• Nenhum resultado encontrado

ADVERSÁRIOS DO FLAGELO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 80-89)

3 A PESTE NA CIDADE MODERNA

3.3 ADVERSÁRIOS DO FLAGELO

La Peste é simultaneamente crônica, ou testemunho sobre a História, e tragédia, ou fábula do tempo presente. O romance discute as condutas humanas, analisa os comportamentos e convoca a reflexão moral, mostrando o combate do homem contra o mal, a infelicidade, o sofrimento e a morte ou, numa linguagem camusiana, o trabalho de homens que expressam sua revolta em face do Absurdo.

O enredo do romance não apresenta grandes intrigas. Trata-se de um relato bastante realista de uma epidemia de peste que atinge durante vários meses a cidade de Oran, isolando-

a do mundo, nos anos quarenta. Ante o flagelo, os personagens reagem cada um à sua maneira, a maioria deles toma consciência da necessidade de uma ação solidária. Alguns homens tentam organizar a luta contra a epidemia, à frente da equipe estão o médico Rieux e Tarrou. Graças à coragem lúcida destes homens e à força de sua revolta contra o mal, a peste será vencida; no fim do romance a peste desaparece. Mas para todos aqueles que viveram esta horrível "tragédia", o estado de alerta será permanente, pois poderia voltar o dia em que ―a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz‖. O narrador deixa a conclusão em aberto, ante a perspectiva de um possìvel recomeço da peste cujo bacilo ―não morre nem desaparece nunca‖ (CAMUS, 1962, p.1474).

No relato, destaca-se a atitude que os personagens tomam diante da ameaça. Alguns parecem se colocar do lado do flagelo, pois acabam obtendo vantagens próprias com ele e preferem o "estado de peste" à situação de normalidade; grande parte se revela adversários da doença; o velho asmático encarna uma atitude de indiferença à quase tudo que se passa ao seu redor; a maior parte, embora anônima, constitui-se das vítimas que tombam sob a peste. É sobretudo em função do sentido simbólico e moral de que são portadores que os personagens se definem.

O médico Rieux não pode se resignar à impotência da medicina diante da morte. Para ele o sofrimento e a morte são sempre um escândalo inaceitável e ainda mais quando se trata de uma criança inocente, como diz ao padre: "je refuserai jusqu'à la mort d'aimer cette création où des enfants sont torturés" (CAMUS, 1962, p.1397).

Rieux, que está no centro da luta contra o flagelo, é o personagem narrador, só ao final da crônica ele o revela. Adotando o tom do simples cronista, ele fala de si mesmo na terceira pessoa e marca uma grande distância em relação a acontecimentos que o tocam de muito perto. Além disso, este narrador multiplica os pontos de vista e é por meio das anotações de Tarrou que o leitor faz uma idéia de seu próprio porte físico. Rieux é aberto à compreensão do

outro. Ele se abstém de julgar e não condena ninguém, nem mesmo Cottard, que se beneficia com a desgraça coletiva. O narrador não descreve moral ou psicologicamente seus personagens, nem explica seu caráter, mas os apresenta situados e em ação, e não há no romance um narrador onisciente.

Quando Rambert renuncia a fugir de Oran, Rieux lhe diz que não há vergonha em preferir a felicidade. E Rambert lhe responde que pode haver vergonha em querer ser feliz sozinho (Cf. CAMUS, 1962, p.1389). Diante da situação, o médico afirma que se sente incapaz de julgar (Cf. CAMUS, 1962, p.1384).

Trata-se da busca de conciliar a felicidade individual com o bem da coletividade, quando estes parecem se excluírem mutuamente. "Bien entendu, un homme doit se battre pour les victimes. Mais s'il cesse de rien aimer par ailleurs, à quoi sert qu'il se batte?‖(CAMUS, 1962, p.1428), afirma Tarrou. Mas, na prática, estes personagens colocam os interesses da comunidade acima de seus interesses pessoais.

Se cada personagem encarna uma maneira de reagir à epidemia, a diferença de comportamentos se manifesta até mesmo dentro da classe médica. O velho Dr. Castel, trabalha na pesquisa de um soro; já o jovem Dr. Richard, presidente da ordem dos médicos de Oran, é evasivo e se recusa a entrar na luta contra o flagelo: "Mais je n'y puis rien, dit Richard. Il faudrait des mesures préfecturales. D'ailleurs, qui vous dit qu'il y a risque de contagion?" [...] Tout ce qu'il pouvait faire était d'en parler au préfet" (CAMUS, 1962, p.1241).

