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O DIÁLOGO DAS OBRAS

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 32-40)

2 O INTRADISCURSO

2.2 O DIÁLOGO DAS OBRAS

Buscamos nos concentrar em nossa pesquisa sobre os textos de Camus que compõem o Ciclo da Revolta, mas é preciso evocar de certa forma os textos da primeira fase, do Ciclo do Absurdo, e outros escritos não agrupados nesta subdivisão, porque, da mesma forma que Camus busca associar reflexão e texto poético, há também um diálogo subjacente entre suas obras e as de autores que ele aprecia, como Jean Grenier, Malraux, Gide e Dostoievski, por exemplo. E, finalmente, há um diálogo interno constante entre suas próprias obras que, de alguma maneira, se referem umas às outras.

Em 1937, Camus publica uma coletânea de ensaios, L'envers et l'endroit, em que estão presentes elementos autobiográficos e uma reflexão de ordem moral é filosófica. E ainda temas que retornam em obras posteriores como a vida cotidiana, a solidão, a estranheza para os outros e para si próprio, a beleza da natureza mediterrânea, a felicidade e a infelicidade de viver, a condenação à morte. O ―eu‖ narrador dos ensaios afirma ao mesmo tempo sua subjetividade e sua relação com o mundo. Em Noces há um ―nós‖ que valoriza a comunhão com os outros, necessária ao pleno desenvolvimento da alegria, mesmo se não se trata ainda do senso do coletivo, presente na Peste.

L'État de siège é muito próximo da Peste e ante alguns críticos que viam na peça uma transposição do romance, Camus afirma que não se trata de uma adaptação e que o projeto da peça precedia o do romance. L'Étranger contém ―a história do Tchecoslovaco‖ que servirá de tema ao Malentendu, e é toda a história do Malentendu, com a diferença de que, na peça, Jan volta sem filho e que ele é dopado e em seguida afogado e não assassinado a golpes de martelo:

Entre ma paillasse et la planche du lit, j‘avais trouvé, en effet, un vieux morceau de journal presque collé à l‘étoffe, jauni et transparent. Il relatait un

fait divers dont le début manquait, mais qui avait dû se passer en

Tchécoslovaquie. Un homme était parti d‘un village tchèque pour faire

fortune. Au bout de vingt-cinq ans, riche, il était revenu avec une femme et un enfant. Sa mère tenait un hôtel avec sa soeur dans son village natal. Pour les surprendre, il avait laissé sa femme et son enfant dans un autre

établissement, était allé chez sa mère qui ne l‘avait pas reconnu quand il était entré. Par plaisanterie, il avait eu l‘idée de prendre une chambre. Il avait montré son argent. Dans la nuit, sa mère et sa soeur l‘avaient assassiné à

coups de marteau pour le voler et avaient jeté son corps dans la rivière. Le

matin, la femme était venue, avait révélé sans le savoir l‘identité du voyageur. La mère s‘était pendue. La soeur s‘était jetée dans un puits. J‘ai dû lire cette histoire des milliers de fois. D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle. De toute façon, je trouvais que le voyageur l‘avait un peu mérité et qu‘il ne faut jamais jouer (CAMUS, 1962, p.1182). Este comentário, em L'Étranger, sobre a história é válido também para Le Malentendu — “D‘un côté, elle était invraisemblable. D‘un autre, elle était naturelle‖ — e é retomado quase literalmente na Peste: ―Ces faits paraîtront bien naturels à certains et, à d‘autres, invraisemblables au contraire‖ (CAMUS, 1962, p.1221). Camus inseriu na Peste outra referência a L'Étranger:

Grand avait même assisté à une scène curieuse chez la marchande de tabacs. Au milieu d'une conversation animée, celle-ci avait parlé d'une arrestation récente qui avait fait du bruit à Alger. Il s'agissait d'un jeune employé de commerce qui avait tué un Arabe sur une plage. "Si l'on mettait toute cette racaille en prison, avait dit la marchande, les honnêtes gens pourraient respirer." (CAMUS, 1962, p.1262)

La Peste também traz uma lembrança do Malentendu, pois aì se lê: ―Compreendi que toda a infelicidade dos homens vinha do fato de que eles não mantinham uma linguagem clara‖, e a falta de transparência na comunicação e na linguagem é justamente um dos temas do Malentendu. Nos Carnets de Camus, em dezembro de 1938, há observações referentes a Caligula, ao lado de notas ou de fragmentos para La Peste. O próprio Calígula surge como encarnação da peste: ―C‘est moi qui remplace la peste‖ (CAMUS, 1962, p.94), o que mostra que, para Camus, a noção de flagelo e o símbolo da peste são indissociáveis da representação do mal.

