo Agostinho opõe ao conhecimento limites intransponíveis. Plotino o incita a desconfiar do arbitrário de toda fé, Santo Agostinho, dos devaneios da razão. Camus parece então próximo dos gregos e fascinado por alguns temas cristãos. Admira Plotino que se esforça para pôr o sentimento em formas lógicas, e é igualmente seduzido pela angústia trágica de Santo Agostinho. A necessidade de coerência e a inquietude que Camus identifica neste último parecem reflexos de suas próprias experiências. O trabalho demonstra ao mesmo tempo uma simpatia pelo cristianismo, considerado como uma recusa da serenidade socrática, como uma espécie de heroísmo espiritual, e também uma desconfiança ante o providencialismo cristão.

Como afirma Roger Quilliot: ―Camus a peut-être plus appris sur lui-même en écrivant

ce diplôme que sur les pensées grecque et chrétienne: elles l‘ont simplement aidé à nommer ses problèmes‖ (QUILLIOT in: CAMUS, 1965, p.1222). De fato, o Absurdo é em sua

origem, como aparece já em L'Envers et l'endroit, o apetite de conhecimento não satisfeito nem pela razão nem pela fé; e o apetite de viver quebrado pela morte. Esta monografia, enquanto uma das primeiras produções de Camus, revela seu desejo bastante precoce de aprofundar seus conhecimentos sobre a filosofia grega.

Referências

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