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CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-56)

2 O INTRADISCURSO

2.4 CAMUS E A GRÉCIA CLÁSSICA

O diálogo com a cultura grega clássica presente em diferentes obras de Camus faz com que estas obras se refiram umas às outras, reforçando assim o diálogo também entre elas. Camus se interessava pelos gregos, conhecia os clássicos e muitas reescrituras de textos clássicos por autores modernos. Os autores da Antigüidade são marcantes na formação intelectual e na produção literária do escritor, que buscou entre os gregos modelos e motivos de inspiração.

Admirador da Grécia clássica e estudioso de sua herança cultural, Camus associa a cada ciclo de sua obra um mito grego e cada etapa se desenvolve à luz de uma figura mitológica: Sísifo encarna o Absurdo e Prometeu, a Revolta; ao tema do Amor corresponderia a figura de Nêmesis. Além disso, o "mito" constitui o fio condutor através do qual se articulam imaginação e reflexão, como base da estética camusiana; e sua ética também é marcada por elementos oriundos do pensamento grego, principalmente pela noção de "limite".

No Mythe de Sisyphe, a referência à mitologia está presente desde o título do ensaio. Ao final desta obra, Camus desenvolve de maneira própria a versão grega do mito, ressaltando alguns aspectos que ele valoriza de maneira especial: o gosto de Sísifo por este mundo, pelo mar e pelo sol, seu desprezo pelos deuses, seu ódio contra a morte e seu amor pela vida, enfim, sua lucidez: ―Si ce mythe est tragique, c‘est que son héros est conscient. Où serait en effet sa peine, si à chaque pas l‘espoir de réussir le soutenait?‖ (CAMUS, 1965, p.196)

Sísifo foi condenado principalmente por se mostrar astucioso a ponto de enganar a própria morte. Ele a prendeu de maneira que ela não pôde levá-lo aos Infernos. Ao se dar conta de que ninguém mais morria, Zeus mandou que soltassem a morte. Mas Sísifo tinha outros estratagemas e havia de antemão instruído sua esposa a não lhe fazer funerais adequados. Assim, ele pôde convencer Hades a deixá-lo partir de novo para o convívio entre os vivos. Uma vez de volta ao mundo, Sísifo se recusou a retornar para junto dos mortos. Foi preciso que a morte viesse buscá-lo à força. Ele é condenado, então, a empurrar sem fim um rochedo até o alto de uma montanha. Ao chegar a alguns passos do cume, suas forças lhe faltam e a pedra rola de novo para baixo. Ele deve então recomeçar seu esforço, sem fim, pois sempre suas forças acabam no último momento.

Camus retoma a figura mitológica de Sísifo para fazer dele o símbolo da condição humana e propõe que o imaginemos feliz. Camus qualifica Sísifo como último herói absurdo, no ensaio em que busca demonstrar por que a vida, apesar da absurdidade do destino, merece ser vivida. A pena de Sísifo seria uma metáfora da própria vida, percebe-se a absurdidade do personagem tanto no desespero de tentar escapar a uma morte inevitável quanto na tentativa de concluir um trabalho interminável.

Quanto a Prometeu, ele criou com um bloco de argila o primeiro homem. Não querendo deixar sua criatura desprovida de tudo, foi roubar no carro do Sol uma faísca para oferecê-la aos homens que, em sua ausência, tinham se multiplicado. Prometeu enganou o próprio Zeus e este decidiu se vingar dele e dos mortais. Aos últimos enviou Pandora, bela jovem, que espalhou todos os males sobre a Terra, ao abrir sua famosa caixa. O primeiro foi preso sobre o mais alto cume do monte Cáucaso, onde, todo dia, durante séculos, uma águia vinha lhe roer o fígado, que sem cessar crescia de novo. Por ter advertido Zeus a não desposar Tétis, se o deus não quisesse ter um filho que o destronasse, Prometeu teve direito à

clemência e foi libertado. Para Camus, Prometeu é o grande amigo dos homens, o philánthropos por excelência.

Nêmesis, na mitologia grega, é a deusa da proporção e da vingança dos crimes. Ela representa a justiça distributiva e o ritmo do destino, encarnando a indignação face ao excesso ou exagero. Ela castiga aqueles que "ultrapassam o limite", ou seja, que vivem um excesso de felicidade entre os mortais, ou o orgulho excessivo entre os reis. Nas tragédias gregas Nêmesis aparece principalmente como aquela que pune a hibris, o pecado da desmedida.