As peças de teatro de Camus que ele inclui na temática da Revolta são L'État de siège e Les Justes. Sobre estas peças, os escritos jornalísticos e os textos autobiográficos, não nos detemos; fazemos referência a estes textos com o objetivo de destacar a diversidade de gêneros com que se faz a produção de Camus.

Em 1935 Camus assumiu a Maison de Culture de Argel e, ainda em Argel, fundou, no ano seguinte, o ―Théâtre du travail‖. Camus era membro do Partido Comunista, ao qual aderiu em 1935 e no qual permaneceu até 1937. Suas atividades dentro do partido se concentravam no recrutamento em meio muçulmano e na condução da companhia, que se propunha como popular e revolucionária, e nela Camus trabalhou como animador, ator, diretor, encenador e freqüentemente adaptador. Era a primeira manifestação de sua paixão pelo teatro. Seu ingresso no campo do teatro, da mesma forma que sua entrada no jornalismo, está associado a um posicionamento político, o que mostra que as atividades do escritor como jornalista e como dramaturgo são inseparáveis, desde o início de sua carreira, de seu engajamento social.

Camus desenvolveu suas atividades teatrais no ―Théâtre du Travail‖ de 1935 a 1937. Depois da ruptura com o PC fundou outra companhia teatral: ―L‘Équipe‖, e nela trabalhou de 1937 a 1939. Ele montou algumas peças, como Révolte dans les Asturies, que relata a revolta dos trabalhadores das minas de Oviedo, em 1934. Esta peça era uma criação coletiva, escrita

em parte e dirigida por ele; julgada subversiva pelo prefeito de Argel, teve por isso sua representação proibida. Camus adaptou e montou ainda Le Retour de l’enfant prodigue, de Gide, Le Temps du Mépris, de André Malraux, Le Paquebot Tenacity, de Vildrac, La Femme silencieuse, de Ben Johnson, Le Prométhée, de Ésquilo e Os irmãos Karamazov, de Dostoievski, entre outros.

Enquanto autor propriamente dito, Camus tem uma obra dramática bastante reduzida: Caligula (1944), Le Malentendu (1944), L'État de siège (1948)e Les Justes (1950). A partir de 1952, voltou de forma mais intensa ao teatro e retomou suas adaptações: La dévotion à la croix, de Calderón de la Barca (1952), Les Esprits, de Pierre de Larivey (1953), Un cas intéressant, de Dino Buzatti (1955), Le Chevalier d’Olmedo, de Lope de Vega (1957), Requiem pour une none, de William Faulkner (1957) e Les Possédés, De Dostoïevsky (1959). Além disso, o teatro foi para Camus uma de suas paixões, não só como forma de escrita, mas principalmente como lugar de uma comunhão, graças a sua dimensão comunitária e de equipe. Em 1958, numa entrevista, ele destacou a importância que dava ao teatro:

Je retrouve au théâtre cette amitié et cette aventure collective dont j‘ai besoin et qui sont encore une des manières les plus généreuses de ne pas être seul.

[...] Avec la littérature, cette passion est au centre de ma vie. Je m‘en rends

mieux compte maintenant (CAMUS, 1962, p.1713).

Em Les Justes deparamo-nos com um grupo de revolucionários russos que, em 1905, prepara um atentado contra o grão-duque. Kaliayev, o terrorista encarregado de lançar a bomba não o faz na primeira tentativa porque ao lado do duque há duas crianças. Camus levanta aqui o problema do terrorismo em suas relações com a Revolta e com a revolução. Qual o valor de uma ação revolucionária se ela é contaminada pelo crime e pela desonra? É a mesma questão que subjaz ao ensaio L'Homme révolté, como combater o mal e a injustiça sem recair no crime, como lutar contra a violência sem agir violentamente? Como no ensaio, e

como na Peste, as falas dos personagens assumem freqüentemente o tom de uma discussão ética.

KALIAYEV: Non. Je sais ce qu‘il pense. Schweitzer le disait déjà: "Trop extraordinaire pour être révolutionnaire." Je voudrais leur expliquer que je ne suis pas extraordinaire. Ils me trouvent un peu fou, trop spontané.

