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As luvas, as lâminas, o estilete de sua arte : intertextualidade e leitura feminina em Ana Cristina Cesar

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ERICA MARTINELLI MUNHOZ

AS LUVAS, AS LÂMINAS, O ESTILETE DE SUA ARTE:

INTERTEXTUALIDADE E LEITURA FEMININA EM ANA CRISTINA CESAR

CAMPINAS, 2017

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INTERTEXTUALIDADE E LEITURA FEMININA EM ANA CRISTINA CESAR

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária

Orientadora: Profa. Dra. Cristina Henrique da Costa

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Erica Martinelli Munhoz e orientada pela Profa. Dra. Cristina Henrique da Costa

CAMPINAS, 2017

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BANCA EXAMINADORA

Cristina Henrique da Costa

Maria Lucia de Barros Camargo

Eduardo Horta Nassif Veras

IEL/UNICAMP

2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros

encontra-se no SIGA – Sistema de Gestão Acadêmica.

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Para Miranda, Mirella e Andrea, foremothers. Que me ensinaram e ensinam, de modos tão diferentes e particulares, a ler com olhos de mulher. And for T, my most generous reader, mon semblable, — mon frère!... mon coeur.

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À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo financiamento, sem o qual a presente pesquisa não seria possível.

À Professora Cristina Henrique da Costa pelo equilíbrio preciso entre uma orientação desafiadora, exigente, e ao mesmo tempo pedagógica, compreensiva e afetuosa. Pela dedicação imensa e pelas leituras profundas e criativas, que por um lado me exigiram questionamentos e reflexões teóricas, e por outro lado abriram espaços para o desenvolvimento de meu próprio estilo. Pela incansável paciência com meus textos tão atropelados, e pela beleza com a qual me ajudou a lapidar imagens e ideias. Obrigada pelo exemplo primoroso de uma orientação verdadeiramente libertadora.

À professora Érica Lima pelas preciosas observações durante o exame de qualificação, em especial o olhar em relação à tradução, contribuição tão importante para o trabalho. Ao professor Eduardo Veras pelas observações valiosas durante a mesa de discussão no SETA, e pelo interesse no trabalho.

À professora Maria Lucia de Barros Camargo pela leitura cuidadosa e dedicada de meu trabalho, pelas observações valiosas no exame de qualificação, e pelo esforço prático de participação nesse processo, que exigiu imensos deslocamentos. Principalmente, porém, pelo seu trabalho de leitura de Ana Cristina Cesar, que me inspirou e acompanhou desde o início até o último momento dessa pesquisa, e certamente me acompanhará como pesquisadora daqui em diante.

A todos os funcionários do Instituto de Estudos da Linguagem, e a todos os colegas da Unicamp, em especial Isabela, Gislaine(s) e Danilo, pelos diálogos e discussões, ajudas e conselhos ao longo desses últimos anos, e um agradecimento especial ao Danilo pelas discussões e viagens teóricas que preencheram tão prazerosamente nossas horas de estrada. Ao Instituto Moreira Salles pela possibilidade rica de pesquisa no acervo de Ana Cristina Cesar, a todas as funcionárias que se disponibilizaram ao diálogo e me auxiliaram na visita ao

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À professora Viviana Bosi pela gentileza com a qual se disponibilizou para tantos diálogos, pelas indicações de leitura e pelo empréstimo de seu livro. Além disso, agradeço imensamente por ter me proporcionado, ainda na graduação, meu primeiro contato com a poesia de Ana Cristina Cesar.

Às colegas da USP (Carolina, Mel, Beatriz, Nadia e Anna) pelo apoio, pelas ajudas com dúvidas pontuais e buscas de referências perdidas no tempo. À Mari D’Abronzo e à Lívia Scatena pelo carinho e dedicação na revisão tão necessária desse trabalho. À Milena Magri pelo conselho valioso que mudou tudo para sempre. À Gabriela Nor pelas aulas e leituras de textos em francês, pelas inúmeras ajudas diretas e indiretas nesse trabalho, e pelo apoio constante. Aos amigos que acompanharam minhas dificuldades com a escrita desde a Iniciação Científica, e contribuíram com olhares, trocas e diálogo para que eu encontrasse caminhos (principalmente Bernardo, Davi, e Lucas).

A um tal de Daniel Murphy que, segundo, André Chalom, minha fonte confiável em tecnologia (além de queijos, ficção científica e política norte-americana), foi o responsável pela criação do TECO, e portanto pela invenção do comando control + f, que possibilita a busca de palavras específicas em textos enormes, sem o qual desvendar as referências de Ana C. em obras de Joyce, Eliot, etc., teria sido tarefa exaustiva.

À família Munhoz (avós, tios e primos) pela compreensão das ausências em tempos de finalização da dissertação, e pelo apoio carinhoso em forma de mensagens e comidinhas que me ajudaram a seguir escrevendo, pelos quais também agradeço à Luiza Vieira, tão querida. Ao meu pai, Paulo, pelo apoio às minhas escolhas e interesses, que o fez comprar um livro de Ana Cristina, e em seguida me presentear o livro, cheio de anotações. To Bruce, for the support and affection. À memória do meu avô (nonno) Dino, que, ao ler comigo a Odisseia e outras histórias e mitos que me fascinaram, contribuiu mais do que imaginava para que eu me tornasse leitora. À Beatriz Otero, por me emprestar as lâminas das quais preciso para ler a mim mesma.

Às amigas e amigos, tão presentes nesse processo, pelas companhias e conversas sobre escrita, pelo interesse no meu trabalho, pelos sofás, torcidas, ouvidos, cafés, pela presença,

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especiais a um certo grupo de “migas” pela paciência, pelos abraços, por me fazerem pertencer novamente. A Oz Salles e André Chalom pela presença de rocha sólida nos últimos anos, pelas ajudas burocráticas, pelas trocas profundas e alegres de cada dia, e pela companhia de escrita; à Julia Francisca pela parceria literária, e à Mirna pelas inúmeras acolhidas em Barão Geraldo, e na vida. Às mulheres dessa vida, que inspiram e que estão nesse trabalho. À Andrea pelo exemplo, pelo apoio nas angústias da pesquisa, pela inspiração e pelas inúmeras ajudas na compreensão do processo de pesquisa acadêmica, além do carinho e da presença constantes em todos os momentos.

Ao Re pelo companheirismo delicado e forte, por compartilhar comigo as nossas buscas, encontros, e nós de todo dia. Pela paciência com as minhas angústias e pelas palavras de conforto, pelo interesse nas minhas conquistas e descobertas, e pela vontade de compartilhar as suas. Por ouvir e por estar. Pelos almoços nos dias em que eu não podia tirar o nariz do texto, e pelo bom humor diante do meu stress. Pela parceria, pela amizade, e pelo profundo amor.

À minha mãe, Mirella, pelo exemplo de força, criatividade, sensibilidade e energia. Pelo apoio sempre em minhas escolhas, pela ajuda de tantos tipos, pela presença permanente and for being so deeply reliable. Pela compreensão e pelo olhar carinhoso e fortalecedor com o qual me criou e me vê. Obrigada por me ajudar a ter a coragem de olhar a mim mesma e ao mundo sempre de olhos bem abertos, mas inundados de arte.

E finalmente, quero agradecer à minha avó, nonna Miranda, primeiramente pelo apoio prático e concreto que me permitiu realizar este trabalho. Se essa pesquisa foi terminada com a dedicação, a calma e o tempo que ela merecia, isso se deve a você. Principalmente, porém, quero agradecer o carinho em cada passo, insistindo, nos momentos em que eu tinha dificuldades, que eu poderia sim escrever, e que o mundo acadêmico não seria um bicho de sete cabeças. Você estava tão certa... Em meio à pesquisa encontrei o Leaves of Grass que você me presenteou ainda no primeiro ano da graduação, com uma linda carta que dizia que essas paisagens mereciam releituras minhas. Aí estão elas. Obrigada, por tudo, de todo coração.

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“Aí desejo caudaloso de ter nas mãos o brilho cego de um cadeado

que se transforma, subitamente,

em chave”.