Associando diretamente as noções de Absurdo e de Revolta a personagens mitológicos e cifrando os ciclos pela mitologia, Camus remete o conjunto de sua obra à cultura grega clássica. Os mitos gregos fazem parte de seu universo intelectual: o Absurdo e a Revolta tomaram definitivamente para ele as faces de Sísifo e de Prometeu. Na verdade, Camus se interessou muito cedo pela antigüidade clássica e a presença dos gregos se manifesta em sua concepção do teatro e também diretamente em outros textos, inclusive seu primeiro trabalho acadêmico, uma monografia universitária que já revela um contato com o pensamento grego e um interesse pelos clássicos. Em 1936, para a conclusão de seu curso universitário de filosofia, ele escolheu como tema de sua monografia as relações entre helenismo e cristianismo, abordando especificamente Plotino e Santo Agostinho; através do neoplatonismo, é a Grécia que se revela objeto de sua escolha.

Camus era ao mesmo tempo alheio ao espírito religioso e profundamente marcado pela inquietação metafísica. Na monografia universitária, confrontando cristianismo e pensamento grego, Camus estuda a primeira tentativa de conciliação entre eles, aquela de Justino. Ele aborda a Gnose, tentativa de conciliação entre o espírito de conhecimento e a busca de salvação e, ao evocar Marcião, escreve já deixando transparecer sua própria visão de mundo, ou seja, conjugando Absurdo e Revolta: ―Dans cette vue pessimiste sur le monde et ce refus

orgueilleux d‘accepter, court la résonance d‘une sensibilité toute moderne. Aussi bien prend- elle sa source dans le problème du mal‖ (CAMUS, 1965, p.1253).

Abordando Santo Agostinho, Camus o imagina dividido entre a sensualidade, o gosto pelo racional e o desejo de fé que nasce da descoberta do mal. No trabalho, já aparecem as reações pessoais de Camus, configuradas no Mythe de Sisyphe. Plotino fortalece nele o desejo de compreender, Santo Agostinho opõe ao conhecimento limites intransponíveis. Plotino o incita a desconfiar do arbitrário de toda fé, Santo Agostinho, dos devaneios da razão. Camus parece então próximo dos gregos e fascinado por alguns temas cristãos. Admira Plotino que se esforça para pôr o sentimento em formas lógicas, e é igualmente seduzido pela angústia trágica de Santo Agostinho. A necessidade de coerência e a inquietude que Camus identifica neste último parecem reflexos de suas próprias experiências. O trabalho demonstra ao mesmo tempo uma simpatia pelo cristianismo, considerado como uma recusa da serenidade socrática, como uma espécie de heroísmo espiritual, e também uma desconfiança ante o providencialismo cristão.

Como afirma Roger Quilliot: ―Camus a peut-être plus appris sur lui-même en écrivant ce diplôme que sur les pensées grecque et chrétienne: elles l‘ont simplement aidé à nommer ses problèmes‖ (QUILLIOT in: CAMUS, 1965, p.1222). De fato, o Absurdo é em sua origem, como aparece já em L'Envers et l'endroit, o apetite de conhecimento não satisfeito nem pela razão nem pela fé; e o apetite de viver quebrado pela morte. Esta monografia, enquanto uma das primeiras produções de Camus, revela seu desejo bastante precoce de aprofundar seus conhecimentos sobre a filosofia grega.

Discutiremos à frente a relação entre elementos da cultura grega e os romances de Camus, em particular La Peste, em que estão presentes uma dimensão mítica e trágica, e a evocação direta de Orfeu e da simbologia a ele relacionada.

Quanto aos ensaios literários, L'Été é uma coletânea de oito pequenos ensaios dos quais dois fazem referência direta à cultura grega: L'Exil d'Hélène e Prométhée aux enfers. Segundo Roger Quilliot, cada um dos textos ―reste fidèle à la technique du mythe qui, selon Camus, permet à l‘artiste et au moraliste de se rassembler‖ (QUILLIOT, in: CAMUS, 1965, p.1817).