O combate dos médicos Rieux e Castel, em antítese com a figura do padre Paneloux, configura a luta da medicina em contraste com o discurso da religião e, ainda, a oposição entre o relativo e o absoluto, entre a experiência e a abstração. O médico afirma: "Le salut de l'homme est un trop grand mot pour moi. Je ne vais pas si loin. C'est sa santé qui m'intérresse, sa santé d'abord" (CAMUS, 1962, p.1397). O padre, com um discurso autoritário e moralista,

a princípio trata a epidemia como um castigo divino, do qual ele se exclui: "Mes frères, vous êtes dans le malheur, mes frères, vous l‘avez mérité [...] Méditez cela et tombez à genou" (CAMUS, 1962, p.1296-97). O conselho do padre, pronunciado com veemência no meio de um silêncio absoluto, foi entendido e cumprido de forma literal, ou seja, após certa hesitação, algumas pessoas deslizaram da cadeira para o genufexório, as outras acreditaram que era preciso fazer o mesmo e assim logo todos estavam ajoelhados. Algumas páginas adiante a mesma expressão do padre é retomada pelo narrador, mas para ser contestada: " [...] il fallait lutter de telle ou telle façon et ne pas se mettre à genoux" (CAMUS, 1962, p.1327).

O padre Paneloux, um jesuíta erudito, faz dois sermões na cidade sitiada pela peste. No primeiro ele se serve da doença para despertar sentimentos cristãos, jogando com o terror suscitado pelas imagens sugestivas que emprega. Mas a noção de ―punição coletiva‖ e a justificativa do sofrimento não são aceitas por Rieux. O sermão de Paneloux funciona como uma revelação; ao nomear a peste e ao anunciá-la de forma dramática e dramatizada, intensifica a presença da ameaça. A pregação do padre situa a peste na história e no contexto bíblico e acentua a idéia de que todos "étaient condamnés, pour un crime inconnu‖ (CAMUS, 1962, p.1301).

O discurso de Paneloux segue as regras da exposição tradicional e o modelo da oratória sacra; revela-se um discurso formal e frio, como uma paródia da eloqüência religiosa e de seus clichês. O padre tem um tom de acusação, manipula as figuras de estilo e as referências culturais para impor sua concepção pessoal do flagelo. Tocando a imaginação dos ouvintes, afirma que os habitantes são responsáveis pela epidemia e que é preciso se entregar a Deus. Paneloux encarna o abandono à fé. Na opinião de Rieux, ele encara a peste como algo abstrato, e de fato ele ainda a desconhece. Trata-se aqui, mais uma vez, da crítica à abstração separada do vivido:

Paneloux est un homme d'études. Il n'a pas vu assez mourir et c'est pourquoi il parle au nom d'une vérité. Mais le moindre prêtre de campagne qui administre ses paroissiens et qui a entendu la respiration d'un mourant pense comme moi. Il soignerait la misère avant de vouloir en démontrer l'excellence (CAMUS, 1962, p.1322).

O padre assiste à agonia e à morte da criança, o filho do juiz Othon, a quem fora aplicada a vacina produzida pelo doutor Castel. Ele está ao lado dos médicos e dos personagens importantes da história, a experiência é terrível para todos e o que ele vê o transforma:

Ils avaient déjà vu mourir des enfants puisque la terreur, depuis des mois, ne choisissait pas, mais il n'avaient jamais encore suivi leurs souffrances minute après minute, comme ils le faisaient depuis le matin. Et, bien entendu, la douleur infligé à ces innocents n'avait jamais cessé de leur paraître ce qu'elle était en vérité, c'est-à-dire un scandale. Mais jusque-là du moins, ils se scandalisaient abstraitement, en quelque sorte, parce qu'ils n'avaient jamais regardé en face, si longuement, l'agonie d'un innocent (CAMUS, 1962, p.1394).

A um comentário do padre, Rieux não se contém e lhe responde com uma alusão ao sermão e com a expressão de sua revolta: "Dans le même mouvement emporté, Rieux se retourna et lui jeta avec violence: Ah! celui-là, au moins, était innocent, vous le savez bien! [...] il y a des heures dans cette ville où je ne sens plus que ma révolte" (CAMUS, 1962, p.1396-97).

