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MORTE E ABSTRAÇÃO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-44)

2 O INTRADISCURSO

2.3 MORTE E ABSTRAÇÃO

O tema da morte, relacionado com as noções de Absurdo e de Revolta, é um dos mais recorrentes na obra de Camus. Através dele também se constrói o diálogo entre os textos. Este tema está presente nas quatro peças de teatro: Caligula se estrutura em torno das mortes de Drusila, a daqueles que Calígula manda executar e de sua própria morte; Le Malentendu fala do assassinato por engano de Jan, cometido por sua mãe e sua irmã, que se suicidam; Les Justes discute o assassinato como arma da revolução e questiona a morte dos inocentes; L'État de Siège trata da morte "em massa", numa perspectiva muito próxima daquela desenvolvida na Peste. O tema também é central nos dois romances e nos dois ensaios: L'Étranger se desenvolve em torno de três mortes: a da mãe de Meursault, a do árabe e a do próprio Meursault; La Peste mostra a todo momento a presença da morte como conseqüência do flagelo. Le Mythe de Sisyphe se inicia com uma discussão sobre a morte voluntária, que é vista como uma tentativa malograda de escapar ao Absurdo; em L'Homme révolté se discute a morte imposta aos outros, como crime, muitas vezes justificado por uma ideologia.

Há aspectos que Camus considera absurdos na condição humana e que são inevitáveis, o que não significa que devam ser aceitos com resignação; entretanto, o que lhe parece duplamente absurdo são as "complicações" humanas, os sofrimentos criados pelos próprios

homens. É por isso mesmo que se a morte é sempre um absurdo, mais absurda é a morte que alguns homens impõem a outros.

Essa idéia de ―complicação‖ é evocada por Camus: ―Oui, tout est simple. Ce sont les hommes qui compliquent les choses‖ (CAMUS, 1965, p.30); ela nos ajuda a entender que na noção de Absurdo há pelo menos dois sentidos básicos: um primeiro, de gratuidade e de contingência que engloba o aspecto do conflito entre os anseios humanos e a indiferença do mundo (ou em outros termos, o aspecto do caráter não dedutível do mundo, da impossibilidade de uma compreensão exaustiva da realidade e o aspecto do gratuito que emerge na vida humana, aspectos que seriam inerentes à próxima situação humana, mesmo numa realidade própria dos ideais de justiça e de liberdade); e um segundo sentido, de absurdo enquanto ―complicação‖, ou seja, o aspecto ―irracional‖ da humanidade que atenta contra si própria, tanto do ponto de vista individual quanto social, trata-se aqui do absurdo enquanto soma de males que os homens trazem à precariedade já presente em sua existência.

Essa complicação, em sua versão extrema, conduz à condenação à morte, decorrência de uma "ideologia", ou seja, de uma abstração que, por trás de um discurso baseado no convencional e sustentado por posicionamentos intransigentes, justifica o crime. A crítica do dogmatismo e do convencional, a condenação do burocrático e da "abstração" são temas também presentes de maneira constante nos diferentes textos de Camus e estreitamente relacionados com o tema da morte. Trata-se de uma crítica do crime e do convencional na política, nas instituições que detêm o poder e na religião. Esta crítica, mais forte em textos como Réflexions sur la guillotine e La Peste, está presente em obras anteriores, particularmente em L'Étranger, através da sátira do aparelho judiciário e da denúncia das conseqüências criminosas do discurso e do poder dos magistrados que agem de maneira hipócrita, convencional e dogmática.

