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GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 116-122)

6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS

6.1 GÊNEROS E ÍNDICES PARATEXTUAIS

A discussão acerca dos gêneros literários constitui uma tradição duradoura, que remonta a Aristóteles e prevalece como central até Hegel, não deixando de ser um aspecto ainda hoje importante no campo dos estudos literários. Trata-se de uma consideração dos escritos poéticos que ultrapassa seus aspectos singulares em vistas a classificá-los conforme seus traços mais gerais. Esta classificação dos textos conforme os gêneros, por sua importância, tradição e abrangência, funciona como um quadro de orientação e como um fator levado em conta pelo escritor ao produzir uma obra, e é considerado também pelo leitor, ainda que de modo não refletido, no momento da leitura.

Assim, pode-se não concordar com a tripartição dos textos, atribuída a Platão e Aristóteles, em poemas épicos, líricos ou dramáticos (ou nem mesmo com as classificações modernas que incluem uma maior diversidade genérica), mas não se pode esquecer que tal divisão é das mais conhecidas e aceitas e, por isso, é considerada pelo autor no momento em que este imagina seus possíveis leitores. Juntamente com a previsão do interlocutor se estabelecem a finalidade da produção textual e, também, os recursos retóricos que o autor julga mais compatíveis com o gênero com o qual escolhe construir sua obra. Tanto o processo de escrita quanto o processo de leitura se inscrevem nos limites da tradição dos gêneros, ambos são de natureza fundamentalmente genérica. Depois da tradição estabelecida não se pode criar sem considerar a problemática dos gêneros, ou seja, a escolha de um gênero é para o autor uma forma de se posicionar no campo literário.

A classificação genérica determina de certa forma a obra, pois esta não é feita antes, isoladamente, para só depois ser distribuída em gêneros, a obra é construída na consciência da existência de gêneros distintos. Mesmo quando os escritores questionam as distinções dos

gêneros, eles sabem que elas parecem ser tomadas como evidentes e jogam com esta aceitação. Trata-se de uma norma reconhecida, e só a partir da norma pode haver as transgressões, que são sempre significativas para o fazer literário, enquanto rupturas ou questionamentos.

A História dos gêneros parece dividida entre dois extremos, desde uma adoção direta e inquestionável do legado dos clássicos gregos, a partir do qual se chegou a considerar que há apenas dois ou três gêneros singulares e imutáveis, até o outro extremo, o de que cada texto teria seu próprio gênero. Entretanto, a discussão mais recente tem ampliado uma reflexão aprofundada sobre o tema.

Entre os ―clássicos‖, para quem a poesia era ou épica, ou lìrica, ou dramática, a noção de gênero era evidente, e sobre as literaturas antigas a tradição e a forma canônica exerciam um poder muito grande; só com o romantismo esta autoridade, como todas, foi atacada. De fato, desde o romantismo, o elemento formal ligado ao gênero não cessou de perder importância. Sobretudo na poesia, a experiência subjetiva se afastou da tradição formal. Entretanto, o declínio dos gêneros é um processo de dissolução bastante recente, do final do século XVIII, e não é um termo definitivo, mas um capítulo a mais na história dos gêneros. O interesse por eles voltou logo à tona.

Schlegel, Novalis e Hugo se insurgiram contra a noção de gênero e contra a retórica. Hugo, em Odes et Ballades (1826), explicando no prefácio o título da coletânea, mostra uma desenvoltura provocadora com relação à noção de gênero, significativa da estética moderna hostil à retórica, em nome da liberdade do gênio criador. Também no prefácio de Cromwell (1827), Hugo define o ―drama‖ contra a distinção ―clássica‖ entre a tragédia e a comédia; recusar os gêneros é neste caso uma atitude perfeitamente nominalista, visto que esta recusa da retórica era ainda uma retórica: aos antigos gêneros ―clássicos‖, os românticos vão substituir novas distinções (cf. COMBE, 1992, p.4 e 7).

Críticos e escritores dos anos 1960 também recusaram violentamente a noção de gênero literário e fizeram dela seu principal adversário. Em nome do ―texto‖, a antiga distinção dos gêneros era declarada ultrapassada; ela parecia não mais dar conta da originalidade dos ―textos‖ modernos, rebeldes às categorias de ―poesia‖, de ―romance‖ ou de ―ensaio‖. A última destas ―recusas‖ provinha do surrealismo; Breton, hostil até mesmo à idéia de ―literatura‖, preferia que o resultado da escritura automática fosse chamado não ―poema‖, nem ―obra‖, mas ―texto surrealista‖.