L'Exil d'Hélène é um canto à Grécia. Neste texto, Camus estabelece uma relação com os problemas evocados em sua monografia, aponta a dissipação da herança grega pela civilização européia e discute duas questões marcantes para os gregos: a busca quase obsessiva da beleza e a noção de limite, que se revela, inclusive, no interior das tragédias. Para o autor, os gregos não levaram nada além dos extremos, nem o sagrado nem a razão, porque não negaram nenhum dos dois, mas, buscando a totalidade, souberam equilibrar a sombra e a luz; os gregos não disseram que o limite não poderia ser transposto, disseram que ele existe e que quem ousasse ultrapassá-lo seria atingido sem piedade.

Camus sublinha o que há na Europa de diverso ou mesmo de oposto às concepções gregas e, evocando Nêmesis, escreve:

Notre Europe, au contraire, lancée à la conquête de la totalité, est fille de la démesure. [...] Némésis veille, déesse de la mesure, non de la vengeance. Tous ceux qui dépassent la limite sont, par elle, impitoyablement châtiés (CAMUS, 1965, p.853).

Assim, para se tornarem legítimos herdeiros dos gregos, os europeus precisariam aprender a reconhecer a ignorância, recusar o fanatismo, descobrir os limites do mundo e do homem, amar a beleza. Antes disso, não se podem proclamar filhos da Grécia:

Voilà pourquoi il est indécent de proclamer aujourd‘hui que nous sommes

les fils de la Grèce. Ou alors nous en sommes les fils renégats. Plaçant

l‘histoire sur le trône de Dieu, nous marchons vers la théocratie, comme

ceux que les Grecs appelaient Barbares et qu‘ils ont combattus jusqu‘à la mort dans les eaux de Salamine (CAMUS, 1965, p.854).

Prométhée aux enfers evoca a violência na qual a Europa se debatia há décadas e levanta a questão do significado do mito no mundo moderno. Para Camus, Prometeu, figura representativa da Revolta, é sempre um modelo para o homem de seu tempo:

Que signifie Prométhée pour l‘homme d‘aujourd‘hui? On pourrait dire sans doute que ce révolté dressé contre les dieux est le modèle de l‘homme

contemporain et que cette protestation élévée, il y a des milliers d‘années,

dans les déserts de la Scythie, s‘achève aujourd‘hui dans une convulsion historique qui n‘a pas son égale. Mais, en même temps, quelque chose nous dit que ce persécuté continue de l‘être parmi nous et que nous sommes

encore sourds au grand cri de la révolte humaine dont il donne le signal solitaire (CAMUS, 1965, p.841).

Segundo Camus, Prometeu é o herói que amou os homens o bastante para lhes dar ao mesmo tempo o fogo e a liberdade, as técnicas e as artes. A humanidade moderna se preocupa apenas com a máquina e com a técnica. Camus, mais uma vez, ressalta na figura mitológica sua ousadia em desafiar os deuses e seu modelo de filantropia:

Le héros enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi

tranquille en l‘homme. C‘est ainsi qu‘il est plus dur que son rocher et plus patient que son vautour. Mieux que la révolte contre les dieux, c‘est cette

longue obstination qui a du sens pour nous (CAMUS, 1965, p.844).

Camus conclui o ensaio evocando a importância e o significado dos mitos:

Les mythes n‘ont pas de vie par eux-mêmes. Ils attendent que nous les incarnions. Qu‘un seul homme au monde réponde à leur appel, et ils nous

offrent leur sève intacte. [...] Si nous devons nous résigner à vivre sans la

beauté et la liberté qu‘elle signifie, le mythe de Prométhée est un de ceux qui nous rappelleront que toute mutilation de l‘homme ne peut être que provisoire et qu‘on ne sert rien de l‘homme si on ne le sert pas tout entier

(CAMUS, 1965, p.843).

Quanto ao teatro, Camus se interessou pelos grandes dramaturgos − Sófocles, Eurìpides, Ésquilo, Aristófanes − e pelo teatro gregos, e particularmente pela tragédia. Ele não reescreveu nenhuma peça grega, no entanto o Prometeu de Ésquilo foi uma das primeiras peças encenadas por sua companhia teatral, o Théâtre du travail. A esta companhia sucedeu o Théâtre de l’Équipe, em cujo manifesto encontramos referências a autores gregos e em cujo projeto de repertório figuram peças clássicas:

Ainsi se tournera-t-il vers les époques où l‘amour de la vie se mêlait au

désespoir de vivre: la Grèce antique (Eschyle, Aristophane), l‘Angleterre élisabéthaine (Forster, Marlowe, Shakespeare), l‘Espagne (Fernando de Rojas, Calderon, Cervantes), l‘Amérique (Faulkner, Caldwell), notre

littérature contemporaine (Claudel, Malraux) (CAMUS, 1962, p.1692).