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O presente trabalho discute a intertextualidade entre a poesia de Ana Cristina Cesar e autores de língua inglesa, tendo como fio condutor a problemática da mulher no texto literário. A partir de reflexões filosóficas de autoras como Simone de Beauvoir e Luce Irigaray, se desenvolve o impasse da constituição negativa feminina, entendendo que uma possível saída para tal impasse se dê no entendimento da escrita intertextual de Ana Cristina Cesar a partir do viés da leitura feminina, diante de uma tradição majoritariamente masculina (como discutido por Sandra Gilbert e Susan Gubar). A partir das propostas de vampiragens (Maria Lucia de Barros Camargo) como imagem para pensar a escrita intertextual da poeta carioca, realiza-se a leitura e análise de seus textos em diálogo com obras de James Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman, e finalmente Emily Dickinson e Katherine Mansfield.

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This dissertation discusses intertextuality between the poetry written by Ana Cristina Cesar and English language authors, having the issue of the woman in literary text as its guiding principle. With the aid of works by Luce Irigaray and Simone de Beauvoir regarding feminine language and woman's negative constitution we understand that a possible solution for the impasse of woman in literature, specifically regarding the work of Ana Cristina Cesar, may be the idea of her poetry’s references and dialogues with tradition as those of a woman-reader. From the idea of vampirages (Maria Lucia camargo) as an image to understand the intertextual writing of this poet, we propose readings and analysis of her texts in a dialogue with literary works by James Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman, and finaly Emily Dickinson and Katherine Mansfield.

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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade ... 29

2.1. Mapeamento da questão ... 29

2.2. Dizer mulher seria definir a mulher? ... 32

2.3. Mulher, ou como escapar da redução? ... 36

2.4. Mulher, sempre uma biografia? ... 41

2.5. Feminino como excesso ... 46

2.6. A questão do corpo ... 51

2.7. Posição de historicidade e intertextualidade ... 56

2.8. A leitura das vampiragens ... 61

2.9. Quadrilha: Ana amava Adélia, que amava Carlos que amava ... 66

3. Da Constituição negativa feminina ao corte intertextual e criativo de uma saída ... 73

3.1. Mergulho no impasse: identidades negativas ... 75

3.2. Ensaio de saída: pensar em ser Pessoa ... 78

3.3. Mímese criativa: fendas na pedra de James Joyce ... 80

4. T. S. Eliot em Ana Cristina Cesar ... 91

4.1. Eliot como modelo de intertextualidade: web of allusion / castillo de alusiones ... 94

4.2. Índice Onomástico ... 100

4.3. Eliot na Pasta Rosa ... 104

4.4. Prufrock e Senhor A ... 114

4.5. “aí é que são elas” ... 123

5. "Recito WW para você: (…)"... 133

5.1. Walt Whitman apaixonante: contradições e ambiguidades na fortuna crítica ... 136

5.2. WW em Luvas de Pelica? ... 142

5.3. Walt Whitman, feminino? ... 151

5.4. Entre “I” e “you” em Whitman e Ana C. ... 153

5.5. O desejo do texto e a consciência trágica da poeta ... 158

5.6. Quem deve temer a fusão? ... 160

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6.3. “This is my letter to the world/ That never wrote to me” ... 181

6.4. Travessões: dicção dickinsoniana, feminina ... 187

6.5. Duas traduções ... 193

6.6. like Blades ... 194

6.7. Lendo KM – em busca de bliss ... 196

7. Considerações finais ... 210

8. Bibliografia ... 219

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1. Introdução ou “Prezada autora”1:

Esta é a minha carta para você, que nunca escreveu para mim2. Ora, que mentira. Se Donne escreveu para Campos traduzir, para Caetano cantar para você; você também escreveu, lendo Joyce, Eliot, Whitman, Katherine, Emily, cartas para mim. Te respondo então, as cartas ao mundo, com esta, demasiadamente longa, temo. Você verá que faço leituras talvez um pouco ficcionais, e espero que ache graça da minha ousadia. Nesta, prezada autora, não te faço nenhuma pergunta, nem te envio nenhuma resposta. Sabemos que nesse espaço, ao contrário do “caderno terapêutico”, você não é você, e nem eu sou eu mesma.

Começo, porém, com um aviso: recomendo cautela, Ana, pois estou te lendo como mulher. Foi você mesma quem disse que, de repente, anos depois, vem uma outra leitora, e lê o texto como texto de mulher. Pois bem. Eu tentei evitar, juro! Eu comecei de outros pontos, vários, fui seguindo pistas pelos teus labirintos, pelas florestas de espelhos, e sempre acabava por me deparar com o rosto de uma leitora. Te conto como vim para aqui.

Quando comecei a ler tua poesia me recusei, de início, em alto e bom tom, a dizer “mulher”. Talvez fosse a tirania do segredo que me calava, mas eu tinha sólidas justificativas, como boa graduanda que era, muitas certezas fracas e duras. Minhas certezas passavam por dois lugares: O primeiro, um pavor à biografia, que em parte até hoje acredito, se justifica, pois havia ali uma intuição protetora da poesia, um desejo de que o texto sobrevivesse a inundações. Em parte, porém, era puro medo do abismo. O segundo lugar de onde vinham minhas certezas fracas era uma recusa incomodada dos estudos que buscam muito diretamente contextos sociais e políticos, tomam a poesia pelo braço e a levam aos brados para palanques, ou para a rua, de cartaz em mãos. Não me leve a mal, adoro cartazes, e acredito profundamente na voz da rua. Mas eu ficava achando que a poesia merecia algo “não tão sinceramente manifesto como 2 e 2 são 4”3, e em você lia a confirmação das minhas recusas. Leitura, confesso, um tanto ingênua, que não percebia tua ironia se dobrar sobre si mesma quando denunciava: “ratazanas esses psicólogos da literatura”. Curioso que eu lesse tuas Cartas a Navarro assim tão coladas na tua pessoa, e conseguisse fingir ainda assim, para mim mesma, que eu fugia da biografia. Caí feito um patinho nas tuas armadilhas, Ana, uma a uma. Não quero cometer o erro de dizer que agora achei a saída, você que sempre me pega de

1 “Depois vocês me escrevam cartas. Eu quero receber cartas. Vocês me escrevam cartas do que vocês acharam,

assim: ‘Prezada autora’. Ah, eu quero receber cartas.” (CESAR, 1999: 273) 2 “This is my letter to the world, That never wrote to me –” Emily Dickinson

3 “Num sentido muito especial, cada canção é também um manifesto, mesmo que sua plataforma não seja tão sinceramente manifesta como em 2 e 2 são 4.” (CESAR, 1999: 240)

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rasteira. Posso me perguntar incessantemente em quais armadilhas estou presa agora, e tentar perceber os truques, mas preciso me lembrar que cair na rede é parte da graça da leitura: “o prazer é anterior, boboca.”4 Não quero, afinal, perder o jogo por WO, dar de ombros, e simplesmente escolher não te ler. Então seguro a bola, e canto. Ainda que você, de retorno, me diga que eu desafino.

Explico, então, que eu fugia da questão da mulher na literatura. Como o diabo foge de si mesmo. Mas ela me encontrou do outro lado ("essência vazia, mas resistente", explicava a Cristina). Ela não morre, ela é dura. Não, ela não é dura. Duro é José, o irmão mais velho. Ela é excesso, impossibilidade que resiste, e resiste, e resiste. O que resta, de afirmação ousada é: ela não existe sozinha. “– O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.”5

Como me perco ao tentar te explicar esse caminho! Voltemos: depois de brincar um pouco na Iniciação Científica com a ideia de estrangeiro (conceito que tomei de empréstimo da antropologia e que acaba me parecendo hoje aproximação um pouco forçada de uma teoria dura na tua poesia, aproximação mais agressiva que produtiva para o literário), percebi que aquilo que mais me restava de interesse durante o ano de pesquisa, leitura e releitura da tua poesia, tinham sido as relações que foram aparecendo com os poetas de língua inglesa, principalmente Walt Whitman e Katherine Mansfield. Essa conversa com eles, as aparições dos nomes e o jogo que costura entre as aspas, que borrava limites e pairava entre vozes (impressões iniciais), me instigavam para além de todo o resto. A proposta para o mestrado então, eu sabia, seria investigar a relação entre a tua poesia e autores de língua inglesa. Até aí, nada de feminino, certo? Pronto, estamos a salvo, seguras no escuro onde não nos veem.