Pourtant, je crois comme eux à l‘idée. Comme eux, je veux me sacrifier.

Mois aussi, je puis être adroit, taciturne, dissimulé, efficace. Seulement, la

vie continue de me paraître merveilleuse. J‘aime la beauté, le bonheur ! C‘est pour cela que je hais le despotisme. Comment leur expliquer ? La

révolution, bien sûr ! Mais la révolution pour la vie, pour donner une chance à la vie, tu comprends ? (CAMUS, 1962, p.322)

"Les Meurtriers délicats", um capítulo de L'Homme révolté, trata dos terroristas russos de 1905, o que nos permite pensar que a peça teve sua origem durante a longa preparação do ensaio.

L'État de siège foi realizado com a colaboração de Jean-Louis Barrault que, após a publicação da Peste, propôs a Camus a realização de um espetáculo sobre o tema. Não se trata de uma peça de estrutura tradicional, mas de um espetáculo em que se busca reunir todas as formas de expressão dramática, não é, contudo, como explicou Camus, uma adaptação do romance. Pelo fato de que o único meio de vencer a peste é não ter medo, o tema da Revolta se manifesta:

LA SECRÉTAIRE: Il y a une malfaçon, mon chéri. Du plus loin que je me

souvienne, il a toujours suffi qu‘un homme surmonte sa peur et se révolte pour que leur machine commence à grincer. Je ne dis pas qu‘elle s‘arrête, il s‘en faut. Mais enfin, elle grince et, quelquefois, elle finit vraiment par se

gripper (CAMUS, 1962, p.273).

Ao situar o desenvolvimento da ação em Cadix, Camus fez uma denúncia direta do sistema de Franco na Espanha. A representação da peça, apesar da expectativa criada pela associação entre um diretor e um autor já renomados, não obteve sucesso de público.

Os textos jornalísticos de Camus, em sua maioria editoriais, são textos de estatuto particular. Pela sua especificidade, estão diretamente associados aos acontecimentos da

história e se voltam prioritariamente para o momento em que são escritos, mas constituem ao mesmo tempo espaço privilegiado para o autor desenvolver sua reflexão, estreitamente relacionada com aquela presente nos ensaios. Para os estudiosos, estes textos podem despertar um interesse especial e funcionar como fonte de esclarecimento para as demais produções do autor, sobretudo porque transparecem neles, de forma mais direta, as concepções éticas e políticas bem como os posicionamentos do autor na sociedade e nos campos dos saberes, e estes textos jornalísticos refletem igualmente seu engajamento social.

Camus trabalhou como jornalista com entusiasmo e idealismo, esta atividade era para ele uma verdadeira profissão. Ele propunha um jornalismo crítico e sério, criticava os meios de comunicação que se preocupava mais em informar rapidamente do que em informar bem, sem separar os fatos das interpretações, e criticava sobretudo a manipulação possível da informação a que alguns jornais se entregavam. Ou seja, trata-se de um jornalismo crítico da realidade histórica e, ao mesmo tempo, crítico sobre seu próprio papel.

Camus iniciou sua carreira de jornalista na Argélia, em outubro de 1938, trabalhando no "Alger Républicain", o jornal do qual Pascal Pia era o redator-chefe e que fora fundado em Argel para se constituir como órgão do ―Front populaire‖. Além de crônicas judiciárias e literárias, Camus publicou comentários polêmicos da vida política de Argel, e fez reportagens politizadas, como ―Misère de la Kabylie‖, de 1939. Por causa da Guerra, ―Alger Républicain‖ se tornou ―Le Soir Républicain‖, do qual Camus foi redator-chefe até inícios de 1940. Após muitos problemas com a censura o jornal foi fechado definitivamente. Camus, sem trabalho, deixou a Argélia e foi para a França; com exceção de uma estada no ano seguinte, ele só voltará à Argélia de tempos em tempos.

No inìcio de 1940, Camus estava em Paris e trabalhava no jornal ―Paris-Soir‖, como secretário de redação. Em 1943, ele se uniu aos dirigentes do movimento de resistência ―Combat‖, participou ativamente desse movimento e do jornal clandestino de mesmo nome,

do qual foi redator-chefe de 1944 a 1947. Em 21 de agosto de 1944 saiu o primeiro número de ―Combat‖ fora da clandestinidade, com um notável editorial de Camus. Sua participação no jornal foi intensa: em maio de 1945 protestou contra a repressão dos motins de Sétif, em agosto foi um dos raros a denunciar o horror das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki: ―La civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie‖; em 1946 publicou uma série de artigos: Ni victimes ni boureaux; em 1949 lançou um apelo em favor dos comunistas gregos condenados à morte.