Depois disso, o padre aceita se unir às equipes formadas por Tarrou, e Rieux se alegra ao constatar que ele é ―melhor do que seu sermão‖. Camus explicou a presença do padre nas formações sanitárias: ―Je devais, dans mon roman, rendre justice à ceux de mes amis chrétiens que j‘ai rencontrés sous l‘occupation dans un combat qui était juste‖ (CAMUS, 1965, p.394). Além da homenagem aos cristãos combatentes, é o problema da fé que se coloca, a impossibilidade de conciliar a crença em Deus e a existência do mal. Com efeito, a religião sempre colocou um problema a Camus porque, se ele põe em questão a existência de Deus e nega qualquer "natureza humana", no sentido de uma essência imutável e pré-determinada por

uma divindade, busca entretanto fundar as regras de uma moral propriamente humana. A questão que se coloca é a do homem que prescinde da religião, mas não da ética, e busca fundar seus próprios valores.

O segundo sermão do padre é muito diferente do primeiro, conforme Rieux, ele beira à heresia, o que expressa a crise que ele atravessa. O narrador observa as mudanças: "[Paneloux] parla d'un ton plus doux et plus réfléchi que la première fois et, à plusieurs reprises, les assistants remarquèrent une certaine hésitation dans son débit. Chose curieuse encore, il ne disait plus 'vous', mais 'nous' " (CAMUS, 1962, p.1401).

Tarrou é um personagem sobre o qual o romance fornece muitas informações, de maneiras diversas: ele se revela diretamente por meio de seus ―carnets‖, ele se explica pela confidência, é descrito por Rieux e aparece na maioria das cenas importantes. Mas mesmo assim tem algo de misterioso, ―ninguém podia dizer de onde ele vinha, nem porque estava lá‖ (CAMUS, 1962, p.1235). Ele toma a iniciativa de organizar as formações sanitárias e se entrega totalmente à luta contra a peste. Não está isolado como os outros, seu exílio é voluntário. Não aceita a pena de morte e abandona a militância revolucionária por causa dos seus métodos violentos. Demonstra uma consciência lúcida, adquirida com a experiência, e critica o abuso de poder, a abstração e o crime.

Rambert, jovem jornalista de passagem por Oran, é estrangeiro na cidade, mas a peste muda seus planos e o transforma profundamente. Num primeiro momento, ele protesta dizendo ―eu não sou daqui‖, e só pensa em deixar a cidade para ir ao encontro da mulher que ama; só depois de algum tempo vai reconhecer que a peste diz respeito a ele também e então desiste de fugir de Oran:

— Docteur, dit Rambert, je ne pars pas et je veux rester avec vous.[…]

Rambert dit qu'il avait encore réfléchi, qu'il continuait à croire ce qu'il croyait, mais que s'il partait, il aurait honte. [...] J'ai toujours pensé que j'étais étranger à cette ville et que je n'avais rien à faire avec vous. Mais maintenant

que j'ai vu ce que j'ai vu, je sais que je suis d'ici, que je le veuille ou non. Cette histoire nous concerne tous (CAMUS, 1962, p.1389).

Para ele o que importa é o amor. O que o convence, finalmente, a trabalhar com Rieux e a entrar na luta coletiva não são raciocìnios, mas a experiência, o fato de ―ter visto o que viu‖ e também a descoberta de que Rieux é um homem capaz de amar que não vive na abstração, como tinha imaginado. De fato, Rambert, quando queria deixar a cidade e ainda não sabia que a mulher de Rieux estava ausente e com problemas de saúde, acusara o médico de viver na abstração e de não compreender o que é o amor e a separação:

Peut-être ne vous rendez-vous pas compte de ce que signifie une séparation comme celle-ci pour deux personnes qui s‘entendent bien. [...] vous ne pouvez pas comprendre. Vous parlez le langage de la raison, vous êtes dans

l‘abstraction. [...] Vous n‘avez pensé à personne. Vous n‘avez pas tenu

compte de ceux qui étaient séparés. [...] Ah ! je vois, fit Rambert, vous allez parler de service public. Mais le bien public est fait du bonheur de chacun (CAMUS, 1962, p.1289-90).

Rambert termina por reconhecer a importância da comunidade e da existência do outro e entra na luta contra a peste, retomando uma expressão de Rieux: "Cette histoire est stupide, je sais bien, mais elle nous concerne tous" (CAMUS, 1962, p.1289). Duas verdades dividem o coração de Rambert: a felicidade pessoal e a existência do outro. Ele considera que é errado negar a felicidade e que é errado também negar a existência dos outros e agir como se estivesse sozinho. Termina por priorizar a luta coletiva em detrimento de seus sentimentos pessoais.

