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A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 151-171)

6 CAMUS ANTE OS GÊNEROS

6.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS GÊNEROS

A interpenetração de gêneros é natural, pois não há gênero totalmente puro. Pode-se pensar que certas obras contêm o elemento genérico com mais pureza relativa do que outras, mas não se pode dizer que nelas o "tipo" está realizado, ou que nelas o gênero em sua plenitude e em sua história atinge sua realização ideal. Nenhum exemplar particular pode ser considerado o tipo de um gênero, como nenhum animal individual pode ser erigido em modelo de mamífero; conhecendo-se o conjunto das espécies é que se chega à abstração do esquema ideal, e nas obras literárias não há uma caracterização tão simples como, por exemplo, nos mamíferos: amamentar os filhotes (cf. VIËTOR, 1986, p.25 e 28).

A interpenetração de características genéricas está presente de alguma forma em qualquer gênero, e pode ocorrer mesmo no interior de um subgênero, como o caso do soneto

no gênero lírico, conforme um exemplo apresentado por Viëtor. Ele busca definir de maneira provisória e hipotética as particularidades do gênero soneto e afirma que na poesia, gêneros como o soneto e a ode, e mesmo a elegia, caracterizam-se por buscarem igualmente unir sensação e reflexão. Entretanto, ainda que haja uma única característica comum ao soneto, à ode e à elegia, não é este ponto comum entre eles o traço constitutivo de cada um dos três gêneros; tal característica comum seria o fato de serem ao mesmo tempo poesia da idéia e poesia do sentimento, o fato de desenvolverem juntamente o pensamento e o sentimento a partir do canto sobre um único objeto e na unidade do poema.

A significação mais nobre do soneto seria a expressão concisa de uma sensação forte e de um espírito profundo dado à reflexão (a unificação do espírito e da sensação, do pensamento e do sentimento), mas esta união de sensação e reflexão também estaria presente na ode. Para Viëtor, o soneto resolve a tensão entre a esfera do espírito e a do sentimento visando a uma síntese e a uma solução no termo de um percurso de posições dialéticas. A ode resolve esta tensão tentando ultrapassá-la do ponto de vista do espírito, donde seu tom carregado de seriedade e de dignidade. A elegia, enfim (em sua variedade moderna e sentimental) mantém esta tensão sem resolvê-la, ela oscila entre o conflito e a harmonia, a tranqüilidade e o movimento, mas sobre o ritmo moderado e suavizado que corresponde às proporções do metro (cf. VIËTOR, 1986, p.20-21).

O ensaio é um gênero moderno, que escapa à tripartição clássica, voltada unicamente para a produção mimética, e dele não trata Viëtor. Entretanto, se buscarmos um paralelo com as formas apresentadas, observaremos que ele se aproxima, conforme a concepção tripartida, tanto do épico quanto do lírico, uma vez que a epopéia estaria relacionada com a faculdade de conhecer e a poesia lírica com a sensação.

Em seus ensaios, Camus realça esta imbricação entre gêneros, associando ao aspecto épico ou reflexivo do ensaio um aspecto lírico ou poético; o ensaio estaria próximo da epopéia

por se relacionar com a ―faculdade de conhecer‖ e estaria igualmente próximo da lìrica, por ser marcado pela ―sensação‖, traduzida em inúmeras figuras e elementos que remetem ao mundo material e natural. Ou seja, Camus une a razão à sensibilidade, as faculdades humanas de conhecer e de sentir, sem que elas se anulem mutuamente, e seus ensaios se situam entre o desejo de conhecer e o sentimento do homem no mundo. Por isso se formos compará-lo a um subgênero da lírica, o ensaio camusiano estaria próximo não do soneto nem da ode, porém muito mais da elegia, em que os contrários coexistem, diferentemente também do que ocorre num sistema, em que a tensão e a ambivalência são eliminadas, quando a tese e a antítese são desfeitas ao se tornarem síntese, numa visão unilateral do mundo.

A célebre regra das três unidades – de tempo, espaço e ação – que os clássicos do teatro francês codificam no século XVII e contra a qual se insurgem os românticos está latente em Platão e Aristóteles, que privilegiam a narrativa pura. A Arte poética, de Boileau, desde a abertura, coloca o problema da mistura dos gêneros para condená-lo em nome da unidade da obra, cujo princípio é diretamente inspirado pela unidade de ação na tragédia. Segue-se a lógica aristotélica, essencialista e que exige a separação dos temas, das formas, dos estilos e dos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.40).