É sob o signo da reabilitação de Aristóteles e em favor da reabilitação da retórica, revisitada sobretudo por Tzvetan Todorov e Gerard Genette, que a noção de gênero reapareceu. O gênero tornou-se um tema de reflexão e passou a despertar novo interesse.

A questão dos gêneros retornou, mesmo se muitas obras ―abertas‖ põem em questão as classificações. Mesmo quando se agrupam autores sob a categoria de ―inclassificáveis‖, a noção de gênero persiste e, excetuando-se alguns casos particulares, continua-se publicando ―romances‖, coletânea de ―poemas‖ e peças de teatro. Os prêmios literários reforçam os cânones romanescos, e muitos autores nunca cessaram de reivindicar este ou aquele gênero. O ―texto‖ não suplantou os antigos gêneros, mesmo se estes se transformaram profundamente. O discurso crítico e teórico atual corrobora a persistência da problemática dos gêneros.

Na literatura contemporânea, parece mais difícil de estabelecer classificações genéricas, mas ela se presta ao estudo dos gêneros, o que pesa contra a tese romântica da a- genericidade da literatura moderna. A aparente impossibilidade de se classificar esta literatura se explica em parte pelo desenvolvimento da circulação literária (por causas tecnológicas e sociais), que leva a uma multiplicação extrema dos modelos genéricos potenciais, ou seja, quanto maior a multiplicação genérica, mais difícil sua classificação.

Dentre os adversários da noção de gênero destaca-se Benedetto Croce. Jauss observa que foi Croce quem levou mais longe a crítica desenvolvida desde o século XVIII contra a

universalidade normativa do cânone dos gêneros e quem mostrou ao mesmo tempo a necessidade de fundar uma história estrutural dos gêneros literários. Para Croce, toda obra- prima verdadeira violou a lei de um gênero estabelecido, semeando a confusão no espírito dos críticos, que se viram obrigados a ampliar este gênero; por isso, para o teórico, o problema dos gêneros se reduziria à questão da utilidade de um catálogo classificador (cf. COMBE, 1992, p.40-41). No fundo da ironia de Croce encontramos alguma razão, os gêneros são realmente úteis para os que lidam com os catálogos, mas também para os leitores.

Gerard Genette, em Seuils (Seuil, 1985), denomina ―ìndices paratextuais‖ os elementos que, numa obra publicada, sem pertencerem, propriamente falando, ao texto, o cercam e permitem sua identificação. Para o editor, o que faz do manuscrito um livro é, além de seu texto stricto sensu, seu título, seu índice, seus anexos, quadros e ilustrações, entre outros. Para o leitor, que abre o livro pela primeira vez, todos estes parâmetros paratextuais ajudam a situar o livro, ou seja, a identificar o gênero. Às vezes a operação é imediata, sobretudo quando o título cumpre uma função metalingüística e traz a identidade da obra. Mas às vezes esta evidência do título é enganadora (por exemplo, o Roman inachevé de Aragon é uma coletânea poética), a grande maioria dos títulos não remete à natureza da obra. O subtítulo às vezes cumpre este papel de determinação metalingüística, mas pode também ter uma função irônica, provocadora ou paradoxal. Assim, aos critérios internos à obra que completam o texto (ele próprio portador de índices necessários à sua identificação, como a temática, a estrutura e o estilo) acrescentam-se elementos externos. Os livreiros e bibliotecários são os que mais precisam de classificações e, sem poder ler todos os livros que manuseiam, servem-se de resenhas, comentários e parâmetros paratextuais. Mas a escolha do leitor também é guiada por outros índices, como o editor, a coleção e, muitas vezes, o autor.

Camus, quando publicou La Peste e L’Homme révolté, já era conhecido como romancista, dramaturgo, ensaísta e, talvez principalmente, como jornalista. Muitos leitores

esperavam suas obras e estavam dispostos a lê-las a partir de experiências de leituras anteriores. Esta escolha guiada pelo autor é comum, sobretudo, no caso de escritores vivos.