Por ocasião de uma viagem à Grécia, em 1955, Camus fez uma conferência em Atenas, Sur le futur de la tragédie, na qual destaca que as grandes tragédias surgiram em épocas muito excepcionais que deveriam, por sua própria singularidade, nos ensinar algo sobre as condições de expressão do trágico:

Notre époque est tout à fait intéressante, c‘est-à-dire qu‘elle est tragique.

Avons-nous du moins, pour nous purger de nos malheurs, le théâtre de notre époque ou pouvons-nous espérer l‘avoir? Autrement dit la tragédie moderne est-elle possible? [...] Les grandes périodes de l‘art tragique se placent, dans

l‘histoire, à des siècles charnières, à des moments où la vie des peuples est

lourde à la fois de gloire et de menaces, où l‘avenir est incertain et le présent dramatique. Après tout, Eschyle est le combattant de deux guerres et

Shakespeare le contemporain d‘une assez belle suite d‘horreurs. En outre ils

se tiennent tous deux à une sorte de tournant dangereux dans l‘histoire de leur civilisation (CAMUS, 1962, p.1701).

Em sua conferência, Camus desenvolve uma reflexão em torno do gênero dramático e manifesta sua preferência pela tragédia. Ele se pergunta sobre o que seria a tragédia e, sem querer defini-la, procede por comparação, observando em que a tragédia difere do drama ou do melodrama. O conflito, ou tensão, presente na tragédia não é simples nem se confunde com o maniqueísmo, ao qual se reduzem o melodrama e o enredo de muitas histórias e do qual Camus busca se afastar em seus próprios romances:

Voici quelle me paraît être la différence: les forces qui s‘affrontent dans la

tragédie sont également légitimes, également armées en raison. Dans le

mélodrame ou le drame, au contraire, l‘une seulement est légitime.

Autrement dit, la tragédie est ambiguë, le drame simpliste. [...] Prométhée

est à la fois juste et injuste et Zeus qui l‘opprime sans pitié est aussi dans son

droit. [...] Le thème constant de la tragédie antique est ainsi la limite qu‘il ne

faut pas dépasser. De part et d‘autre de cette limite se rencontrent des forces

également légitimes dans un affrontement vibrant et ininterrompu (CAMUS, 1962, p.1705).

Segundo Camus, uma vez que a tragédia se sustenta sobre um equilíbrio, tudo o que no interior dela tende a romper este equilíbrio, tanto o domínio absoluto da ordem ou do divino quanto a presença da individualidade pura, destroem a própria tragédia. Se a tragédia termina na morte ou punição, o que é punido é a cegueira do herói que tenta negar o equilíbrio ou a tensão. A situação trágica ideal seria aquela de Ésquilo, que permanece próximo das origens religiosas e dionisíacas da tragédia. Em Sófocles, igualmente, o equilíbrio é absoluto, e por isso ele é o maior tragediógrafo de todos os tempos. Já Eurípides desequilibra a balança para o lado do indivíduo e da psicologia, assim ele anuncia o drama individualista, ou seja, a decadência da tragédia.

Para o autor, a tragédia moderna ainda não existiria: ―C‘est assez dire que la vraie tragédie moderne est celle que je ne vous lirai pas, puisqu‘elle n‘existe pas encore. Pour naître, elle a besoin de notre patience et d‘un génie‖ (CAMUS, 1962, p.1711). Para haver um renascimento da tragédia na modernidade, é preciso primeiro que o individualismo se transforme e que, sob a pressão da história, o indivíduo reconheça pouco a pouco seus limites. Para Camus, entre os gregos, o pensamento e o desejo de um conhecimento racional estão associados à constatação dos limites da razão; a busca do racional se exprimindo sobretudo na filosofia grega, a experiência do incompreensível e do que escapa à lógica transparecendo, principalmente, nas tragédias. Segundo Camus, a concepção trágica do mundo não foi completamente e em toda parte destruída pela ofensiva do espírito não- dionisíaco. Entretanto, o mundo moderno estaria por inteiro preso nas redes da civilização alexandrina, cujo ideal é o homem teórico, que superestima suas faculdades de conhecimento e trabalha a serviço da ciência. Sócrates seria o protótipo e o ancestral desta civilização. Por isso, para que haja o retorno da tragédia na civilização moderna, é preciso primeiro que a pretensão científica e racionalista seja superada.

