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A INTERINCOMPREENSÃO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 109-116)

5 O INTERDISCURSO

5.2 A INTERINCOMPREENSÃO

Tanto Sartre quanto Camus consideram que é impossível manter-se ausente do embate de forças antagônicas presentes na sociedade. Este jogo de forças característico da sociedade como um todo faz parte também da sociedade literária. Dominique Maingueneau, retomando os estudos sociológicos de Pierre Bourdieu, destaca bem o caráter social e institucional do exercício da literatura e mostra que um autor não pode produzir enunciados literários sem se colocar como escritor no campo do literário e sem se definir com relação às representações e aos comportamentos associados a este estatuto. Assim, o "contexto" da obra literária não é apenas a sociedade considerada em sua globalidade, mas, antes de tudo, o "campo literário", que obedece a regras específicas e se inscreve na obra que por sua vez nele está i nscrita (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.28 e MAINGUENEAU, 2004, p.72).

A polêmica entre Camus e Sartre é uma situação típica do embate de forças e da busca do escritor para ocupar seu espaço no campo. Por mais diferentes que sejam as posições estéticas e ideológicas de Sartre e Camus, ambos fazem igualmente parte do campo literário, campo que não se inscreve na sociedade como simples parte ou espaço dela, mas como um espaço fronteiriço, distinto mas indissociável da sociedade como um todo.

O ambiente da polêmica e os textos produzidos sob seu calor demonstram de forma explícita que o escritor não enuncia sobre um terreno neutro e estável, mas sobre um espaço institucional, nutrindo sua obra do caráter problemático de sua participação no campo literário e na sociedade. Sem "localização", não há instituições que permitam legitimar ou gerir a produção e o consumo das obras, e conseqüentemente, não há literatura; mas sem "deslocalização" não existe verdadeira literatura (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.27).

Mediante o controle externo, como nos regimes totalitários e nos países dominados por ditaduras, o escritor vigiado e conivente com o poder político pode chegar a uma produção literária, mas não a "obras" literárias; pois o próprio pertencer problemático do

escritor ao grupo supõe uma participação, mas não uma completa assimilação. Camus, ao ser interrogado sobre os "valores da arte" na sociedade comunista, afirma numa linha de reflexão muito próxima desta:

on ne dirige pas la littérature, on la supprime tout au plus. La Russie ne l'a pas supprimée. Elle a cru pouvoir se servir de ses écrivains. Mais ces écrivains, même de bonne volonté, seront toujours des hérétiques par leur fonction même (CAMUS, 1965, p.382).

Maingueneau mostra como os discursos são objetos que aparecem ao mesmo tempo integralmente lingüísticos e integralmente históricos. Ele denomina "paratopia" a localização paradoxal e problemática, o pertencer ao campo literário que não é ausência de todo lugar, mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar (cf. MAINGUENEAU, 2004, p.72).

O caráter de escritor e intelectual paratópico de Camus é acentuado por sua origem proletária e por sua presença na França na condição de francês argelino, sentindo-se sempre um pouco estrangeiro, nem somente argelino, nem inteiramente francês. De origem humilde, ele conseguiu, através da educação, superar sua condição de pobreza. Camus se insere de forma paratópica nos campos literários e filosóficos também porque se manteve afastado dos círculos intelectuais e dos meios acadêmicos, desde que, por motivos de saúde, foi proibido de seguir a carreira de professor. Ele permaneceu assim à margem do grupo dos filósofos de profissão; e ele próprio se exclui de um certo campo, ao afirmar que não é um filósofo e que não crê na razão o bastante para crer num sistema (CAMUS, 1965, p.1427). De fato, a filosofia, desde Kant, é universitária, e ela o é mais do nunca na França, no momento em que Camus escreve seus ensaios, marcados pela forma literária e contrários ao puro tratado de exposição sistemática.

Sartre teve outra origem social, tipicamente burguesa, e cresceu no ambiente de uma biblioteca. Apesar de seu engajamento político bastante tardio, mas radical, encarnou logo a figura do intelectual simbólico tornado intocável por sua celebridade internacional; seu aspecto de intelectual escandaloso e "maldito" parecem provocados e sua marginalidade

reivindicada. Sartre passou pela Agregação e, como bom filósofo de formação, gosta dos sistemas. É cartesiano e voltado para a especulação, não desconfiando da razão nem das abstrações.

Camus foi precipitadamente associado à corrente ―existencialista‖, mas o Existencialismo corresponde, em primeiro lugar, ao pensamento de Sartre. Afirmou-se, por exemplo, a propósito de Calígula, que toda a peça não passaria de uma ilustração dos princípios existencialistas de Sartre (TROYAT, H. In: GINESTIER, 1964, p.65). Dizendo não ser nem filósofo nem existencialista, Camus já afirmava que não fazia parte da tribo de Sartre (CAMUS, 1965, p.1424). Mesmo à época em que mantinham contato, Camus afirmava que não era um existencialista; por ocasião da polêmica entre eles, as diferenças entre os dois autores se reforçam e fica claro que eles não pertencem à mesma família intelectual.