Como mostrou Genette, Platão faz corresponder os ―gêneros‖ literários a ―modos‖ de enunciação: a narrativa pura caracteriza o ditirâmbico, a imitação caracteriza a tragédia e a comédia, o misto caracteriza a epopéia homérica. É por causa do caráter híbrido da Ilíada que Homero é posto em questão por Platão. Em Aristóteles, a epopéia é caracterizada como o modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou impuro. O narrativo puro seria inexistente, e o misto seria então o único narrativo. Assim, Platão fala em narrativo, misto e dramático; e Aristóteles fala em dramático e narrativo, sendo este evidentemente misto (cf. GENETTE, 1986, p.104 e 106-107).

O sistema inicial de Aristóteles não deixava espaço algum para o poema lírico e esquece a distinção platônica entre o modo narrativo puro, ilustrado pelo ditirâmbico, e o modo misto, ilustrado pela epopéia. Aristóteles reconhece e valoriza o caráter misto do modo épico, o que desaparece nele é o status de ditirâmbico e, daí, a necessidade de distinguir entre narrativo puro e narrativo impuro. Se para Platão a epopéia se caracteriza como o modo misto, para Aristóteles ela se caracteriza como o modo narrativo, ainda que essencialmente misto ou impuro, o que significa que o critério de pureza não tem mais relevância.

Com relação à tragédia, a obsessão pela pureza já não existe em Aritstóteles. Para o filósofo a ação pode ser capaz de suscitar temor e compaixão na ausência de toda representação cênica e ao simples enunciado dos fatos, ou seja, o assunto trágico pode ser dissociado do modo dramático e confiado à simples narração sem por causa disto tornar-se assunto épico; o critério de pureza parece não ter mais tanta relevância (cf. GENETTE, 1986, p.102 e 104). O que nos ficou da Poética se reduz no essencial a uma teoria da tragédia. E a tragédia seria uma especificação temática do drama nobre, como para nós o romance policial é uma especificação temática do romance.

Aristóteles enuncia três critérios para distinguir as ―espécies‖ de mimésis, que diferem por três aspectos: ou imitam por meios diferentes (como o verso e a prosa), ou imitam objetos diferentes (homens nobres ou baixos), ou imitam segundo modos diferentes (como a encenação do teatro). Ele retoma a problemática platônica dos ―modos‖ de enunciação, que ele reduz a dois: a narrativa (epopéia) e a imitação (teatro), excluindo o modo ―misto‖ que é a epopéia, segundo Platão.

De acordo com D. Combe, para Aristóteles a imitação é imitação de ações humanas e, assim, toda a teoria da tragédia e da epopéia repousa sobre o tema do mythos, da história ou intriga, e os caracteres viriam em segundo plano. É com referência à tragédia que a epopéia é definida – ou seja, com referência ao mythos, da qual mudam apenas o "modo" e os "meios"

da versificação. Por isso não há lírico em Aristóteles, por escapar ao narrativo, e não ter, portanto, direito em poesia; menos ainda em Platão. A tríade se revela um monismo da narrativa, que estaria na raiz da valorização ocidental dos gêneros que ―contam uma história‖ (cf. COMBE, 1992, p.37).

Platão é moralista e idealista, Aristóteles naturalista e realista, mas ambos acabam por valorizar a tragédia como um ―modo‖ superior e ―puro‖, em detrimento da ―epopéia‖, vista como uma forma bastarda, ou misturada, daí o caráter essencialista da poética grega. A própria noção de gênero parece indissociável de uma preocupação com a ―pureza‖. E da mesma forma que há nos defensores da retórica uma espécie de horror à ―mistura de gêneros‖ como necessidade de limitação das formas literárias para evitar a decadência, em autores modernos encontramos também o sonho da poesia ou do romance puros, como em Mallarmé, Valéry e Gide; trata-se da mesma lógica de delimitação e de ―triagem‖ que a definição essencialista permite (cf. COMBE, 1992, p.45-46).