Durante algum tempo o jornal foi não só o mais lido como também o mais respeitado da França, e a atividade de Camus em ―Combat‖ contribuiu muito para sua popularidade. L'Étranger fora publicado em 1942 e obtivera um sucesso imediato. Dessa forma, a produção literária aumentava o prestígio do editorialista, ao mesmo tempo em que a atividade do editorialista refletia na divulgação de sua produção literária. Esta situação perdurou durante um longo tempo, exceto nos países dominados pelo comunismo, como a Tchecoslováquia, a Alemanha Oriental, a Hungria, a Polônia e a China, entre outros, nos quais o nome e a pessoa do autor foram proscritos, depois que ele foi rotulado de anti-comunista em função de suas críticas ao sistema. Conforme Shaoyi Wu: "À la suite de la fondation de la Chine populaire, durant trente ans, de 1949 à 1979, la Chine a prohibé les oeuvres de l‘écrivain français Albert Camus; et sa personne n‘a jamais été présentée dans ce pays." (WU. In : DUBOIS, 1995, p.283)

Camus voltou ao jornalismo em 1955, com uma série de artigos no jornal ―L‘Express‖. Seus artigos em ―Alger Républicain‖ e em ―Soir Républicain‖, particularmente a reportagem intitulada ―Misère de la Kabylie‖, sua posição em favor de uma paz verdadeira, a participação na Resistência, os editoriais de ―Combat‖, são testemunhos de um engajamento com a comunidade social, são modos de ação e mostram uma consideração da história e uma luta em favor da justiça, da liberdade, da democracia, do respeito e da dignidade do homem.

Os escritos mais diretamente autobiográficos de Camus assumiram a forma de Carnets, que não constituem um diário, tratando-se, às vezes, de simples anotações em vistas à elaboração de seus textos de narrativas ou ensaios. Na verdade, na Peste, as referências à própria biografia feitas por Camus são extremamente discretas e sutis, evitando-se toda forma de subjetividade exacerbada ou de narcisismo. São dados de um escritor engajado, mas comuns a outros escritores engajados que viveram o mesmo momento do século XX. Há ainda o caso de Le Premier Homme, que poderia ser visto como uma espécie de auto-ficção, de romance/autobiografia, como também outros escritores parecem produzi-los, mesmo sem se darem conta.

O primeiro volume dos Carnets de Camus foi publicado em 1962 com o título Carnets I - mai 1935 - février 1942. Suas anotações feitas durante as viagens à América do Norte e à América do Sul foram publicadas à parte, com o título de Journaux de voyage, 1946-1949. Há de se observar que os Carnets de Camus eram, na verdade, cahiers e que o título Carnets foi mantido pelos editores para se evitar confudi-los com os Cahiers Albert Camus, agrupamento de textos de teóricos sobre o autor.

Ao apresentar suas observações e reflexões sob a denominação de Carnets, Camus busca evitar a conotação narcisística ligada ao diário (Journal), principalmente se é qualificado de "íntimo".

A escrita dos Carnets de Camus é mais próxima do texto "jornalístico" que do texto de "diários": é uma forma simples, fragmentária, que registra notas, um instante, um palavra ou uma cena. Neles Camus registra momentos vividos, conversas, paisagens, anedotas, leituras, idéias, reflexões, projetos de obras futuras, títulos, fragmentos de diálogos, esboços de personagens, etc. Trata-se de uma preparação para a atividade de escrita, sem uma coerência verdadeira, como temática autobiográfica. Camus afirma: ―Une pensée profonde est en continuel devenir, épouse l‘expérience d‘une vie et s‘y façonne. De même, la création

unique d‘un homme se fortifie dans ses visages successifs et multiples que sont les oeuvres‖ (CAMUS, 1965, p.190). E ainda: ―Je ne crois pas, en ce qui me concerne aux livres isolés. Chez certains écrivains, il me semble que leurs oeuvres forment un tout où chacune s‘éclaire par les autres, et où toutes se regardent.‖ (CAMUS, 1965, p.743), o que mostra que, para o autor, a interpenetração de suas obras e o diálogo entre elas não é um fenômeno casual, mas corresponde a uma intenção deliberada.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 32-40)