Porém, foi me perdendo no labirinto de referências dessa poesia ("Castillo de alusiones / forest of mirrors"), que me deparei com a questão da mulher na escrita. Não, na leitura. Minha leitura das tuas leituras, que aparecem em relances de escrita. Explico: me parece que a mulher aparece na tua poesia mais como modo de ler, que transparece e se opera num modo de escrever em diálogo.

Os teus castelos e florestas (de alusões e espelhos) se tornaram um labirinto. Isso porque o encontro das referências veladas (ou não tanto), o levantamento de outros nomes assinados em teus textos, causa sempre uma dupla reação: primeiro de euforia, “eureca!”, detetive Holmes (do polegar perdido) que desvenda mais um caso e... percebe em seguida que não desvendou nada. Pistas falsas: “há aqui um trecho de um poema de Eliot”, “veja aqui o

4 (CESAR, 2013: 49)

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nome de Katherine Mansfield”, “olhe, aqui encontramos traços de Dickinson”. Pouco importa apontar as evidências, as impressões digitais, deixadas de propósito na cena do crime. Grito: “o assassino foi Joyce, na biblioteca, com o candelabro!”, e imagino você dando risada da minha disposição infantil para o jogo. Tantas leituras, me parece, se ocupam em dispor, lado a lado, os tesouros encontrados nos navios, teus saqueamentos poéticos, e pouco fazem além de grifar teus poemas. Mas um achado leva a outro, cada referência, se escolhermos segui-la, em vez de a isolar do texto e expor na coleção, leva apenas à próxima referência, aponta para si mesma, cada vez mais fundo no labirinto.

Ana, ao ler tua poesia, e procurar fazer algo de tantas referências e relações, a sensação de vertigem (característica da mise en abyme) é forte, é real. Por isso foi preciso procurar algum fio que guiasse o pensamento, se não de volta para casa, pelo menos traçando uma rota com sentido, pelos corredores. É preciso se segurar em algo ao ler você, é preciso achar um fio de Ariadne, que garantia a Teseu o retorno do labirinto do Minotauro. Esta não é, insisto, uma metáfora exagerada. O fio condutor não é uma intenção tão racional quanto podemos querer expressar nas nossas páginas bem justificadas e nas apresentações em congressos. Nós, leitoras e leitores do mundo, estamos tentando não nos perder. Especialmente nós, teus leitores, Ana. Insisto, porém: o fio escolhido aqui não é fio inventado, mas achado. Está lá para quem quiser seguir, espero consegui demonstrá-lo.

A posição-mulher, ou situação-mulher funciona como esse fio condutor encontrado (não necessariamente escolhido), que permite desenhar, no labirinto inesgotável de referências, não um sentido, uma forma fixa, mas um caminho de leitura específico. Com ele, foi se tornando possível tecer relações significativas entre as partes do labirinto (os poemas e referências intertextuais), e situar, talvez mais solidamente, algo que me parece uma proposta tua, Ana, em relação ao seu lugar num outro labirinto maior, o labirinto da tradição literária. "Uma canção manifesta onde estou." (CESAR, 1999: 240)

Tenho certeza, porém, de que existe um número infinito de caminhos a se traçar nesse labirinto construído por você, cada um levando de e a algum lugar diferente, traçando um desenho diferente pela sua poesia em diálogos. Não tenho a mais remota pretensão de apontar este caminho como único, ou aquele que leva ao "lugar certo". Até porque, se nosso fio de Ariadne é um fio de leitura feminina, diante dos castelos e imensos espelhos que distorcem da tradição literária – tradicionalmente masculina –, esse fio deve fazer curvas, ele não cabe na lógica discursiva ready-made, e não trabalha com caminhos únicos. Mas sabe que deve, insistentemente, resistente ao silêncio e ao vazio, propor um desenho no espaço.

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Trata-se esse trabalho então, de um jogo duplo: proposta de aproximação a dois problemas de leitura, cada um deles funcionando como caminho de saída para o outro. O fio condutor de saída do labirinto de referências, sendo a questão da mulher, é também um problema de leitura, que precisa, por sua vez, de caminhos de saída. E para ela, a própria intertextualidade servirá como caminho.

Talvez a minha antiga fuga da questão da mulher, como te contava há pouco, minha recusa em dizer mulher ao ler a tua e tantas outras poesias, seja sintoma de uma situação muito maior do que a minha: dizer mulher é encerrar a mulher em uma série de características redutoras? Dizer mulher é dizer menor? É dizer sensível, delicado, íntimo, frágil? Ou, na inversão moderna, é dizer sangue, vísceras, tapa e grito? São perguntas que você já fazia com Sylvia Riverrun, naquele chá das cinco dos teus ensaios enveredados pela questão da mulher em literatura, para o qual não me convidou, mas entrei sem convite, e atrasada. Dizer mulher é quebrar a ideia de mulher e enquadrá-la? Lembro-me novamente de Clarice: “Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido.”

Mas não dizer mulher é reforçar o silêncio, não dizer é perder por WO, é desistir e deixar que se digam todas as outras coisas possíveis. Se dizer é reduzir, não dizer é permitir passivamente o apagamento, ainda mais radical que a redução. Não dizer é o medo do erro, e o erro é oportunidade. Não dizer mulher é permitir também o silêncio contínuo do neutro, é lavar as mãos. É dessa forma que a discussão do texto de mulher na literatura reflete um impasse (muito anterior à questão literária, mas evidente nela, como veremos no segundo capítulo), o impasse da própria constituição negativa da mulher, que se constrói filosoficamente e socialmente enquanto menos, lado negativo do masculino-neutro.

Talvez seja preciso, então, retomar o desejo que você atribui a Sylvia, “furar um silêncio consentido”, ser essa “leitora enfurecida”, que, anos depois vem e “estranhamente a lê como mulher”6. Ainda assim, insistir em fazer uma leitura que se preste a desvendar algo de feminino no texto de uma mulher corre, inevitavelmente, o risco de colar o texto à biografia, ou, talvez ainda mais perigoso: de se perder tentando definir a mulher, acabar por dissolver a questão em características estereotípicas, cair de volta no lugar de onde se queria fugir. A ideia de mulher por si só, então, não é suficiente, e é nesse ponto que a tua fala da leitora enfurecida me toca: a questão feminina atrelada à questão da leitura dá jogo. É pelo viés relacional que ela se sustenta: mulher como situação e relação, leitora enfurecida diante do texto de outra mulher ou: leitora enfurecida diante da tradição literária. Para isso o

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labirinto de referências, o castelo de alusões, se torna uma forma de trazer a questão para o âmbito da prática poética. Porque ele, apesar de sufocante, é sólido, traz chão. É pela prática que podemos sair (desejamos sair) do impasse entre dizer e não dizer mulher, e pelo viés dessa posição de mulher-leitora que se pode traçar caminhos no labirinto intertextual.

Há muito sei que não estou mais falando com Ana Cristina. Há muito sei que nunca estive falando com Ana Cristina, mas não desejo rasgos demasiadamente verdadeiros, e preciso da intimidade-teatro, que o texto acadêmico também encena, mesmo por trás de véus de ciência: todo distanciamento é ficcional, e é preciso muita ficção para poder falar de qualquer coisa. Quero apenas lançar no texto esse desespero: nunca e sempre se estar falando com o autor. Morto e vivo, o autor, o texto, e nós à deriva. “I went to thank her, but she slept”, disse Dickinson. Por outro lado, sei também que pouco importa estar ou não falando com Ana Cristina, porque ela não deseja ouvir nada, daqui quem segue o caminho somos nós, e nossos delírios de leitura. O que retorna é apenas o gesto de reverência/referência: toda leitura é também uma ficção. É escrever outro livro em cima do livro, é “inventar o texto para caber no livro”

Simone de Beauvoir e Luce Irigaray apresentam conceitos e formulações que nos interessam para desenvolver a discussão a respeito do impasse teórico que se configura em torno da discussão sobre a mulher. O conceito de mímese criativa de Irigaray nos permitirá refletir mais diretamente sobre a relação de leitura da tradição. Algo da posição histórica, social e filosófica da mulher se apresenta nos modos de ler de Ana Cristina Cesar, e portanto na sua escrita intertextual. Não se trata, porém, se encerrar a discussão com oapontamento de aspectos teóricos na literatura, mas do aproveitamento da teoria para propostas de leitura poética e interpretações, espera-se, criativas.