A literatura para Mallarmé se identifica ao ―verso‖ num sentido largo, ou seja, à poesis,e exclui por natureza a narração, a descrição e o didatismo; a poesia deve ser ―pura‖ e para isso ela precisa ser lírica. A oposição, em suma, do poético e do narrativo se substitui ao mesmo tempo àquela da poesia e da prosa, e à tríade dos ―modos‖ e de seus gêneros constituídos. Esta nova distribuição dos gêneros atesta, apesar de tudo, a perenidade da taxonomia aristotélica. As categorias mudam um pouco, a hierarquia dos valores estéticos se inverte, continua uma grande oposição binária – não mais entre tragédia e epopéia – mas entre ―mimesis de ação‖ (narrativa ou dramática) e a expansão lìrica da afetividade: a poesia lìrica não relata. De Aristóteles a Mallarmé, o mythos parece sempre o critério de delimitação (cf. COMBE, 1992, p.72-73).

Para Hegel, o gênero superior seria o drama, pois considera que a poesia dramática reúne harmoniosamente o "objetivo" ao "subjetivo" de maneira que ela representa "a fase

mais elevada da poesia e da arte". Hegel busca mostrar o encaminhamento dialético que, através dos contrários que são o épico, votado à "objetividade" do mundo, e a poesia lírica, votada à "subjectividade" absoluta do Eu do autor, leva até a reconciliação de ambos na poesia dramática (cf. COMBE, 1992, p.60).

Hölderlin associa a divisão aristotélica dos três gêneros – épico, trágico, lírico – à psicologia dos heróis homéricos que ele retira da Ilíada. O homem "natural" (ou "puro") está em harmonia como o mundo, o homem "heróico", corajoso e violento, se opõe ao contrário ao mundo com veemência; o homem "ideal", por sua vez, de espírito propenso à síntese, abarca o todo, em detrimento do "detalhe", daí três tons: natural, heróico e ideal. O "tom fundamental" deve obrigatoriamente se exteriorizar por seu "outro" – o "puro" deve se transformar em sua expressão em "ideal", o "ideal" em "heróico", o "heróico" em "puro". Ou seja, a poética de Hölderlin está fundamentada sobre a idéia de uma mistura dos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.57-58).

Para Staiger o "lírico" é absolutamente refratário ao raciocínio e à argumentação – à retórica como instrumento de persuasão (cf. COMBE, 1992, p.138). Por isso, apesar da atitude "essencialista" que ele adota, Staiger está em desacordo com a idéia de Mallarmé, mas também néo-clássica, de uma "pureza" dos gêneros. Ele se mostra fiel à idéia romântica da "mistura de gêneros", da benéfica síntese que permitiria transcender a classificação aristotélica (cf. COMBE, 1992, p.141).

Com efeito, a idéia de que o absoluto da arte é atingido pela mistura, pela síntese, é eminentemente romântica. Os românticos defendem a mistura dos gêneros, diferentemente de Platão e em oposição a ele e aos clássicos em geral, mas não deixam de eleger, como Platão, um gênero, ou modo superior que permitiria englobar todos os gêneros e que seria, para a maioria deles, a poesia, embora Hugo defenda o "drama", e A.-W. Schlegel, o romance (claro, concebido à sua maneira, que ele qualifica precisamente de "romântico"). O tema da

fusão e a idéia da poesia como gênero supremo, estariam presentes até hoje, revelando a perenidade deste modelo romântico.

Assim, no romantismo, a defesa da mistura dos gêneros está ligada à busca de uma arte total. Na concepção romântica da poesia, o problema retórico das distinções entre os gêneros é deslocado para um outro, filosófico, o da unidade da poesia que, forma primeira, é também englobante. Este tema da "mistura dos gêneros", tão freqüentemente invocado pelos românticos franceses, Hugo, em particular, seria inspirado pela reflexão do Athenäeum sobre o projeto da "poesia romântica", chamada a abraçar todos os gêneros, separados artificialmene pelo espírito clássico. De fato, W. A. Schlegel afirmava que, se a arte e a poesia antiga não admitiam nunca a mistura dos gêneros heterogêneos, o espírito romântico, ao contrário, busca uma aproximação contínua de coisas opostas, em que todas as antinomias se abraçam e se confundem numa união estreita.

Esta aproximação incluiria, além dos "gêneros" históricos, os "modos", o verso e a prosa, os estilos, constituindo o que chamamos hoje a "literatura", cujo conceito surgiu com o romantismo de Iena, ela própria identificada com a filosofia. A poesia romântica seria uma poesia universal progressiva e estaria destinada não só a reunir todos os gêneros separados da poesia, mas também a fazer se tocarem poesia, filosofia e retórica. Donde seu objetivo de tanto misturar quanto fundir juntamente poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia de arte e poesia natural(cf. COMBE, 1992, p.62).