Dos primeiros textos, como a monografia, até os últimos, como alguns ensaios de L'Été, Camus esteve sempre refletindo sobre o legado da cultura grega, à qual ele faz referências em suas obras; aqui não pretendemos analisar cada uma destas referências em todas as suas obras, mas apenas as que consideramos mais significativas. Vale destacar a importância do elemento "mítico" que está presente inclusive em seus ensaios filosóficos e através do qual ele articula reflexão e criação poética.

Camus elabora em seus ensaios uma filosofia que se assemelha àquela dos pré- socráticos, pois considera que a apresentação sistemática da filosofia é mais um prejuízo do que uma vantagem, e se interessa pelos pensadores que não excluíam de suas produções a presença do mito e a dimensão poética. O autor não reivindicava para si o estatuto de filósofo, mas se autodefinia como ―un artiste qui crée des mythes à la mesure de sa passion et de son angoisse‖ (CAMUS, 1964, p.325).

O apelo ao artístico e ao mítico está presente mesmo em seus ensaios de filosofia. Em Le Mythe de Sisyphe, o personagem mitológico configura-se como o protótipo do homem revoltado diante do Absurdo; em L'Homme révolté, Prometeu é apresentado como o solidário por excelência dos humanos. Em ambos os ensaios, Camus cita e evoca tanto filósofos quanto romancistas e emprega inúmeras imagens e figuras poéticas. O mito já é em si um desenvolvimento conferido à imagem, uma síntese do literário e do filosófico, conjugando reflexões próprias do pensamento filosófico e imagens poéticas evocadoras de realidades concretas e sensíveis.

O aspecto de verdade do mito entre os primitivos diz respeito não a uma verdade lógica, discursiva e expressa de forma clara pela razão, mas a uma verdade intuída, percebida de maneira espontânea. O mito demonstra assim que, ao entrar em contato com o mundo, o homem não é apenas racionalidade e pensamento, mas também sensibilidade, fantasia, imaginação e emoção. Antes de interpretar a realidade, o homem vive nela, e a experimenta,

desejando-a ou temendo-a; como afirma Camus: "Nous prenons l‘habitude de vivre avant d‘acquérir celle de penser‖ (CAMUS, 1965, p.102).

O mito não é de forma absoluta anterior e oposto à filosofia, como uma primeira e ingênua resposta aos fenômenos naturais, contrária ao pensamento racional, ele é também contemporâneo e interno à reflexão filosófica. Pierre Grimal mostra que, a partir do século III a. C., quando o pensamento grego foi sendo dominado pela filosofia, os mitos não fugiram a esta evolução. A linguagem do mito foi utilizada não só pela reflexão sofística, mas também pelos estóicos e muitos outros, inclusive Platão:

Nem mesmo os filósofos, quando o raciocínio alcançou seu ponto extremo, deixaram de recorrer ao mito como a um modo de conhecimento capaz de revelar o incognoscível. Assim, Platão – no Fédon, no Fedro, no Banquete, na República e em outros diálogos – explicita seu pensamento através dos mitos que inventa (GRIMAL, 1982, p.11).

Claude Calame, para quem o mito é uma história tradicional de alcance social que põe em cena num tempo transcendental personagens de qualidades sobrenaturais e fabulosas, vê o risco de se considerar o mito apenas como lenda e de se projetar sobre o uso do termo na Antigüidade um sentido moderno. Para Calame o relato que nós apreendemos, através da categoria moderna, como "mítico", só pode ser poesia ou literatura.1

Calame afirma que a idéia grega do produto poético como dividido, pelo efeito da mímesis criativa, entre ficção e referência ao real, é vista como algo muito moderno e corresponde aproximadamente ao que se designa pelo conceito de ficcional: ―En tant que produit du processus symbolique, comme produit du poieîn créateur de mondes fictionnels, tout récit à nos yeux mythiques est aussi un récit ‗poiétique‘ et poétique‖ (CALAME, 2000,

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-56)