Interessa também a consciência da minha posição de leitora, que se acrescenta, ou se coloca como uma “camada por cima”. Afinal não é o caso de executar um minucioso levantamento de leituras realizadas pela pessoa Ana Cristina Cesar, mas propor um vislumbre, por meio da obra poética da autora, dessas relações de leitura. A partir da lente da questão feminina informando nossa leitura da autora enquanto leitora-poeta, pretende-se cuidar também para não ocultar outros aspectos nem reduzir pluralidades, mas tornar visíveis tons e matizes antes ocultos, tornar legíveis palavras mais apagadas, tornar audíveis sons silenciados: sons que estão presentes no diálogo da poeta com a tradição, e que possam, espero, acrescentar à coleção de achados valiosos nesse entre: autor e leitor, autor e autora, lido e escrito.

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O termo intertextualidade nos interessa, porém é importante esclarecer que o arcabouço teórico da intertextualidade, com Julia Kristeva e outros que a sucederam, não será especificamente discutido ou referido no presente trabalho. Escolhemos a proposta da autora Maria Lucia de Barros Camargo em seu livro Atrás dos Olhos Pardos, a respeito de Ana Cristina Cesar. Ali, ela aproveita a metáfora do “remorso de vampiro” que aparece em Ana Cristina, e cria o conceito de vampiragens, explicando, por meio da imagem do vampiro, particularidades dos modos de escrever a partir dos textos da tradição em Ana Cristina Cesar especificamente. Há entre a proposta de vampiragens, para a qual propomos dar sequência, e a intertextualidade, uma diferença de natureza prática. Vampiragens são gestos de criação poética específica, ligados à prática de escrita de Ana Cristina Cesar, elucidada e nomeada pela pesquisadora Maria Lucia de Barros Camargo. Nossa proposta passa, na esteira de Camargo, pela prática de leitura, levando em conta o viés de uma escrita que “vampiriza”.

Ainda que não nos interesse adentrar, portanto, uma discussão teórica intertextual, o termo intertextualidade, presente no título e ao longo de alguns momentos da pesquisa como forma de situá-la, representa uma escolha de estratégia comunicativa. O termo se justifica na medida em que ele aponta para uma forma de pensar a literatura na sua relação permanente com outras literaturas, e esse será, sempre, o nosso norte. As vampiragens são propostas específicas dentro desse contexto maior, e ainda que apresentem novas perspectivas para uma leitura intertextual, e evidenciem diferenças importantes em termos poéticos, estão inseridas num contexto que compreende a ideia de relação entre textos literários.

Tendo como foco, por um lado, autores de língua inglesa, uma tradição muito importante para a poeta, e com a qual ela se aproxima de forma bastante aprofundada por meio da tradução na sua estadia na Inglaterra, propomos estender as vampiragens de Ana Cristina. Por outro lado, realizando essas leituras (das leituras e seus consequentes escritos poéticos), aprofundando essa relação esboçada brevemente com a questão feminina, propomos não fugir da questão da mulher, procurando respaldo na crítica literária feminista.

A escolha da presente pesquisa, como dizíamos, é pelo foco nas relações do texto poético de Ana Cristina Cesar com autores de língua inglesa. Tal escolha se dá por dois principais motivos: em primeiro lugar, a ausência de estudos mais longos e aprofundados especificamente a respeito das práticas de leitura e escrita de Ana Cristina Cesar em relação a tais autores. Há textos interessantes e importantes a respeito de algumas dessas propostas, e análises pontuais de relações com poetas como T. S. Eliot (na obra de Ítalo Moriconi, como veremos), e menções mais passageiras, ainda que importantes, a respeito da presença da escrita de Katherine Mansfield e Emily Dickinson nos poemas de Ana Cristina (como aponta

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Flora Sussekind em Até Segunda Ordem Não Me Risque Nada), ou, por exemplo de Walt Whitman (Viviana Bosi reflete a respeito no artigo Ana Cristina Cesar: “Não, a poesia não pode esperar”). Porém, faz-se necessário um estudo mais longo, que se dedique especificamente à relação com autores de língua inglesa, já que, e aqui se apresenta nosso segundo motivo, a leitura de tais autores foi de suma importância para Ana Cristina.

A presença de referências a autores de língua inglesa em Ana Cristina Cesar é constante e parece ser mais sistemática do que sua relação com autores franceses, ou até mesmo, talvez, com osbrasileiros. Um dos grandes motivadores dessa importância, podemos imaginar, pode ter sido o estudo e a prática da tradução, especificamente do inglês. Em 1980 Ana Cristina obteve seu título como Master of Arts em Theory and Practice of Literary Translation, na Universidade de Essex, e durante sua estadia na Inglaterra a prática de tradução informou intensamente sua poesia. Como tese para a obtenção do Masters, apresentou uma tradução anotada do conto Bliss, de Katherine Mansfield, e traduziu também, em outros momentos, uma série de poetas, principalmente Sylvia Plath e Emily Dickinson.

Sua prática de tradução, no entanto, não se resume aos trabalhos de tradução propriamente dita. O seu texto intitulado Carta de Paris, proposta de reescritura/ tradução livre e bastante criativa de Le Cygne, de Charles Baudelaire, é apenas um dos exemplos disso. Veremos nesse trabalho como a prática tradutória não apenas informou a escrita de diversos de seus poemas, mas como há propostas inventivas de tradução trançadas em textos poéticos da autora, por meio das quais é possível identificar um particular e criativo modo de ler e de colocar-se diante da tradição literária, especificamente em língua inglesa.

Neste sentido, foram selecionados alguns nomes importantes não apenas para essa tradição, mas para a poesia de Ana Cristina Cesar. Estes são: James Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman, bem como Katherine Mansfield e Emily Dickinson.7 A escolha de tais autores se deu a partir de um extenso levantamento das presenças da literatura de língua inglesa na escrita de Ana Cristina. Não são, evidentemente, os únicos. Entre outros podemos também citar desde Sylvia Plath, Jack Kerouac, Elizabeth Bishop, Lewis Carroll, Virginia Woolf, Dylan Thomas, entre outros.

7 Vale apontar que foi preciso dialogar com a fortuna crítica desses poetas de língua inglesa aos quais nos referimos, e que nesses casos as referências aos textos deles estão traduzidas diretamente por mim. Especialmente em um trabalho no qual a tradução aparece analisada como procedimento criativo e de especial atenção da poeta em questão, é pena afirmar, mas minha capacidade de tradução não se compara à da poeta aqui discutida. Esforcei-me para que cada trecho citado fosse comunicado da melhor forma possível, mas não houve tempo hábil ou capacidade técnica para uma observação tão atenta quanto essas traduções mereceriam.

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Algumas das escolhas feitas, como é o caso de T. S. Eliot, se deram por conta de uma grande quantidade de referências, mais ou menos explícitas, atravessando diversos poemas da autora, até os rascunhos e anotações não publicadas em seu arquivo no Instituto Moreira Salles. Joyce, por outro lado, foi uma escolha ligada à importância, para nossa análise, da interpretação de um poema específico em diálogo direto com seu romance, Ulysses. As imagens e propostas poéticas ali acabam por ditar o tom e a linha que seguiremos no nosso caminho de análise por meio dos “castelos de pedra” da tradição literária, como buscaremos mostrar no segundo capítulo. Walt Whitman é um caso particular, já que representa um tipo de mistura entre esses dois fenômenos: por um lado a referência direta a ele na poesia de Ana Cristina Cesar se restringe a um trecho bastante específico de Luvas de Pelica, e a análise de tal trecho pode nos trazer uma discussão interessante a respeito da tradução, bem como dessa relação que Ana Cristina vai estabelecendo com a tradição literária. Por outro lado, a leitura de Whitman parece determinar procedimentos importantes e estruturais da escrita de Ana Cristina, de modo que sua presença na obra da poeta parece se assemelhar à numerosa menção a Eliot, ainda que pouco seja explicitada. Por fim, Katherine Mansfield e Emily Dickinson vêm representar não apenas duas figuras com as quais Ana Cristina estabeleceu importante relação de leitura e tradução, mas o contato com uma tradição literária feminina em formação.