O "terror" da vanguarda da estética romântica contra os gêneros e contra a retórica, longe de abolir a noção de gênero, promoveu finalmente a poesia à posição de gênero superior que englobaria todos os outros. Hugo realiza na prática esta mistura, quando seus poemas apresentam uma tranformação estilística e, de épico se faz pouco a pouco lírico, dramático e satírico, tornando incerto o estatuto retórico do texto em seu conjunto. Então, é a

predominância deste ou daquele ato, e daí, desta ou daquela função, que permitiria determinar a identidade do texto.

Hoje se reconhece que a qualidade artística de um texto literário não equivale à pureza com que ele reproduz um modelo de gênero. Jauss, destacando o aspecto histórico dos gêneros, fala não tanto de ―mistura de gêneros‖, mas antes da transformação por que eles passam. Para Jauss, ―os gêneros se transformam ao participar da história e se inscrevem na história ao se transformarem‖ (JAUSS, 1986, p.49). Uma manifestação histórica do gênero pode variar ao longo da história, ou seja, a estrutura do gênero pode se modificar sem que este perca sua particularidade; assim, tanto gêneros tradicionais quanto gêneros não consagrados configuram não uma classificação lógica, mas o sistema literário próprio a uma dada situação histórica. Na verdade toda obra apresenta uma dominante que governa o sistema do texto, a particularidade de um gênero aparece num conjunto de características e de procedimentos dos quais alguns prevalecem.

Também Viëtor destaca que as três ―formas naturais elementares‖, ou ―modos poéticos‖, estão presentes, segundo proporções que mudam, em quase todas as obras. Nenhuma obra realiza em si o tipo em toda a sua pureza, a obra épica e a obra dramática podem mostrar nelas elementos líricos e vice-versa. Da mesma maneira que os tipos de comportamento humano em face do mundo podem ―atuar‖ ao mesmo tempo num ato único realizado, os três modos poéticos podem atuar separadamente ou juntos numa mesma e única obra. Daí a possibilidade de os gêneros se mesclarem, ainda que um prevaleça (cf. VIËTOR, 1986, p.27).

Assim, a interpenetração de gêneros é natural também porque não há gênero totalmente puro, ou seja, obra nenhuma pode ser o tipo perfeito de um gênero, contendo características de apenas um gênero. É o prevalecer deste ou daquele traço que, finalmente, define a obra. Somente no nível das "categorias genéricas" se pode encarar "significações

ideais", e de forma alguma no nível das obras efetivas, reais, que são necessariamente "misturadas", híbridas.

Neste sentido, mais importante do que definir em que gênero se enquadra uma obra, como La Peste, de Camus, é interessante destacar quais as características de quais gêneros estão nela presentes. Ou seja, ao invés de fechar a questão, dizendo que se trata de um romance ou de uma crônica, ou de um ensaio, podemos dizer que a obra apresenta características do romance, da crônica, da tragédia e do ensaio, e esta indefinição na diversidade é, de fato, não apenas o elemento reivindicado pelo autor, mas o elemento com que se faz a obra e com a qual ela adquire sua significação mais completa.

A própria noção de gênero parece às vezes se basear no postulado de que existem de alguma maneira formas a priori, universais e intemporais, da literatura – os universais dos quais seria possível tirar a "essência" em estado "puro". A teoria dos gêneros obedeceria por conseguinte a uma lógica essencialista, idealista – e esta é, talvez, a razão pela qual as vanguardas a atacaram tão violentamente. A retórica, em sua preocupação com a taxinomia, e conseqüentemente com as distinções, privilegia de fato os gêneros "puros" em relação aos "mistos", ou "híbridos", revelando assim seus postulados platônicos.

Se o estruturalismo escapa à história ao propor modelos abstratos, intemporais e universais, o positivismo e o romantismo são eminentemente históricos. De fato, aos irmãos August-Wilhelm e Friedrich Schlegel se deve a ―historicização‖ da noção de gênero. Eles, pela primeira vez, interrogam como filósofos não só os gêneros, mas a noção mesma de gênero, da qual são os primeiros teóricos. Fazem do conceito de gênero um elemento cultural e não natural, sendo que tal conceito supõe a história e deve ser situado num lugar e numa época (cf. COMBE, 1992, p.56-57).