Conforme os preceitos da Análise do Discurso estudados por Maingueneau, a obra surge por meio das tensões do campo literário, no seio de comunidades restritas que disputam um mesmo território institucional. Ela se constitui implicando os ritos, as normas e as relações de força próprias dessas instituições literárias. Fazem parte da enunciação os problemas levantados pela inscrição social desta enunciação. A partir do momento em que se escreve e se publica não se pode sair do campo literário, campo que vive da tensão entre os integrantes das tribos e os que permanecem à margem delas. Assim, as "tribos‖ se repartem no campo literário baseadas em reivindicações estéticas distintas. Todo escritor se insere numa tribo, ou mais, que ele elege — de escritores do passado ou contemporâneos, conhecidos pessoalmente ou não — e o modo de vida, bem como as obras dessa tribo lhe permitem legitimar sua própria enunciação (cf. MAINGUENEAU, 1993, p.30-31).

Neste sentido, Camus expõe de forma clara que o pensamento absurdo descende de uma longa tradição. De fato, a noção de Absurdo teria suas origens desde o século III com Tertuliano, continuando com Pascal e chegando a Kierkegaard (cf. GINESTIER, 1964, p.56).

Ante as grandes tradições filosóficas racionalista e empirista, Camus se insere na linha de filósofos marginais, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Trata-se da ―tribo‖ que prolonga a ―tradição do pensamento humilhado‖ e que critica o racionalismo (cf. CAMUS, 1965, p.114). A inserção de Camus nesta ―famìlia‖ mostra-se logo no início do Mythe de Sisyphe quando o autor diz que sua sensibilidade absurda deve muito a certos espíritos contemporâneos, que ele cita ao longo da obra.

Camus concorda com as premissas do existencialismo como estas se encontram em Pascal, Nietzsche, Kierkegaard ou Chestov, pois estes autores partem do clima próprio do Absurdo (CAMUS, 1965, p.114), mas discorda das conclusões dos existencialistas seus contemporâneos, por acreditar que tais conclusões são contraditórias às premissas e desembocam numa fuga. Por isso Camus chama "suicídio filosófico" a conclusão existencialista (CAMUS, 1965, p.114, 122, 187, 208 e 312), uma fuga que desemboca num princípio absoluto: o transcendente, a história absolutizada, ou um princípio racional unificador do real.

Quanto aos literatos, Camus elegeu para si uma tribo de autores que são igualmente criadores e teóricos, críticos que pensam a própria atividade, como Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Kafka, Proust, Malraux, Dostoievski, Tolstoi, Faulkner (CAMUS, 1965, p.178). Sua inserção nesta tribo também se faz pela opção diante das obras que ele adaptou para o teatro, obras de autores como Malraux, Calderón de la Barca, Larivey, Dino Buzzati, Faulkner, e Lope de Vega (CAMUS & GRENIER, J., 1981, p.266, 268 e 269). Assim, se os escritores formam geralmente ―microsociedades‖ de admiração mútua ou de rejeição, Camus deixa claro quais são seus autores preferidos.

Em sua obra, Genèses du discours (1984), Dominique Maingueneau aborda os textos sob o ponto de vista de sua gênese e de sua relação com o interdiscurso, levando em consideração a relação de um discurso com seu "exterior" enunciativo. Maingueneau, na linha

francesa de análise do discurso, afasta-se de uma certa vulgata estruturalista ao pôr em questão "a suposta autarquia dos discursos". Trata-se de uma abordagem próxima da pragmática, que busca articular no ato verbal enunciado e enunciação, linguagem e contexto, palavra e ação, instituição lingüística e instituições sociais (cf. MAINGUENEAU, 1984, p.15).

Assim, podemos tratar a controvérsia entre Sartre e Camus e os textos que dela derivaram à luz dos estudos de Maingueneau, que vê na polêmica um processo de interincompreensão. Conforme Maingueneau, o estudo da especificidade de um discurso supõe relacioná-lo com outros. Nos textos da controvérsia, com a evocação explícita de uns aos outros, podemos perceber mais claramente a presença do interdiscurso, como espaço composto pelos diversos discursos.