Talvez diante dessa escolhas paire, para a leitora ou o leitor, a seguinte pergunta: se a proposta de leitura aqui é criar um caminho no labirinto de referências de Ana Cristina Cesar, justamente por meio da questão da mulher como fio condutor, por que a escolha de um número maior de autores masculinos da tradição para tecer essa relação? Ora, a resposta está justamente na teoria literária feminista, que aqui entra como arcabouço teórico capaz de nos auxiliar nessa busca por significados dessa leitura transformadora, vampirizadora que Ana Cristina Cesar faz da tradição. Seguindo as propostas de autoras como Sandra M. Gilbert e Susan Gubar em The Madwoman in the Attic (1979), temos análises complexas e interessantes a respeito da posição da mulher diante do fazer literário, e de uma tradição majoritariamente masculina. Ainda que as autoras se concentrem nas poetas mulheres do século XIX, as reflexões e processos apontados são relevantes para pensar a questão da mulher na literatura ainda hoje.

Conceitos como a angústia de autoria (pensado a partir da angústia das influências, de Harold Bloom, e aproveitado pelas autoras, num viés que leva em consideração a posição de escrita da mulher diante de uma tradição masculina) nos permitem perceber aspectos importantes, mesmo nas relações poéticas estabelecidas por Ana Cristina Cesar. Se, por um

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lado, a poeta contemporânea, brasileira, pertence a um momento completamente distinto daquele discutido por Gilbert e Gubar, por outro lado podemos, por meio dessa discussão teórica, perceber permanências e problemas nessa estrutura ligada à história literária, e à história feminina, que se mantêm relevantes para pensar a literatura de mulheres hoje. Modelos modernos e masculinos de escrita literária, como Joyce ou Eliot, ainda que tenham destronado seus “pais literários”, como aponta Harold Bloom, tomam o seu lugar, repetindo, de certa forma, uma mesma estrutura. Ainda que de maneiras distintas, a tradição literária se mantém, em algum nível, e mesmo que muito mais sutilmente do que era para a mulher do século XIX, um universo de homens.

Desse modo, a partir da crítica literária feminista podemos observar uma série de dificuldades que a poeta mulher tem ao buscar se inserir numa tradição, excluída do modelo bloomiano de superação da autoridade, excluída, em algum sentido, do cânone. Nesse viés, são, primeiramente, os “pais literários” as figuras de autoridade da literatura com quem primeiramente se depara a escritora mulher. A tradição literária masculina parece representar um tipo de barreira com a qual a escritora se depara, e diante da qual deve se posicionar. Nesse sentido as ambiguidades entre admiração, devoção e revolta, o desejo de incluir-se e simultaneamente deslocar-se desse cenário, são atitudes que transparecem na escrita de diversos autores em relação à tradição, mas parecem se manifestar de modo particular na escrita de mulheres. No caso de Ana Cristina Cesar, um diálogo proposto a partir, justamente, do gesto de vampiragem.

O diálogo e encontro com uma literatura de mulheres parece ainda estar do outro lado dessa barreira que formam as tradições masculinas. Afinal, nesse caso, o masculino se mantém como regra, norma, como neutro. É apenas numa busca por fendas, cortes, desvios e aberturas nesse espaço da tradição, que não recusa a própria tradição, mas joga com ela, a partir das vampiragens, que a escrita de Ana Cristina Cesar vai tecendo um possível encontro com outras autoras, assim como seu lugar enquanto poeta. Nos parece que o gesto de vampiragensem algum sentido tem a necessidade de passar necessariamente por esse trajeto por dentro de uma tradição masculina, que de modo geral invisibiliza a feminina, para apenas a partir de então propor diálogos de outro tipo, e situar-se.

Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é aprofundar essa primeira parte do gesto: Ana Cristina Cesar diante de uma tradição majoritariamente masculina de língua inglesa, e como suas vampiragens evidenciam um modo de ler particular da posição da mulher, uma leitura feminina (diferente, notemos, da ideia de uma escrita feminina). O encontro com a tradição literária de mulheres em formação é esboçado apenas no último

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capítulo, abrindo novos horizontes de pesquisa e discussão, que aqui ainda não poderão ser plenamente investigados.

Aliás, é o gesto de busca de aberturas, como afirmamos anteriormente, que caracteriza as trajetórias deste trabalho. Se a leitura de Ana Cristina Cesar passa pela atitude de tentar desarmar armadilhas, como percebemos a partir de tantos representantes de sua fortuna crítica (questão discutida mais a fundo no capítulo 1), o presente trabalho faz também esse gesto de buscar desfazer nós, um gesto de dentro para fora, que caminha em direção a um espaço mais, digamos, arejado, para a leitura, um espaço onde se possa respirar. O texto aqui presente se constrói de travessias labirínticas, procurando apontar para um “fora”. Ele parte sempre de emaranhados do quais busca se desenredar, e encontrar rotas de fuga. Não se trata, porém, queremos crer, da “fuga inautêntica” que denuncia Beauvoir, ao criticar a escolha de permanecer no terreno do neutro, onde não se fala da mulher, com medo de reduzi-la. Não se trata de fugir das armadilhas, mas enfrentá-las para organizar ideias mais claras a partir delas, e buscar rotas criativas de saída. Nos interessa desembaraçar, a partir dos problemas apontados, fios de leitura.

Essas buscas por rotas de saída se dão em diversas etapas diferentes: primeiramente, interessa desemaranhar alguns nós de discussão com a fortuna crítica, além do impasse da questão teórica da constituição negativa feminina. Em seguida a busca de saída se dá em relação aos já mencionados “castelos de pedra”, imagem que em Joyce representaria a intimidade do segredo e que na releitura de Ana Cristina (ou melhor, na nossa releitura a partir das vampiragens de Ana) ganha também a forma das grandes estruturas canônicas da tradição literária moderna. Buscar rotas de saída para tais “castelos de pedra” não representa, porém, como veremos claramente em Ana Cristina, uma recusa à leitura dos textos dessa tradição, pelo contrário: é, contraditoriamente, num mergulho nesses textos que Ana Cristina Cesar opera saídas subversivas e criativas.

Para isso será preciso um primeiro capítulo que abra espaços e discuta com uma parcela da fortuna crítica da autora, em especial textos importantes que propõem uma leitura seja da questão da mulher, seja da intertextualidade na poesia de Ana Cristina. Essa discussão, porém, não se propõe esgotar ou mesmo mencionar todos os trabalhos importantes a respeito da poeta carioca, mas dialogar especificamente num caminho de leitura que tem especial interesse para nossa dupla questão: que passa, por meio da questão da mulher, pela leitura da tradição literária de língua inglesa.

O diálogo se dará mais diretamente com Heloisa Buarque de Holanda, Sérgio Alcides, Ítalo Moriconi, Annita Costa Malufe, Marcos Siscar, e, finalmente, Maria Lucia de Barros

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Camargo. Outros críticos, leitores e leitoras não menos importantes da fortuna crítica de Ana Cristina não foram incluídos nessa discussão específica, apenas por uma escolha que buscou traçar um caminho de discussão específico, no que concerne ao encontro entre as questões em torno da mulher na literatura de Ana Cristina Cesar e à intertextualidade. Diversos outros estudos informam algumas das análises posteriores, e estão mencionados brevemente em meio aos outros capítulos, como Viviana Bosi, Flora Sussekind, Luciana di Leone, Silviano Santiago, entre outros. Cristina Henrique da Costa, lendo Ana Cristina, trouxe à discussão a ideia de que uma leitura de mulheres como leitoras (de outras mulheres ou de homens) é um elemento fundamental na construção de um espaço literário feminino que possibilita a ultrapassagem dos impasses teóricos.

Nesta linha, a proposta do presente estudo, reiteramos, é antes prática de leitura do que uma proposta teórica, no sentido que nos importa mais investigar as leituras da própria Ana Cristina, e criar com ela interpretações criativas de sua poesia em diálogo, do que discutir outras tantas leituras. Ainda assim, buscarmos não perder de vista o diálogo com os olhares importantes sobre a obra da poeta, e aquilo que eles nos possibilitam em termos de leitura e discussão.