Até a idade clássica, a poética, conforme sua etimologia, trata exclusivamente da poesia, esta sendo identificada ao que chamarìamos hoje de ―literatura‖, cujo sentido moderno

só se impôs verdadeiramente no século XIX. Inicialmente, os gêneros em prosa existiam, na forma do romance, desprezado como um gênero frívolo, mas eles têm muitas vezes um estatuto ambìguo, em razão da amplidão do campo das ―Belles-Lettres‖, que englobam igualmente a história, a história natural, os ensaios jurídicos e filosóficos, de maneira que só a poesia era considerada uma arte (cf. COMBE, 1992, p.69).

Assim, a idéia de gênero ―puro‖, associada a uma visão essencialista dos gêneros, não encontra mais respaldo nem nas teorias modernas nem na prática literária contemporânea. Muitos textos, como Les Chants de Maldoror (1869) de Lautréamont, Moralités légendaires (1887) de Jules Laforgue, Une Saison en enfer (1873) de Rimbaud ou o Ulisses de Joyce, e a maioria dos textos contemporâneos, porque são essencialmente polifônicos, plurais, não têm por objetivo pertencer a um gênero único.

A retórica antiga, que distingue cuidadosamente os ―modos‖ e ―gêneros‖ da poesia, não pode ser imposta aos textos modernos, pois a poesia se tornou praticamente indefinível. Mesmo se é mantida a antiga tríade aristotélica, ou pseudo-aristotélica, na modernidade há uma mistura da poesia e da prosa. Quanto à própria distinção entre ficção e não ficção, importante para um estudo dos gêneros, a obra moderna foge às classificações e leva ao extremo a confusão entre o real e o imaginário, entre a autobiografia e a ficção, a despeito dos antigos gêneros (cf. COMBE, 1992, p.154-155).

É difícil encontrar um elemento comum à "poesia" dos clássicos gregos, às "Belles- Lettres" dos modernos e à "literatura" dos contemporâneos. As concepções genéricas da retórica antiga foram formuladas em função de (e se aplicam a) uma determinada produção poética que não existe mais. Se a distinção entre o épico, o lírico e o dramático conserva seu valor, a obsessão pela pureza e a defesa de um modo ou gênero superior já não fazem sentido.

O postulado da "pureza" – da existência ideal de gêneros essenciais – é inadequado a uma literatura em que são valorizadas a "mistura", a intertextualidade, a "mestiçagem" das

culturas. Vivemos o sonho simbolista da "obra total" e da "correspondência das artes", bem mais do que a idéia "clássica" de uma distinção e de uma autonomia das artes. Desde o fim do século XIX há uma vontade explícita de uma síntese dos gêneros que leve o autor a tomar emprestados seus meios de uma outra arte. Hoje, as obras são identificadas mais pelo que elas não são do que pelo que são. É pela recusa e pela transgressão que os gêneros modernos se constituem (cf. COMBE, 1992, p.151 e 157).

Para os críticos modernos e contemporâneos, os gêneros colocam primeiramente um problema prático de localização e de identificação, e não de definição abstrata; aqueles não se interessam pelo gêneros senão para melhor compreender a obra, e não admitem as teorias poéticas em que, ao contrário, a obra freqüentemente é apenas um pretexto. À perspectiva normativa e essencialista da teoria dos gêneros, o comentador ou o crítico moderno, que tenta buscar um caminho de leitura e de interpretação, substitui uma perspectiva empírica.

A história da noção de gênero – de Aristóteles a Jakobson – atesta pelo menos, apesar da multiplicidade de definições, a permanência da divisão retórica entre o épico, o lírico e o dramático. Se Genette mostrou bem que esta tripartição dos gêneros literários não figura na Poética de Aristóteles, que se interessa na verdade apenas pela oposição entre o épico e o dramático – entre Homero e Sófocles –, a ―trìade‖ não deixa de presidir à concepção dos gêneros ao longo da história. Fundada sobre um mal-entendido, uma interpretação abusiva da Poética, a tripartição é, porém, a base do edifício retórico e estético construído sobre os gêneros. Mesmo não sendo assinada pela mão de Aristóteles, esta retórica pode, ainda assim, ser qualificada de ―aristotélica‖ uma vez que a tradição a imputa, ainda que de maneira indevida, a Aristóteles. Hoje o que parece ultrapassado são as definições normativas que a tradição impôs aos gêneros, mais do que a noção mesma de gênero.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 151-171)