O personagem Grand leva uma vida medíocre, ele é um obscuro auxiliar da prefeitura, mas vai trazer uma ajuda importante ao combater contra a peste:

À première vue, en effet, Joseph Grand n'était rien de plus que le petit employé de mairie dont il avait l'allure. [...] Dans un certain sens, on peut bien dire que sa vie était exemplaire. Il était de ces hommes, rares dans notre ville comme ailleurs, qui ont toujours le courage de leurs bons sentiments (CAMUS, 1962, p.1253-54).

O narrador propõe que se veja nele o herói, ele é testemunha da boa vontade, pela busca da palavra correta, por sua bondade e transparência:

Oui, s'il est vrai que les hommes tiennent à se proposer des exemples et des modèles qu'ils appellent héros, et s'il faut absolument qu'il y en ait un dans cette histoire, le narrateur propose justement ce héros insignifiant et effacé qui n'avait pour lui qu'un peu de bonté au coeur et un idéal apparemment ridicule (CAMUS, 1962, p.1331).

Grand, mesmo não encontrando as "palavras corretas", sente intuitivamente a verdade dos seres, dando todo sentido às palavras e às expressões feitas. É ele que primeiro compreende que Cottard ―tem alguma coisa a se repreender‖, dá a melhor definição de Rieux: ―o doutor é responsável‖, e formula o nìvel mais elementar da solidariedade: ―é preciso se ajudar mutuamente‖.

Cottard está presente principalmente no início do romance, com sua tentativa de suicídio, e no final, com sua prisão. É o único entre todos que fica contente com a peste, pois esta faz dele um homem como os outros e não mais um condenado em potencial. A peste desestabilizou a cidade e destruiu a ordem que devia condená-lo, assim ele só pode se alegrar com a arbitrariedade: "Avec la peste, plus question d'enquêtes secrètes, de dossiers, de fiches, d'instructions mystérieuses et d'arrestation imminente. [...] il n'y a que des condamnés qui attendent [...] et, parmi eux, les policiers eux-mêmes" (CAMUS, 1962, p.1378). Ele diz que se sente bem com a peste: "je me sens bien mieux ici depuis que nous avons la peste avec nous." (CAMUS, 1962, p.1334) Ante a proposta de Tarrou, para que trabalhasse nas formações sanitárias, mostra sua recusa: " 'Ce n'est pas mon métier.' [...] 'D'ailleurs je m'y trouve bien, moi, dans la peste, et je ne vois pas pourquoi je me mêlerais de la faire cesser' " (CAMUS, 1962, p.1347).

Envolvendo-se com o contrabando de produtos racionados, sua evolução é inversa à dos outros personagens: "Il revendait ainsi des cigarettes et du mauvais alcool dont les prix

montaient sans cesse et qui étaient en train de lui rapporter une petite fortune" (CAMUS, 1962, p.1334). Ele se enriquece no meio da infelicidade geral: "De son côté, Cottard prospérait et ses petites spéculations l'enrichissaient" (CAMUS, 1962 p.1431). Antes era infeliz a ponto de querer se matar, mas, com a peste, toma novo gosto pela vida e volta ao convívio social. É a desgraça comum, o castigo imposto a todos, que lhe garante a impunidade. Não se sabe por que ele foge da polícia. Mas seu crime maior não é aquele que o faz correr o risco de ser preso e que permanece um enigma para os outros personagens e para o leitor, e sim, segundo Tarrou, ―ter aprovado em seu coração aquilo que fazia morrer crianças e homens.‖ Cottard encarna a colaboração com o inimigo, representando a colaboração com os nazistas durante a guerra.

O juiz Othon é descrito inicialmente como rigorista e pouco simpático, encarnando a representação do rito social e da convenção. À custa dele e de toda a família Othon se manifesta a ironia habitual de Camus para com os ritos sociais, como ocorre em L'Étranger. Isto pelo menos até a morte da criança, o filho do juiz. A partir daí ele se transforma e finalmente decide também fazer parte das formações sanitárias.

Os personagens representam pessoas comuns, o flagelo da peste funciona quase como um teste experimental que faz reagir uma humanidade média, nada heróica. A epidemia impõe certas condições de vida e certos comportamentos comuns; todos os habitantes são prisioneiros e a maioria está ―separada‖, mas eles têm atitudes diferentes, mostrando a liberdade e a escolha dos homens, sua vontade ou não de se dedicarem a uma causa comum, enfim, sua atitude moral.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 80-89)