No segundo capítulo o foco será, em princípio, o aprofundamento teórico no impasse que se configura a partir da constituição negativa feminina, tendo principalmente as reflexões de Simone de Beauvoir como arcabouço teórico. Em seguida nos interessa demonstrar a dificuldade em achar propostas de saída desse impasse apenas na leitura de poemas de Ana Cristina Cesar a partir dos quais questões em torno da identidade feminina parecem se formar. A ideia é apontar a forma como, nesses poemas, o impasse se coloca e se performa, mas não se resolve, não há saídas. A partir, então, de um viés relacional, de poemas nos quais essa questão se coloca atrelada a figuras da tradição literária masculina, pretendemos mostrar que se torna mais possível construir novas reflexões, e observar um esboço de saída para o impasse, por meio justamente da leitura, e das vampiragens. Por fim, o capítulo traz uma análise detida do poema Ulysses e suas imagens, desentranhadas (para utilizar o termo de Bandeira, reiterado por Ítalo Moriconi) da obra de James Joyce, apontando uma política de leitura, tradução e reescrita, na qual as palavras de Joyce são resignificadas por uma poesia que apresenta resistências criativas ao silêncio.

O terceiro capítulo tem como foco as leituras de diversas referências a T. S. Eliot na poesia de Ana Cristina Cesar. Passando em primeiro lugar pela leitura de Eliot como modelo de intertextualidade, poeta conhecido por suas referências contínuas a outras obras, buscamos entender de que forma Ana Cristina se coloca diante dessa tradição de intertextualidade, e

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como joga com a ideia de ocultamento e revelação das “fontes”, como a própria poeta se refere, propondo um diálogo lúdico com dilemas presentes em Eliot (o acréscimo, por exemplo, das notas de rodapé ao poema The Waste Land, que revelavam parte de suas referências, e são, até hoje, alvo de discussão da crítica). Numa proposta de leitura imaginativa de poemas de Ana Cristina Cesar publicados postumamente em Antigos e Soltos, presentes ainda no arquivo na “Pasta Rosa”, e as referências ali encontradas a poemas como Marina, de Eliot, daremos sequência à discussão a respeito da ideia de “filiação literária”, presente nesse diálogo entre poemas, nas imagens do poema de Eliot sobre o reencontro de Péricles com a filha perdida Marina. A leitura do poema de Eliot lado a lado com o texto de Ana Cristina, que a ele faz referência, trás à tona ambiguidades entre ideias como roubo e perda, culpa e perdão, e a voz paternal que propõe silenciar-se para dar lugar à voz da filha, ainda silenciosa. Além disso, o poema The Love Song of J. Alfred Prufrock, de Eliot, é uma referência clara para Ana Cristina em seu poema tardio Senhor A, e percebemos por meio dele propostas subversivas de vampiragens a partir das quais o discurso feminino, que passava sempre por um sujeito masculino em Prufrock, ganham outras potencialidades. Além disso, o jogo de vozes está presente também em “aí é que são elas”, da poeta carioca, no qual célebres versos de T. S. Eliot são atribuídos a Eliot Ness, e a poeta propõe ironia entre vozes masculinas e femininas, o pássaro de Eliot e a “neon go-go girl” de Ana C.

O quarto capítulo trabalha com um autor a quem é mais complexo atrelar o olhar subversivo e de embate de Ana Cristina, leitora mulher. Isso porque há uma ambiguidade na relação proposta pela poesia de Ana Cristina com Walt Whitman: A referência a ele é mais declarada, explícita. Além disso, quando se refere a Whitman, fala dele como autor por quem todos se apaixonam. Essa paixão declarada por Whitman foi foco da investigação desse capítulo, além de uma importante discussão com a fortuna crítica do poeta norte americano, até hoje dividida quanto a seus posicionamentos no que concerne a questão da mulher. Uma leitura cuidadosa da referência explícita a Whitman em Luvas de Pelica nos possibilita perceber nuances da tradução livre proposta por Ana Cristina Cesar, que frisam problemas numa leitura da relação entre Ana e o texto de Whitman como paixão. A possibilidade de ambiguidade da língua inglesa no you plural ou singular em Whitman, a identificação entre os textos de ambos autores e um tipo de desejo de que o texto deixe de ser texto, e a forma como isso se atrela ao corpo, ou à consciência trágica dessa impossibilidade, desvelam aspectos importantes desse olhar vampiresco que reescreve Whitman, e nele propõe novas possibilidades. Além disso, travaremos também uma breve discussão com a leitura de Annita Costa Malufe, que entende Whitman, nos olhos de Ana Cristina Cesar, enquanto feminino.

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Discutiremos, a partir de Carolyn Sorisio, a proposta de merge (fusão) no texto whitmaniano em relação às suas possibilidades e limitações para a posição da mulher. De que forma terá Ana Cristina Cesar se colocado diante dessas questões, e quais as leituras criativas que podemos propor, de modo a abrir as possibilidades na relação entre Ana Cristina e um poeta como Whitman?

Finalmente, no último capítulo cria-se uma entrada no universo literário do qual nos falavam Sandra M Gilbert e Susan Gubar, por meio da leitura de poemas em que Ana Cristina joga com a ideia de identificação com a “mulher do século XIX”. As mulheres escritoras de uma tradição em formação aparecem na obra de Gilbert e Gubar como “avós literárias”, e a imagem se repete em Ana Cristina no poema Como Chapeuzinho. Emily Dickinson representa, para estas como para outras autoras, um importante marco na poesia de língua inglesa, e especificamente em relação à trajetória literária de mulheres. Veremos que, para além de exercícios de tradução de alguns poemas de Dickinson, a poesia de Ana Cristina tem com a escrita da autora norte americana uma relação de intensa proximidade. Uma escrita que retoma, como apontava Heloisa Buarque de Holanda, temáticas e espaços tradicionalmente reservados para a mulher em Ana Cristina, encontrará, como veremos, diálogo direto especificamente com a poesia de Dickinson. Aspectos como o confinamento e a mistura entre poemas e cartas aparecem nas discussões que circundam a escrita, bem como a figura icônica de Emily Dickinson, e são como que atualizados na escrita de Ana Cristina Cesar, performativamente. Além disso, veremos como propostas formais da escrita de Dickinson, até hoje polêmicas para seus leitores, como o uso dos travessões, informam a escrita de Ana Cristina. Por vezes essas marcas são literalmente motivo de experimentação formal em poemas de Ana Cristina Cesar, mas por outras parecem inspirar um modo particular de ler, e justamente se colocar diante da tradição literária, a partir de imagens caras a Dickinson, como as lâminas, evidenciando e explorando a contradição entre inocência e agressividade, já presente na escrita da poeta norte-americana.

No entanto, se as imagens da aproximação com Dickinson e a relação construtiva de aliança com essa tradição em formação, seguindo o caminho traçado por Gibert e Gubar, é de fato uma presença real na leitura de Ana C, esta leitura também não encerra a questão, e o encontro com essas mães/avós literárias não se apresenta tão simples como esperado. Mesmo que se talhe fendas na tradição masculina, o encontro feminino na literatura ainda é difícil e contraditório. Para investigar brevemente essa nossa impressão, propomos, por fim, uma leitura bastante particular do conto Bliss, de Katherine Mansfield, e sua tradução realizada por Ana Cristina Cesar.

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Há muito ainda que se investigar nas contradições desse encontro, e mesmo na ideia de tradição literária feminina em formação, ela mesma questionada por algumas autoras feministas. No que cabe à nossa pesquisa, porém, basta, por enquanto, ter encontrado não um, mas uma série de caminhos possíveis na escrita de Ana Cristina Cesar, por entre espaços de uma tradição literária por vezes silenciadora. Caminhos estes, talhados na leitura, e por meio das vampiragens da poeta, mas completados, também, por um esforço de leitura imaginativa, por sobre e junto com Ana Cristina Cesar.

Ana, há algum tempo sei que você escuta atrás da porta. A carta era, afinal, para você. É para você que eu escrevo? Talvez para Julia, remetente da carta de Querida, em Correspondência Completa. Toda crítica é uma carta de amor. (Ao menos tão ridícula quanto todas as cartas de amor) Te respondo porque quando falo contigo não preciso ter certezas. Ainda assim é uma encruzilhada: tenho vergonha de você ler tantas coisas que escrevi sobre o teu texto, como se me servisse de algo falar mais do que ler. Mas o texto não é teu, não é mesmo? Eu sou uma leitora ladra, também roubei os teus versos e fiz deles o que quis. É um jogo de rouba-montes esse da literatura.