A propósito de Marx, Sartre, em seu artigo, "Réponse à Albert Camus", publicado em Les Temps Modernes, acusa Camus de brincar com conhecimentos de segunda mão.12 O tom de Sartre é superior, como o de um professor que fala a um aluno. Mas pode-se perguntar se seus conhecimentos sobre Marx são mais aprofundados do que os de Camus. Raymond Aron, leitor paciente de Marx, estava persuadido de que ambos eram quanto a isto igualmente limitados (cf. TODD, 1996, p.779 e 786). Ao acusar Camus de incompetência filosófica, Sartre, na verdade, vale-se de um argumento de autoridade, servindo-se de sua posição no campo, enquanto filósofo reconhecido, que passou pela Agregação.

Respondendo ao artigo de Jeanson, Camus fala de Sartre sem nomeá-lo. Sartre, por sua vez, chamado de burguês, responde aplicando a Camus o mesmo qualificativo. A resposta de um supõe e retoma de maneira direta o discurso do outro; de maneira explícita, o texto se constrói como intertexto.

12

Os textos desta polêmica têm uma cena de enunciação que parece a de uma correspondência, já pela forma de apresentação, semelhante a uma carta. A seqüência, carta- crítica, resposta e réplica lembra um diálogo, mas na verdade há apenas uma semelhança com a correspondência pessoal, pois são cartas que, embora pese um aspecto de defesa pessoal, tratam profundamente de posições estéticas, sociais e políticas e são publicadas em jornais e revistas.

Tanto Camus, que não nomeia Sartre, quanto Sartre, que evoca diretamente seu interlocutor, e com um reforço criado pela repetição, praticam um jogo retórico, pois na verdade não se trata de uma carta privada. O interlocutor visa em primeiro lugar não tanto a seu adversário direto, mas se dirige primariamente à comunidade acadêmica e política e, por extensão, a toda a comunidade de leitores dos jornais e revistas em que os textos são publicados.

No texto de Sartre, há um Camus visto sob a perspectiva sartriana. E Sartre igualmente é descrito sob o ponto de vista de Camus, pois no texto polêmico cada um introduz o Outro em seu fechamento, ao traduzir seus enunciados dentro da categoria do Mesmo e só se relaciona com este Outro sob a forma do "simulacro" que constrói dele. Isto só acentua os mal-entendidos (MAINGUENEAU, 1984, p.11).

Abordando uma peça de Sartre e antes de reproduzir um comentário dele, Francis Jeanson escreve: "O autor de As mãos sujas, intrigado em razão de uma falsa interpretação de sua peça, propôs-se a definir o verdadeiro sentido que ele desejava que lhe fosse dado" (JEANSON, 1987, p.41). Camus, de sua parte, foi sensível, desde o início de sua carreira, ao tema e à situação do mal-entendido – título de uma de suas peças – que ele combatia e que era às vezes agravado por suas intervenções e que ele parecia viver com uma dolorosa intensidade, como demonstram, além dos prefácios e textos introdutórios, suas cartas de protesto (cf. BARTFELD, 1998, p.162).

Camus revela que, mesmo antes da polêmica com Les Temps Modernes, a recepção negativa de seu ensaio o incomodava. Ele parece tomar as críticas de Sartre como um ataque pessoal e vive a querela durante muito tempo. Talvez porque, embora o aspecto autobiográfico de Camus seja sutil em suas obras, estas dificilmente se separam de si próprio e até em L'Homme révolté, de maneira contida, ele falou de si mesmo: "Sans en avoir l'air, je m'y suis confessé", ele escreve a Mamaine Koestler (cf. TODD, 1996, p.767).

Mais do que discutir o desejo dos escritores de reivindicar um controle para a interpretação de seus livros, importa observar como o mal-entendido não é um acidente de percurso, acessório ou evitável, mas um constituinte mesmo do discurso. A relação polêmica em seu sentido amplo está longe de ser um encontro acidental de dois discursos que se teriam instituído independentemente um do outro e o conflito não vem se juntar do exterior a um discurso auto-suficiente, mas é uma de suas condições de possibilidade. É o que defende Maingueneau: não há, de um lado, o sentido e, de outro, certos "mal-entendidos" contingentes na comunicação, mas, num só movimento, o sentido como mal-entendido (cf. MAINGUENEAU, 1994, p.12).

Assim, se tentarmos pôr em paralelo os textos de Camus e Sartre e encontrar uma relação entre eles, é interessante observar que tais textos foram construídos já numa relação de interdependência, constituindo-se através da incompatibilidade e do conflito. Os discursos não se constituem independentemente uns dos outros para serem em seguida postos em relação, mas se formam já de maneira relacional no interior do interdiscurso. Desta maneira, a relação interdiscursiva mostra a interação semântica entre os discursos como um processo de tradução e de interincompreensão; nesta perspectiva, os textos publicados em Les Temps Modernes que produziram entre Camus e Sartre uma polêmica foram ao mesmo tempo produzidos por ela.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 109-116)