No romance L'Étranger, duas mortes caracterizam bem essa distinção e são como que reflexos marcando esse duplo sentido do Absurdo. A morte do árabe, mesmo configurando um crime cometido por Meursault, não aparece com a força de um homicídio, por causa das circunstâncias em que ocorreu, sem o elemento de premeditação e com Meursault num estado de atordoamento; tanto que mesmo se ele é capaz, por um lado, de assumir as conseqüências de seu ato, não consegue, por outro lado, explicar, nem para si mesmo, como foi capaz de cometer tal crime; esta é uma das faces do Absurdo. A outra morte é a do próprio Meursault que, mesmo aparecendo sob certo aspecto como uma punição e, portanto, como expressão da justiça dos homens, pode ser vista como uma maquinação do aparelho judiciário e como uma exigência criada pelos homens da lei. Ela aparece muito mais como uma necessidade forjada pelo julgamento em si mesmo do que como uma sanção aplicada ao culpado. Por ser uma pena desproporcional ao crime e por causa da forma como chegam a ela, ela pode figurar mais como uma arbitrariedade de uma instituição do que como aplicação da justiça, de forma que o leitor pode ter a impressão de que Meursault é muito mais vítima do que culpado; esta é a outra face do Absurdo, enquanto atitude de pagar o mal com o mal e, sobretudo, enquanto ―complicação‖ feita pelos homens, no caso, os homens da lei que agem motivados muito mais pelas convenções sociais e pelo desejo de vingança sobre uma presa fácil do que pelo ideal de justiça.

Na Peste, a doença é a imagem de tudo que causa a morte. Há quem veja na condenação à morte o tema central da obra, como Rachel Bespaloff, que afirma: ―le thème central de son oeuvre [La Peste], c‘est la condamnation à mort. Peu importe, ici, que ce soit la nature, le destin, la justice ou la cruauté humaines qui prononcent la sentence‖ (BESPALOFF, 1950, p.25). De fato, um elemento essencial no romance é a presença e a ameaça constante da morte. Muitos morrem ao longo da história e um evento central, testemunhado por todos os personagens principais, é a morte de uma criança. A luta contra a peste é, na verdade, um

combate contra a morte, e o personagem Tarrou justifica sua luta contra o flagelo afirmando: "J'ai horreur des condamnations à mort!" (CAMUS, 1962, p.1321) A relação estreita entre La Peste e L'Homme revolté, do qual trataremos abaixo, manifesta-se pela recorrência do tema da morte e pela crítica ao crime e à condenação à morte.

No Mythe de Sisyphe, Camus fala da morte voluntária, que é vista não só como uma expressão do Absurdo, mas como uma busca vã de escapar a ele. O ensaio se inicia com uma discussão sobre o suicídio, que é visto, da mesma forma que a esperança, como uma tentativa de negar o Absurdo. O suicídio atesta a absurdidade da existência, ele é um sintoma de que o indivíduo se dá conta de que a existência não tem sentido, entretanto, ele não se justifica. Embora pareça, à primeira vista, que a conclusão mais lógica à descoberta da absurdidade seja o suicídio, a reflexão do Mythe de Sisyphe se esforça para demonstrar que esta lógica é falsa. Para Camus, é um erro supor que recusar um sentido à vida conduz necessariamente à conclusão de que ela não vale a pena ser vivida (Cf. CAMUS, 1965, p.103). Assim, Camus vê no suicídio uma tentativa de escapar ao Absurdo, mas defende que o Absurdo exige a resistência e não o consentimento:

On peut croire que le suicide suit la révolte. Mais à tort. Car il ne figure pas son aboutissement logique. Il est exactement son contraire, par le

consentement qu‘il suppose. Le suicide, comme le saut, est l‘acceptation à sa limite. [...] A sa manière, le suicide résout l‘absurde. Il l‘entraîne dans la même mort. Mais je sais que pour se maintenir, l‘absurde ne peut se résoudre

(CAMUS, 1965, p.138).

Essa discussão sobre o duplo sentido da absurdidade, sobre a morte e sobre o suicídio enquanto entrega e não resistência ao Absurdo nos mostra que, mesmo se no segundo ciclo camusiano, aquele da Revolta, o tema do Absurdo já não ocupa o primeiro plano, ele não é, contudo, nem esquecido nem superado pela Revolta. Os temas do Absurdo e da Revolta estão imbricados e supõem um ao outro, mas a Revolta não é a solução do Absurdo, pois este é insolúvel por definição, existe sempre e existe sob a forma de uma constante tensão ou

contestação. O importante é enfrentar este Absurdo, e ultrapassá-lo de certa maneira, através do engajamento com a comunidade histórica.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-44)