Ao lado da minha escrivaninha, no meio das outras tralhas, tenho uma foto tua. Recorte de revista, coisa de fã de rock. Será que eles vão me reprovar quando souberem? Que eu caí também no mito, como todos? A foto é aquela de óculos escuros, cachecol, blusa listrada, que o Ítalo tirou. Te confesso um negócio: às vezes tenho inveja dele, que pode contar do almoço de vocês no livro, que mistura o depoimento e propõe uma biografia, para alguma leitora escrever. Não, eu não seria essa leitora. Eu não saberia escrever biografia. Eu só sei escrever ficção. Ficção acadêmica, com esse descaramento de quem mente que achou tudo no texto. Inventei metade (será que eles me reprovam?) Ainda assim, acho, como criança, que eu adivinhei. Adivinhei tudo, mesmo que nem você soubesse. Tua foto ali do lado me julgando, ou rindo de mim, atrás dos teus óculos pardos (os olhos, tão grandes, eu nem vi). É mesmo um ícone, a própria transformação publicitária, produto embrulhadinho. Eu sou consumista, quero tua foto e teus óculos. O vampiro consome? O Sérgio Alcides que me perdoe, mas a Clarice me disse que o único jeito de não esmagar uma rosa é não tendo medo de esmagá-la. Você não é rosa nenhuma, e eu vou engolindo o medo. Talvez além de recomendar cautela, devêssemos recomendar coragem. Acho mesmo, Ana, que é preciso coragem para ler mulheres. Escrever sobre sua literatura é sempre escrever “too close to home”, querer dançar como Bertha Young e correr para a janela para ver se a pereira continua lá, bela, florida, mas imóvel. É tentar salvar-se de um afogamento constante. É o medo de cada interpretação ficar próxima demais, pessoal demais, minha demais. É lembrar também

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que neutralidade é uma ilusão, uma mentira, aliás, bastante masculina. E então encarar o mergulho, e esperar sair viva. Bliss a toda pela contramão. Você vem?

Acho que você não vem mesmo. Acho também que já é tarde, e eu falei demais. Como sempre. Mandaram-me falar e falar e falar, e fomos matando o silêncio a grito. A carta é um truque barato, que na verdade não dá certo. Eu não sei introduzir, fazer introdução, me apresentar, assim: prazer, esta sou eu. Porque, também, esta não sou eu. Este é o meu texto. Aí é que são elas...

Prezado leitor acadêmico (que por preconceito, eu imagino sempre homem), não se sinta excluído da conversa. É pra você que escrevemos, hipócrita. Fique tranquilo, o resto dessas tantas páginas é resultado de pesquisa acadêmica – séria – e, portanto, não seguirá esse tom. Faço promessa: não deixarei a carta aparecer mais, nem por um parágrafo. Combinado? Nas próximas páginas você lerá tudo direitinho. Os autores viram sobrenomes em maiúscula: o Ítalo é MORICONI, a Maria Lucia é CAMARGO e até a Cris é COSTA. Até a primeira do plural nós usamos, veja. Daqui em diante, calço as luvas e seguro a bola. Não se preocupe, a partir das próximas páginas tudo volta ao normal: “agora sou profissional”.

Antes, só me permita um P.S: Ana, perdoe a retórica das próximas duzentas e tantas páginas. Tudo bobagem, você sabe, para disfarçar carinho.

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2. Uma Discussão com a fortuna crítica: mulher e/ou intertextualidade ?

2.1. Mapeamento da questão

Apesar de fazer parte de uma geração de escritores que ainda se pode considerar recente, Ana Cristina Cesar não possui uma fortuna crítica diminuta. De modo geral, quanto maior a distância histórica que podemos tomar de determinado autor, mais clareza se tem quanto às possíveis leituras de sua obra e maior a profusão de ideias a respeito dela. Ana Cristina Cesar, porém, já dispõe de uma sólida fortuna crítica.

Tenham sua imagem enquanto mito8 ou a sua recente popularidade contribuído mais ou menos intensamente para tal, o fato é que não há poucos textos críticos, desde artigos, dissertações e teses bem como livros bastante relevantes desde 1980 até hoje a respeito de Ana Cristina Cesar. Pretende-se no presente capítulo travar diálogo com algumas dessas obras, no que concerne as duas linhas de discussão que nos interessam e nos parecem igualmente relevantes, mostrando que ambas estas linhas podem se beneficiar de sua discussão conjunta. Essas linhas de discussão em torno da obra de Ana Cristina são: 1 - a presença da intertextualidade como parte não apenas importante mas estrutural de sua escrita poética e 2 - a questão, mais polêmica entre a crítica, da importância da mulher como algo ao mesmo tempo fértil e problemático em sua literatura.

Há análises relevantes e belíssimas a respeito dos diálogos possíveis entre a obra da autora e diversos nomes da poesia (e prosa) nacional e internacional. Mesmo aqueles escritos críticos que não têm como objeto principal a discussão em torno da intertextualidade na poesia de Ana Cristina Cesar acabam, de modo geral, por mencionar pontos de contato e referências a poemas e poetas em sua obra. Até porque a presença é constante. Viviana Bosi, por exemplo, em Tal Ser Tal Forma, artigo que discute o texto Três Cartas a Navarro, poema publicado na edição póstuma Antigos e Soltos por ela organizada, menciona as referências diretas a Virginia Woolf e Fernando Pessoa no poema de Ana Cristina, e mesmo sem se demorar demasiadamente na questão, relaciona temas, presentes no poema, a problemáticas da obra de ambos os escritores (androginia da personagem Orlando de Virginia Woolf, por exemplo, aversão ao culto da personalidade etc.).

Para outros leitores, a intertextualidade com algum autor em específico se torna motor

8

Em Ana C.: As Tramas da Consagração, 2008, Luciana di Leone discute de forma excepcional a construção de uma imagem da poeta enquanto mito após sua morte. Para mais sobre esse tema, que apesar de profundamente relevante não caberá ao escopo do presente trabalho, recomenda-se a leitura da obra de Leone.

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da escrita do texto crítico, como parece ser o caso de Marcos Siscar, em seu artigo publicado junto à antologia da poeta por ele organizada na coleção Ciranda da Poesia. No artigo, Siscar ataca a polêmica difícil do suposto anticabralismo da geração de Ana Cristina Cesar, mostrando com maestria os pontos de encontro tão mais vastos e numerosos do que o senso comum teria afirmado, entre Ana Cristina e João Cabral de Melo Neto. Já Ítalo Moriconi, mesmo não escolhendo exatamente a intertextualidade como tema central de seu livro que transita entre a biografia, o depoimento pessoal e a crítica literária, aprofunda em alguns momentos sua análise especialmente de poemas da autora em sua relação com poetas da tradição. Menciona brevemente, mas de forma certeira a presença dos "ecos de T. S. Eliot", além de analisar de maneira meticulosa a relação entre alguns poemas específicos e versos de Baudelaire. Essa, aliás, uma relação favorita da crítica, que se aprofunda no artigo de Michel Riaudel a respeito do poema Carta de Paris, recriação belíssima do Cisne elaborada pela poeta carioca. Talvez em termos do foco específico no processo criativo de Ana Cristina, fortemente atrelado ao diálogo com a tradição poética, além da presença explícita de “versos roubados”, o texto crítico mais completo esteja em Atrás dos Olhos Pardos, de Maria Lúcia de Barros Camargo, mais especificamente em seu capítulo “Vampiragens”, no qual, além de se analisar a fundo poemas de Ana Cristina Cesar em diálogo direto com Bandeira, Baudelaire e Mário de Andrade, elabora-se uma discussão extensa e profícua que busca compreender não apenas uma ou outra relação de intertextualidade na poesia de Ana C., mas esse procedimento de modo geral, e seus significados para a obra da poeta carioca.

De forma geral, entretanto, a questão da intertextualidade, trabalhada e valorizada pela crítica de Ana C., é poucas vezes entendida num viés de diálogo com a questão feminina (também mencionada e discutida pelos críticos, porém de outra forma e com outra importância, como veremos). É nesta exata interseção que vimos nos inserir com o presente trabalho. Propõe-se aqui a hipótese de que seria proveitoso para ambas as discussões que se estabelecesse uma relação mais direta e aprofundada entre elas. Talvez tenha faltado à fortuna crítica da poeta carioca um fio condutor que tecesse mais longamente a relação estreita que se dá entre os diálogos da autora com suas leituras e suas propostas poéticas informadas pela questão feminina.