O leitor potencial faz escolhas também em função de conselhos e sugestões de livreiros, professores ou amigos e também em função das críticas que tenha lido. O leitor sabe de antemão a que gênero pertence o livro, antes mesmo de tê-lo consultado. O discurso crítico e o comentário pertencem, assim, aos parâmetros paratextuais que contribuem para a identificação genérica (Cf. COMBE, 1992, p.10-11).

Dos diversos índices paratextuais de que fala Gerard Genette, os títulos das obras, no caso dos textos de Camus, são sempre muito significativos; primeiramente, por remeterem diretamente ao tema delas. Em L'Étranger, o título corresponde também a "estranho", pois a sensação de "estranheza" perpassa a obra e o próprio Meursault, falando de si, diz "eu", mas com a neutralidade de um "ele", estranho a si mesmo. Em La Peste, a epidemia, em sentido próprio ou alegórico, é o tema do livro; Le Mythe de Sisyphe é uma referência direta à figura mitológica que exerce um trabalho absurdo e, daí, referência ao Absurdo em geral; L'Homme révolté trata das relações entre a Revolta e sua configuração degenerada na forma de revolução violenta e totalitária. Nestas duas últimas obras, o subtítulo explícito refere-se diretamente ao conteúdo da obra: são ensaios no sentido mais completo em que ele se desenvolveu principalmente na França, desde Montaigne. É uma situação diferente daquela que ocorre em O Ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, em que, apesar da auto-classificação estampada ao início da obra, o texto se apresenta muito mais sob a forma de um tratado, que, embora leve em conta o aspecto subjetivo e "fenomenológico" da experiência humana, traduz- se numa linguagem árida e numa organização sistemática que se pretende exaustiva. Como afirma Karl Viëtor, tratando do gênero lírico, um poema pode pertencer ao gênero mesmo se o poeta não o define expressamente como tal, pois não é o nome que decide, mas a estrutura

genérica do poema. Quando um poema traz a etiqueta do gênero, uma relação verdadeira com o gênero está, regra geral, presente, como pode também se revestir de outra forma.

O subtítulo, ou mesmo a ausência dele, é particularmente relevante no caso da Peste, de Camus.A obra não traz nenhuma indicação genérica, não havendo a indicação "romance" e nem mesmo "narrativa", que é uma caracterização dada a posteriori pelos críticos (ao lado de "ensaios", "teatro" e "novelas") das obras de Camus para a edição "Pléiade". Dentre os inúmeros elementos presentes na Peste, como uma forte ironia apontada pelos críticos, podemos incluir a dimensão do "enigma" (título de um conto de Camus) ou mistério, que existe com relação ao narrador. Tal narrador permanece oculto durante praticamente toda a duração da narrativa. No início do primeiro capítulo lemos: "le narrateur, qu'on connaîtra toujours à temps [...]" (CAMUS, 1962, p.1221) e só ao final do último temos a revelação:

Rieux décida alors de rédiger le récit qui s'achève ici, pour ne pas être de ceux qui se taisent, pour témoigner en faveur de ces pestiférés, pour laisser du moins un souvenir de l'injustice et de la violence qui leur avaient été faites, et pour dire simplement ce qu'on apprend au milieu des fléaux, qu'il y a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mépriser. [...] Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, [...] et que, peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité heureuse (CAMUS, 1962, p.1474).

Podemos observar que o mistério ou suspense com relação ao narrador está ligado, de certa forma, à falta de especificação "romance" ao início da obra e à ambigüidade com relação a seu "gênero". La Peste, de início, como apontamos no capítulo 3, é marcada pela diversidade de sentidos; a epígrafe, tomada de Daniel Defoe aponta para a polissemia, característica da linguagem poética. Entretanto, as primeiras linhas do texto evocam o gênero ―crônica‖ e remetem, assim, ao trabalho do historiador ou jornalista, mais do que àquele do médico (CAMUS 1962, p.1219).

Camus, escritor já consagrado à época de publicação da Peste, era conhecido talvez mais como jornalista do que como romancista. Para o leitor francês da década de 50, o narrador parece ser, a princípio, ou Rambert, que é um jornalista (como Camus e que faz, como ele, uma reportagem sobre a situação de miséria do povo da Kabila) ou Tarrou, que partilha exatamente as opiniões políticas do autor, defendidas em seus textos jornalísticos, como aqueles publicados no jornal Combat. Há um elemento de suspense para o leitor, com relação ao narrador, e certa surpresa, ao se revelar que tal narrador é o médico, doutor Rieux.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 116-122)