Partindo do ponto de vista de que é importante tratar das duas questões, na medida do possível, em diálogo, lança-se aqui a ideia de uma discussão com algumas importantes vozes da fortuna crítica da autora, buscando-se compreender, de um lado, a questão feminina na literatura em geral, pensando em como determinadas posições favorecem a leitura ou o silenciamento dessa problemática na poesia de Ana Cristina Cesar, e de outro lado, a forma

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como a intertextualidade na poesia da autora está presente na crítica. Em seguida, pretende-se ponderar se é de fato profícuo, como nos parece, discuti-las em convergência. Não se trata de apontar problemas na discussão crítica a respeito da questão da intertextualidade na obra da autora, já que por mais que haja muito a aprofundar nesse sentido, o aspecto, tido sempre como viés relevante na leitura da poeta é ressaltado por quase todos os estudiosos que sobre ela se debruçaram. Já a questão feminina, inversamente, parece ser abordada sempre com maior tensão, como se não fosse possível em nenhum momento pisar em terreno firme ao se propor tal discussão. Em outras palavras, enquanto a necessidade de leitura intertextual forma consenso, a necessidade de leitura feminina traz problematização. Vejamos com atenção como essa última questão aparece para alguns dos críticos e avaliemos o que se pode pensar em termos de um diálogo entre o feminino e a intertextualidade na escrita de Ana Cristina Cesar.

Lancemos, portanto, a primeira pergunta: ler ou não ler mulher em Ana Cristina Cesar? Ou seja: seria proveitoso do ponto de vista da literatura, da reflexão crítica a respeito da poesia da autora em questão, ler sua obra como literatura feminina, texto de mulher? Por um lado, a pergunta "não quer calar" em parte porque é tema importante para a própria autora, como percebemos, por exemplo, em alguns dos seus ensaios, nos quais o impasse do feminino na literatura se apresenta e se performa. Por outro lado, a pergunta não se cala no sentido de resistir a certo silêncio na fortuna crítica da autora, enfrentando face a face certa resistência por parte dos críticos da poeta àquilo que alguns consideram talvez como viés demais “culturalista” da crítica literária feminista. Nesse sentido, tais críticos fazem questão de reforçar um ponto de vista que não reduza a leitura da autora ao gênero. Parece entretanto não ser estratégico, ou mesmo possível, tentar evitar, silenciando-a, tal questão, pois ela acaba retornando, resistente, na fala de alguns outros críticos de Ana Cristina Cesar. A verdade é que o impasse evidenciado pela pergunta faz parte de uma problemática que atravessa de forma tensa a escrita de Ana Cristina Cesar: afirmar-se ou não mulher dentro da literatura. A questão: se existe ou não existe, deve-se ou não se deve ler a mulher na literatura tem como pano de fundo a complexa problemática da constituição da identidade feminina que atravessa a cultura e por mais que não interesse exatamente buscar chaves de leitura para a literatura contemporânea na origem atávica dessa questão, se é que ela existe, sempre é possível retornar à sua manifestação filosófica para lançar luz ao aspecto que nos interessa: a literatura.

Antes disso, porém, é necessário entender como a fortuna crítica de Ana Cristina Cesar lidou com essa questão, respondendo ou deixando de responder às perguntas trazidas à tona pela presença da questão feminina na obra de Ana Cristina Cesar. Vejamos como essa

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questão aparece para alguns dos principais textos críticos que têm como objeto de reflexão a poeta carioca.

Mesmo dentre os leitores de Ana Cristina que optam por trazer a questão à tona em seus trabalhos de crítica, ela é abordada por pontos de vista e de formas bastante distintas entre si. No texto de Heloisa Buarque de Holanda (artigo publicado em 1981), por exemplo, discute-se a contradição entre uma imagem de "mulher moderna liberada", e a suposta retomada de um imaginário mais “tradicional” do feminino na poesia de Ana Cristina Cesar. Já nas discussões travadas por Maria Lucia de Barros Camargo, por exemplo, a mulher é tema trazido à tona a partir da produção ensaística de Ana Cristina Cesar e suas particularidades e menos a partir de seus poemas, além de aparecer como tema associado à ideia de vampiragens.

2.2 . Dizer mulher seria definir a mulher?

Em 1981 Heloisa Buarque de Holanda publica no Jornal do Brasil o artigo intitulado A Imaginação Feminina no Poder9, discutindo uma aparente nova cena de mulheres poetas brasileiras e tendo Ana Cristina Cesar como porta de entrada e centro da discussão. Heloisa abre seu artigo pela seguinte descrição:

"Trajando knickers amarelo, sandálias chinesas, cabelo punk, com diploma M. A em tradução literária from Essex, e um livro editado em Londres, acaba de retornar ao Brasil Ana Cristina Cesar. Pelo desempenho e visual não deixa margem à dúvida: trata-se do que se convencionou chamar de uma mulher moderna, independente e bem-sucedida."10

A descrição da imagem, de uma persona da mulher moderna, independente, bem-sucedida, introduz a aparente contradição discutida pela autora no texto. A imagem daquilo que seria uma convenção de mulher moderna bem-sucedida é contraposta ao título (“que desconcerta essa imagem”) do livro publicado recentemente por Ana, Luvas de Pelica, e pela descrição da capa “que traz um manequim em primeiro plano, oferecendo pó de arroz e perfumes numa vitrina de moda em semitons rosa shocking. Um diário de alcova? Rabiscos e sonhos de uma moça bem-comportada?” Essa discussão dá o tom do artigo de Heloisa Buarque de Holanda: a imagem da autora mulher bem-sucedida e independente deveria

9 Originalmente publicado em Jornal do Brasil, 11/04/1981.

10 HOLANDA, H. A imaginação feminina no poder. Disponível em:

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corresponder aos estereótipos da época de uma poesia da recusa às imagens tradicionais de feminilidade, mas o título de seu livro, as imagens da capa, as escolhas de seus temas parecem contradizer tais estereótipos.

Das escritoras da década anterior ao universo institucional em transformação e à televisão, Heloisa faz então um breve apanhado do cenário contemporâneo a seu texto no que diz respeito à voz feminina no Brasil. Comenta a linguagem de uma poesia feminina da década de 1970 que denomina como "fala feminina liberada", que se permite tomar espaços do discurso resguardados ao homem, e recebe reconhecimento tardio, mas que representa, para Heloisa, o início de uma maior abertura para as reivindicações feministas dos anos de 1970. Paralelamente, diante de tal cenário, Heloisa vê surgir uma nova geração de mulheres na poesia, que parecem trazer de volta os temas do cotidiano íntimo e especificamente doméstico. Depois de uma comparação entre as gerações através da escolha de seus títulos, Heloisa se atém ao pequeno livro de Ana C.: Luvas de Pelica seria um diário de viagem, mas esse formato apresenta contradição. Em vez de relatar idas, descobertas, etc., o diário de viagem de Ana C. surpreende o leitor que busca as expectativas tradicionais do gênero:

"O que parece interessar aqui é precisamente o não ir, o ficar, o voltar e o exercício obsessivo de escrever inúmeras cartas para o ponto de partida, a empenhadíssima construção de um pequeno espaço de silêncios, em vez da conquista e da exploração do mundo." (idem)

Para Heloisa, a proposta do livro é justamente uma retomada do tom íntimo, de imagens do universo doméstico, de sensibilidade e confinamento. O livro estaria construído em torno dos “estigmas femininos”, segundo ela, “tabus para o feminismo”, para a linguagem esperada da “mulher moderna”, da geração de 1970. Fazendo uma crítica bastante direta e dura, porém coerente em sua argumentação, Heloisa Buarque de Holanda parte de sua análise da obra de Ana C. para falar mais diretamente ao discurso feminista:

"Sem que se possa duvidar dos objetivos de sua luta, o discurso feminista supõe algumas simplificações e uma certa incapacidade, enquanto linguagem, para enfrentar seus fantasmas mais delicados. Na busca da igualdade, o discurso que informa as lutas feministas de certa maneira legitima os mitos que sustentam o modo de produção capitalista."

Para a autora, Ana Cristina Cesar, em conjunto com uma série de outras poetas a quem vai acrescentando à discussão (Mara Lucia Alvin, Lucia Villares e Maria Rita Kehl), parece apresentar uma saída poética para essa linguagem feminista que ela deseja criticar. Algo de novo na linguagem feminina se apresenta para a autora a partir desse lugar do discurso de mulheres que retomam os temas característicos do espaço tradicionalmente feminino. É interessante, porém, nos ater ao momento em que Heloisa menciona uma conversa com Ana

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